domingo, 7 de julho de 2013

Um Pequeno Romance


     O que torna uma estória uma boa estória? Difícil dizer. Mas, acho que, após algumas divagações, o que torna uma estória notável é a capacidade que tem o leitor de absorver a inspiração que levou o autor a escrever a sua estória em um particular momento de fraqueza, não uma fraqueza no sentido literal do termo, mas uma espécie de abertura mental e receptividade àquilo que se está lendo, ouvindo, ou assistindo; é mais ou menos como se uma boa estória dependesse muito do estado de espírito do interlocutor. Isto é mais fácil de ser percebido, por exemplo, com as músicas; é possível que uma bela canção que gerou em nós grande emoção possa não o fazer igualmente todos os dias, haja vista que nem sempre nos encontramos em um estado de espírito favorável à absorção do que inspirou o compositor e daquilo que nos é apresentado. Mas existem as obras clássicas, e isto nos vários níveis de expressão da arte: Literatura, Música, Artes Plásticas, Cinema, etc. E, facilmente, surge outra pergunta: o que faz de uma obra clássica? Também é algo difícil de responder, mas acredito que isto provavelmente advém da qualidade da obra no que diz respeito à inovação em termos da técnica utilizada na composição da mesma em algum nível e/ou à abordagem que estes mestres clássicos dão aos dramas mais importantes na vida de cada um de nós, e visualizamos nestes dramas grandes conflitos humanos... Obviamente, nem toda obra considerada clássica é de fato uma boa estória no sentido estrito do termo, mas deverá sê-lo no sentido amplo da palavra; aí, entra o papel do interlocutor. Será que nunca aconteceu com você, leitor, de ler um livro considerado clássico e aquilo não causar um terremoto em seu espírito como era de se esperar? Quem sabe isto não tenha acontecido devido ao estado de espírito do interlocutor no momento da apreciação da obra, ou da falta de concentração ao apreciá-la, ou mesmo porque, eventualmente, este não se encontrava maduro ou preparado para aquilo que se encontrava diante de seus olhos ou ouvidos. E, não é difícil acontecer de, algumas vezes, ao se retornar à obra que não tenha causado tanta comoção assim numa primeira apreciação, possa fazer todo sentido numa segunda visualização; ora, parece, então, que o estado de espírito e maturidade do interlocutor é essencial ao se contemplar ou apreciar qualquer obra... Isto aconteceu comigo ao assistir a um filme duas vezes em momentos diferentes de minha vida, e o final de Blade Runner: O Caçador de Andróides fez, nos dias mais recentes, muito sentido.

Cartaz do filme Blade Runner, do diretor Ridley Scott, (1982)
Cena do filme Blade Runner (inovação técnica)
   Ao assistir ao referido filme de 1982 em um dos anos de minha infância, não teve jeito: apresentou-se um grande enfado e uma total desconexão com aquilo a que eu assistia. Ora, esperando que houvesse andróides, ciborgues, robôs, além do ambiente futurista (este sim, realmente evidente), com ação desenfreada e coisas do tipo, houve uma profunda negação e até revolta numa primeira apreciação. Uma criança que assiste a este filme, numa era pré-internet, diferente da que conhecemos hoje, dificilmente enxergará algum sentido. Mas, como o ser humano é, por definição, alguém inquieto, e estará sempre tentando retomar alguma coisa do passado e tentando aprender algo com aquilo que se 'deixou' para trás, revendo erros ou lacunas para que se chegue a acertos e completudes, permiti-me revê-lo em um momento mais recente, na minha quarta década de existência... Ah, e aquele filme não pode representar algo que não a essência da ficção científica, e coloca em pauta dramas profundos da existência humana; por isto, e por ser tecnicamente inovador para a época (repito: 1982), é considerado um clássico. E o final? Rutger Hauer, representando um andróide na chuva segurando uma pomba branca, dizendo um dos trechos mais emblemáticos e fortes do cinema em todos os tempos ao ser  humano falível, frágil e emotivo que pertence à espécie que o criou, Harrison Ford, o caçador de andróides. E foi isto que ele disse: 'I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched c-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.' Ou seja: 'Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Órion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, próximo do Portão de Tannhäuser. Todos estes momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer.' Poderia ficar discutindo por linhas e mais linhas sobre este trecho, mas basta dizer, para os fins desta postagem, que, ao dizê-lo, Roy, o personagem de Rutger Hauer, que no filme é um andróide que busca seu criador querendo descobrir uma forma de viver mais tempo do que os quatro anos a ele permitidos, acaba expressando algo que somente poderia caber ao ser humano, dotado de espírito e emoção - naquele momento, a criatura esboça uma transformação em criador, e quase se pode enxergar uma alma saindo de seu corpo robótico. O 'hora de morrer' é o ponto final de sua existência; para nós humanos, acreditamos, mesmo que alguns insistam em negar isto, que a morte não é o fim de tudo... Belíssimo fechamento para um, agora, grandioso filme em minha humilde opinião. Veja o trecho do filme abaixo:


   Acredito ser de conhecimento universal uma estória que começa com um coelho preocupado com o tempo, portando um relógio de bolso, seguido por uma menina que cai em sua toca e bebe um certo líquido que a deixa grande e passa a viver algumas aventuras num mundo fantástico, e que, no fim, é acordada por sua irmã e percebe que tudo se tratava de um sonho. Será? Bom, estou a falar de Alice no País das Maravilhas (Alice's Adventures in Wonderland), livro de Charles Lutwidge Dodgson, um romancista, matemático e poeta britânico que entrou para a história da literatura, sendo mais conhecido por seu pseudônimo: Lewis Carroll (1832-1898). Este livro, publicado em 1865 pela primeira vez, tem um estilo considerado nonsense, mas é bastante instigante como ele apresenta uma realidade com muito sense. Se não, vejamos!

Lewis Carroll (1832-1898)
Alice Pleasance Liddell (1852-1934), a garota real que inspirou a obra de Carroll
   Podemos observar alguns temas importantes. Um deles é a perda trágica e inevitável da inocência da infância; durante todo o curso das aventuras de Alice, ela passa por uma série de mudanças físicas absurdas. O desconforto que ela sente por nunca ser do tamanho certo acaba servindo como um símbolo para as mudanças que ocorrem durante a puberdade; Alice descobre que tais alterações são traumáticas, sentindo desconforto, frustração e tristeza quando passa por elas. Ela se esforça para manter um tamanho confortável, e as flutuações constantes representam a forma como a criança pode sentir o seu corpo crescendo e mudando durante a puberdade. Outro tema é o da vida como um quebra-cabeça sem sentido; nas suas aventuras, Alice encontra uma série deles que parecem não ter soluções muito claras, e isto parece imitar a forma como a vida frustra as expectativas. Ela, Alice, espera que as situações que ela enfrenta venham a fazer um certo tipo de sentido, mas estas repetidamente frustram a capacidade de ela explorar o 'País das Maravilhas'. Os problemas e charadas apresentados na obra não parecem ter propósito ou resposta; interessante como Alice descobre que ela não pode esperar encontrar  a lógica ou sentido nas situações que ela vivencia, mesmo quando estas parecem ser problemas, enigmas ou jogos que normalmente teriam soluções que ela seria capaz de descobrir. Carroll, também matemático, faz uma abordagem mais ampla sobre os caminhos que a vida frustra as expectativas e resiste a interpretações, mesmo quando os problemas parecem familiares e solúveis. Um outro tema é o da morte como uma ameaça constante e subjacente; Alice se encontra continuamente em situações em que há o risco de morte, e enquanto essas ameaças nunca se materializam, elas sugerem que a morte se esconde atrás dos acontecimentos ridículos do livro como um resultado real e possível. Ao longo do livro, Alice vai mudando a forma de pensar sobre a morte: no início, ela nunca considera a morte como um resultado possível, mas, no 'país das maravilhas', ao final do livro, a morte passa a parecer uma ameaça real, e ela começa a entender que os riscos que ela enfrenta podem não ser tão ridículos e absurdos, afinal, exatamente como uma adolescente, passando da infância para a vida adulta.

Capa do livro 'Alice no País das Maravilhas'
   Alguns motivos são muito interessantes no livro. O do sonho de Alice, por exemplo; o fato de as aventuras dela terem lugar em seu sonho permite que personagens e fenômenos do mundo real se misturem com elementos de seu profundo estado de inconsciência. O fato de tudo se passar num sonho explica a abundância de acontecimentos absurdos e díspares na estória; como num sonho, a narrativa segue o que aquele que está sonhando encontra e há a tentativa de interpretação das experiências oníricas em relação a si mesmo e ao mundo real. Embora as experiências de Alice se prestem a observações significativas, elas resistem a uma interpretação singular e coerente. Outro motivo é o da subversão; Alice descobre ao longo de suas aventuras que o único aspecto em que ela pode confiar no 'país das maravilhas' é que os acontecimentos irão frustar suas expectativas e desafiar sua compreensão da ordem natural do mundo. No seu sonho, Alice descobre que suas aulas não mais significam aquilo que ela pensava. O 'país das maravilhas' frustra os desejos de Alice de atender suas experiências sob uma estrutura lógica, em que ela pode enxergar o sentido na relação entre causa e efeito. Um outro motivo é a linguagem; Carroll brinca com as convenções linguísticas na obra, fazendo uso de trocadilhos e brincando com os vários significados das palavras ao longo do texto. O autor inventa palavras e expressões e desenvolve novos significados para elas, e isto sugere que Alice pode descrever o que vivencia de forma expansiva e para além das expectativas e convenções. Tudo é possível no 'país das maravilhas', e a manipulação da linguagem por parte do autor reflete este senso de possibilidade ilimitada.
   A simbologia por trás do texto do livro é, também, muito rica. Quase todos os objetos nas aventuras de Alice funcionam como um símbolo, mas nada representa claramente uma coisa específica ou particular. As ressonâncias simbólicas dos objetos que aparecem no 'país das maravilhas' são geralmente restritos ao episódio individual em que aparecem, embora com certa frequência os símbolos trabalhem em conjunto para transmitir um significado particular. Neste sentido, o jardim em que Alice adormece pode simbolizar o Jardim do Éden, um espaço idílico de beleza e inocência que ela não tem permissão para acessar; em um nível mais abstrato, o jardim pode simplesmente representar a experiência do desejo, em que Alice concentra sua energia e emoção na tentativa de alcançá-lo. Estes significados simbólicos trabalham em conjunto para enfatizar o desejo dela em reter seus sentimentos de inocência infantil, que ela deverá abandonar conforme amadurece.
   Por tudo isto, considero a estória de Lewis Carroll uma bela estória, capaz de engrandecer a mente que a absorve, tendo como grande tema o das mudanças da adolescência, um período de descobertas e de novas percepções, e o indivíduo neste período particular vive por mundos que acredita serem novos e totalmente desconhecidos, mas acaba percebendo, mais adiante na vida, que eles, sim, sempre existiram, sempre estiveram lá - por isto, este é um período tão fascinante em nossas vidas. O que mais me comove, até hoje, quando tratando de Alice no País das Maravilhas, é como Carroll retrata a visão que um adolescente, ou mesmo uma criança, tem dos adultos - percebam que, 'de cara', o início do sonho de Alice é ela tentando entender por que um coelho branco está com um relógio de bolso correndo 'atrás do tempo', e ela percebe que o coelho acaba não sabendo explicar porque está correndo 'atrás do tempo'. Quem, se não um adulto, está claramente estampado neste coelho... Os coelhos somos nós adultos, sempre atrasados para algo, correndo atrás de algo, tentando descobrir por que, mas sabendo que nunca iremos ter certeza plena desta resposta. Certamente é assim que uma criança enxerga um adulto... Grande percepção do ponto de vista dos mais novos! 
   Conhecer os lugares e as pessoas nos põe diante de boas estórias. Há alguns anos, visitamos uma cidade que está repleta de belíssimas estórias; com pouco mais de 270 mil habitantes, é um lugar fascinante. Por lá, caminha-se por estreitas ruas, não se encontram carros, se perde facilmente e, da mesma forma, se relocaliza com extrema rapidez. Caminhando por estas estreitas ruas, passa-se por pontes menores, algumas maiores, tem-se a impressão de se andar sobre as águas, encontram-se veículos aquáticos e se percebe que há uma grande singularidade em tudo por ali; não existe lugar parecido em qualquer lugar no mundo. No Dia dos Namorados naquele ano, passeávamos minha esposa e eu durante a noite e, sob a ajuda de Baco, visualizamos o mundo tal qual Alice - tudo era onírico! Jamais poderei descrever com precisão aquela noite, mas recordo-me que, após um saboroso jantar, passeando pelas ruelas, nos deparamos com vendedores ambulantes de máscaras de um dos carnavais mais clássicos e antigos que existe - o Carnaval de Veneza. Com um pouco de imaginação, era fácil ser transportado para anos e anos atrás - uma viagem no tempo tão magnífica como a viagem que fizemos àquele lugar. Passeando e vendo cada vez mais daquelas máscaras, imaginava pessoas com roupas da época, fogos de artifício, danças, sorrisos e mais sorrisos, e sempre uma atmosfera de mistério naquela cidade tão absorvente. No final daquela noite transcendental, o doce do sorvete italiano fez todo o sentido: éramos como magos numa terra mágica. 





   No dia seguinte, passeando por todas as cores e atmosfera daquela histórica e bela cidade, cada vez mais nos deparávamos com igrejas, cada uma mais aconchegante que a outra. Após uma pequena ruela, é chocante sair na Praça São Marcos, imensa, diante daquela Basílica Bizantina e do Palácio Ducal, além do Campanário. Fiquei mais feliz ao saber que uma de minhas cantoras preferidas, Norah Jones, iria se apresentar naquela belíssima e grandiosa praça alguns dias depois. Continuando o passeio cada vez mais estarrecedor, nos vimos diante de um cartaz que me lembrou uma boa estória. Conta-se que naquela cidade, alguns séculos antes, viveu um padre bastante prolífico - obviamente, este termo remete à sua obra, e não a seus descendentes. :) Tendo entrado para a História como o padre vermelho (il sacerdote rosso) compôs nada menos que 770 peças musicais, tendo morrido pobre e somente restabelecido o lugar no alto da ribalta após os anos 1900. Diz-se que Antonio Lucio Vivaldi (1678-1741), o compositor da famosíssima As Quatro Estações (Le Quattro Stagioni), o conjunto de quatro concertos para violino mais famoso da História da Música, respirava música, e nada mais invadia sua mente. Posicionados diante daquele cartaz, que apresentava datas de apresentações destes concertos de Vivaldi nos diversos teatros e igrejas da cidade, lembrei-me de uma estória sobre ele. Reza a lenda que, rezando, Deus aparecia sempre em sua mente sob a forma de música, e que, numa das vezes em que estava a celebrar uma missa, uma bela melodia lhe veio à mente. Interrompeu a homilia imediatamente, saiu correndo da igreja e pegou o primeiro violino que conseguiu encontrar, rapidamente tocando e escrevendo aquelas notas que lhe surgiram inspiradamente na cabeça. Assim lê-se romanticamente em algumas de suas biografias; mas, homens mais sérios insistem em deturpar o imaginário humano e afirmar que a asma o afastou dos aglomerados sacerdotais e da vida eclesiástica. :) O fato é que, depois deste cartaz, continuando o passeio pela belíssima Veneza, vez por outra se ouvia algumas das melodias de As Quatro Estações, principalmente próximo a igrejas.


Antonio Vivaldi (1678-1741)




   Perto do momento em que se iria por o sol, fizemos o passeio de gôndola, a embarcação mais romântica que existe, sem a menor dúvida. Emoção tamanha me tomou o espírito quando passamos por baixo da Ponte dos Suspiros. Fazendo parte do Palácio Ducal, diz-se que recebe este nome porque, separando o complexo principal do palácio de um anexo de celas que fazia parte deste mesmo palácio, esta ponte era o percurso realizado pelos condenados que seguiam para a cadeia - ao passar pela ponte, era o último momento em que viam o mundo lá fora, e, por isto, suspiravam. Esta é a versão provavelmente real do título dado à ponte; o que os livros não contam, entretanto, é que existe uma lenda que afirma que quando um casal de apaixonados passa por baixo dela em uma gôndola no momento em que o sol está se pondo, sob as badaladas dos sinos do Campanário da Basílica de São Marcos, e se beijam, eles terão um amor eterno. Você, leitor, acredita nesta lenda? Bom, alguém acreditou, e criou uma das mais belas estórias de amor do cinema. O mais interessante? Esta estória se deu entre duas pessoas muito, muito jovens...
   

   


   Um belíssimo filme de crianças para adultos pode ser apreciado em Um Pequeno Romance (A Little Romance), lançado em 1979. A estória apresenta Lauren King (Diane Lane) como uma estudante de 13 anos americana altamente inteligente vivendo em Paris com sua família rica. Ela passa o tempo livre lendo Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão que influenciou, entre outros, Jean-Paul Sartre (1905-1980). Daniel Michon (Thelonious Bernard) também é um estudante de 13 anos muito inteligente, francês, de uma pobre família, que adora os filmes de Hollywood e que usa seu talento com lógica e probabilidade para apostar em corridas de cavalo. Os dois se conhecem num museu em que um filme está sendo gravado e acabam se apaixonando. A mãe vulgar de Lauren, Sally Kellerman (1937-), proíbe arrogantemente o romance, considerando o garoto francês um 'imundo' inadequado para sua filha. Quando Daniel dá um soco no 'namorado' egocêntrico da mãe de Lauren, um diretor de filmes, os dois garotos são proibidos de se encontrar. Eles encontram Julius (Laurence Olivier, 1907-1989), um gentil senhor batedor de carteiras que conta sobre a lenda relatada anteriormente. Ao descobrir que irá embora de volta para os Estados Unidos em breve (para o Texas), Lauren traça um plano para que ela e Daniel viagem para Veneza com a ajuda de Julius e se beijem conforme a lenda, para que compartilhem um amor eterno.


Cartaz do filme 'Um Pequeno Romance'
George Roy Hill (1921-2002), diretor do filme  'Um Pequeno Romance'
Diane Lane
Diane Lane
Laurence Olivier
Thelonious Bernard
Sally Kellerman
   O filme é baseado no romance francês E=MC2, Mon Amour, de Patrick Cauvin (1932-2010), e celebra as pequenas alegrias da vida humana profundamente, reafirmando a nossa crença em céus azuis, amor juvenil e a promessa da primavera. É uma viagem indubitável à elevação do espírito! Sendo um filme despretensioso, encanta em cada cena, em cada parte do seu andamento natural e previsível, com uma preciosa e absorvente fotografia, mostrando o verdadeiro sentido em pequenas coisas. Desde o início, com o amor do jovem francês pelo cinema americano, percebe-se uma maturidade pouco comum aos jovens de uma época muito mais tradicional e sem acesso à internet como a conhecemos hoje; e qual não é sua emoção ao visualizar aquela que, certamente, lhe completa na figura de uma Diane Lane jovem, encantadora e já promissora, uma americana tão apaixonada por temas sobre a vida quanto ele. A influência da obra do bardo inglês, William Shakespeare, na peça Romeu e Julieta, é muito evidente, tanto pelo fato da pouca idade dos jovens quando se apaixonam quanto pela impossibilidade por motivos alheios a eles em viverem 'felizes para sempre'. 

Patrick Cauvin
   À medida que o filme se desenvolve, percebemos que um gentil senhor acaba enxergando precocemente tal afeição entre os pequenos e os incita a desenvolver este sentimento; a grandeza da mente dos jovens se apresenta no primeiro encontro com o senhor e quando temas de importância para a humanidade são logo discutidos e o senhor percebe o gosto em comum com parte das leituras que Lauren havia feito até então. Quando expõe o gosto pela poetisa inglesa Elizabeth Browning (1806-1861), Lauren absorve Julius em sua visão de mundo e na sua forma de expressar sentimentos; a recitação de um trecho de um dos sonetos de amor de Elizabeth dedicado ao seu marido, o também poeta Robert Browning (1802-1889), dá partida ao desejo dos jovens em ficarem juntos e impulsiona o filme, que se desenvolve em um único fôlego, absorvendo intensamente quem a ele assiste até o seu final. Criando uma mentira que acaba se tornando o principal motivo da estória do filme, o velho Julius, falível e frágil ladrão barato (batedor de carteiras), quis apenas acrescentar 'um pequeno romance' em sua amarga vida até então. Mas é esta mentira que é o meio que justificará o fim tão desejado pelos pequenos, estes que são capazes de ensinar ao pobre e experiente Julius ainda que adolescentes vivendo em um mundo muito particular.
   Tentando parecer diferente da Alice de Carroll, os jovens do filme tentam fugir de uma realidade que entendem e viver um sonho, o desejo de ficarem juntos até o fim de suas vidas. Antes de se dirigirem a Veneza para realizarem o que afirma a lenda contada por Julius, os três passam por Verona, e o fim é antecipado de certa forma... A analogia com Romeu e Julieta é expressa nesta passagem pela cidade dos jovens amantes que inspirou Shakespeare; ao apresentar tal passagem, o filme parece anunciar que, no fim, os jovens não ficarão juntos - mas a grandeza do filme está justamente no fato de muitos e muitos ensinamentos não dependerem do final mais lógico e provável, consistente com a essência de Daniel e com a inteligência e mentalidade de ambos os pequenos personagens. Thomas Wolfe (1900-1938) uma vez observou que 'o verdadeiro sentimento romântico não é desejar fugir à vida, mas prevenir que a vida fuja de você', e os jovens amantes expressam justamente isto. 

Elizabeth Browning 
Thomas Wolfe
   Numa passagem consistente com a conexão e mentalidade de ambos, eles conversam sobre o amor logo após terem repudiado um filme erótico, em que acontecia sexo sem amor. Eles conversam pela noite: ela - 'Eu costumava pensar, talvez há muito tempo, como no tempo dos faraós, ou de Luís XIII, que havia alguém feito sob medida para mim. Quer dizer, quando você pensa nisso, e considera que os sentimentos de amor começam por volta dos 10 anos, e se você viver até uns 70, bem, é bem limitante, porque que chance você tem dele estar vivo na mesma época que você?' Ele - 'Eu sinto a mesma coisa. Quero dizer, mesmo se ela vivesse na minha época, e se minha mulher perfeita morasse na Índia, ou Califórnia, ou Brasil? Que chance eu teria de encontrá-la vivendo em La Garenne?' Ela - 'É incrível, não acha?' Ele - 'Totalmente incrível!' 
   Como todo bom filme, há sempre uma referência que engradece a essência da trama. Neste caso, uma grande referência é à poetisa Elizabeth Browning, como já comentado. O livro 'Sonetos da Portuguesa' é um conjunto de poemas que ela escreveu sobre o amor, muitos para o seu amado Robert, com quem viria a se casar dois anos após ter iniciado a criação destes sonetos (de fato, por suas características físicas, Robert chamava Elizabeth de 'pequena portuguesa', daí o título da obra). Um deles, o soneto 43, é considerado um dos sonetos mais belos existentes em língua inglesa.

   How do I love thee? Let me count the ways.
   I love thee to the depth and breadth and height
   My soul can reach, when feeling out of sight
   For the ends of Being and ideal Grace.

   I love thee to the level of everyday's
   Most quiet need, by sun and candlelight.
   I love thee freely, as men strive for Right;
   I love thee purely, as they turn from Praise.

   I love thee with the passion put to use
   In my old griefs, and with my childhood's faith.

   I love thee with a love I seemed to lose
   With my lost saints, - I love thee with the breath,
   Smiles, tears, of all my life! - and, if God choose,
   I shall but love thee better after death.


   Manuel Bandeira traduziu este poema da seguinte forma:

   Amo-te quanto em largo, alto e profundo
   Minh'alma alcança quando, transportada,
   Sente, alongando os olhos deste mundo,
   Os fins do Ser; a Graça entressonhada.

   Amo-te em cada dia, hora e segundo:
   À luz do sol, na noite sossegada.
   E é tão pura a paixão de que me inundo
   Quanto o pudor dos que não pedem nada.

   Amo-te com o doer das velhas penas;
   Com sorrisos, com lágrimas de prece,
   E a fé da minha infância, ingênua e forte.

   Amo-te até nas coisas mais pequenas.
   Por toda a vida. E, assim Deus o quisesse,
   Ainda mais te amarei depois da morte.














   
   A verdade que transparece em Alice e nos jovens do filme é que passar pela adolescência dói. A racionalidade que chega a nós em forma de maturidade quando adultos parece estar sempre tentando retornar àquela inocência da infância, e estamos, de certa forma, quase sempre querendo experimentar sensações, emoções, deixar o superego adormecer um pouco... Mas este tempo já passou, e os filmes, as leituras e as músicas nos ajudam a viajar no tempo enquanto não podendo mudar o espaço de fato. Uma boa semana a todos!