Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975), o fundador da Opus Dei e, atualmente, São Josemaría Escrivá, pois foi canonizado pelo eterno João Paulo II (1920-2005), certa vez escreveu o senguinte trecho:
"É necessária uma cruzada de virilidade e de pureza que enfrente e anule o trabalho selvagem daqueles que pensam que o homem é uma besta. E essa cruzada é obra vossa."
Esta citação me chegou ao conhecimento através do meu mentor literário, o grande
Francisco Escorsim, com quem discuto temas relacionados à arte em geral, sendo que estas discussões me levam cada vez mais longe. Mas, de tudo o que se pode extrair para a compreensão do que é apresentado nesta citação, uma interpretação me enche os olhos por ser algo de extrema importância para o bem viver de cada um de nós: na vida, é mais válido ser
autêntico e
coerente. Deixe-me explicar melhor; o ser humano, esta espécie dotada de racionalidade mas também de paixões, só terá uma vida plena se executar com sabedoria, mas autenticidade, ambos, e o grande segredo, acredito, do bem viver é o equilíbrio entre eles. Com isto, estou querendo dizer, por exemplo, que não há a possibilidade de uma vida esmerada somente na razão, posto que o ser humano não é um robô, uma máquina desprovida de emoções; mas, uma vida atirada somente ao desejo, à vivência do que alimenta o espírito como essência única e completa, também não é possível, pois não somos capaz de aprender com tais vivências sem a luz da razão. Disto, depreende-se que o ser humano vive em busca de um
equilíbrio entre estes polos, entretanto nenhum de nós sabe qual a forma realmente correta para se atingir tal equilíbrio. Então, será que um bom equilíbrio é viver como um
bom moço, ou seja, como alguém que restringe muito de suas emoções para transparecer à sociedade aquilo que ele, de fato, não é, e, assim, fazer imenso uso da razão? Ou será que é melhor ser uma pessoa
verdadeira, ou seja, autêntica, que simplesmente executa em cada momento aquilo que ela, essencialmente, é, sem hipocrisias. No pouco tempo que vivi, já aprendi que não existe o ser indefectível e que é querido e amado por todos, nem o
bom moço e nem o
autêntico, e é por isto que as pessoas, sendo diferentes, são tão interessantes, o que deixa a vivência neste plano tão rica e infinita em possibilidades. Veja, o
bom moço não é aquele essencialmente executor do bem, e nem o
autêntico é aquele que pratica o que é ruim por preferir não ser disfarçado, haja vista que o bem e o mal existe dentro de todos nós. Mas, uma forma de que dispomos para aprender cada vez mais sobre as pessoas e sobre a melhor forma de se viver a vida é enxergando e analisando as grandes obras literárias. Por quê? Porque nelas existem grandes personagens, e estes nunca são somente criações inexistentes neste mundo, são seres inspirados em, e mesmo cópias de, pessoas ao nosso redor, por isto se aprende tanto com eles. Diante de todo este preâmbulo, sou forçado a dizer que, a mola propulsora para os escritos desta postagem é um dos personagens mais marcantes entre todos que já pude conhecer nos diversos livros que li. O seu nome?
Esteban Trueba. Só ele já valeria a leitura de
A Casa dos Espíritos.
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Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975) |
Isabel Allende (1942- ), autora nascida em
Lima, no
Peru, mas naturalizada no
Chile, é uma das mais bem sucedidas escritoras dentre os latino-americanos. Enquanto criança, viajava muito pela
América Latina e mesmo outros lugares graças às carreiras diplomáticas de seu pai e de seu padrasto. Casou-se em 1962 com
Manuel Frias, com quem teve dois filhos:
Paula e
Nicolas. Trabalhou como jornalista para jornais e revistas chilenas a partir do começo de 1967. Seu tio,
Salvador Allende (1908-1973), foi o primeiro socialista eleito presidente do
Chile, em 1970, tendo sido assassinado num golpe militar em 1973 pelo general
Augusto Pinochet (1915-2006). Devido a crescentes tensões políticas no seu país, em 1975,
Isabel e sua família fogem para a
Venezuela, onde viveram por 13 anos, tendo ela continuado seu trabalho como jornalista. Divorciou-se de
Frias em 1987 e, um ano depois, casou-se com
Willie Gordon, em
São Francisco, passando a viver em
São Rafael, na
Califórnia. Em 1992, sua filha,
Paula, morre por complicações de porfiria.
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Isabel Allende (1942- ) |
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Salvador Allende (1908-1973) |
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Augusto Pinochet (1915-2006) |
Escrito e primeiramente publicado em 1982, A Casa dos Espíritos foi o primeiro livro de Isabel. Enormemente aclamado pela crítica, em 1985 foi traduzido para o inglês. Em 1993, foi adaptado para o cinema com grande elenco. Muitos elementos no livro são baseados na própria vida da autora. Os eventos políticos no país inominado no livro são muito similares aos ocorridos no Chile. Como a autora explicou na biografia de sua filha, Paula, muitos dos personagens em A Casa dos Espíritos são baseados em membros da sua própria família. De fato, o livro começou a partir de uma carta que Isabel escrevera para um tio que estava morrendo. O livro é um exemplo excelente do realismo fantástico (ou realismo mágico), sendo uma espécie de paralelo feminino de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez (1927- ). Primariamente uma tradição latino-americana, o realismo fantástico é caracterizado por apresentação simples e direta de eventos mágicos e estranhos. Por exemplo, características como a clarividência de Clara, no livro, são comparadas com a claudicação de seu irmão. Os personagens na ficção do realismo fantástico vivenciam e aceitam o inacreditável com calma racionalidade. Quando Clara sonha que a cabeça decepada de sua mãe está desaparecida, por exemplo, ela toma um carro e vai buscar a cabeça, encontrando-a, colocando-a numa caixa de chapéu e para de se preocupar com isto a partir de então. Os romances do realismo fantástico geralmente são longas sagas familiares, contadas sem grande apego a uma clara sucessão temporal. Eles geralmente empregam estratégias de prenúncio e repetição, que são prevalentes em A Casa dos Espíritos, especialmente nas predições do futuro desenvolvidas por Clara e nas recorrências dos nomes Pedro e Esteban nas linhagens.
Resumidamente, o livro se desenvolve da seguinte forma. No dia em que o padre a acusa de estar possuída pelo demônio e que o corpo de seu tio
Marcos é entregue na casa dela acompanhada de um cachorro chamado
Barrabás,
Clara del Valle começa a manter um diário. Cinquenta anos depois, seu marido,
Esteban Trueba, e sua neta,
Alba, remetem-se a estes diários no sentido de reunir a estória da família.
Clara é uma criança quando
Barrabás chega à casa dos
del Valle. Sua irmã preferida,
Rosa,
a Bela, está comprometida com
Esteban Trueba.
Clara, como seu nome sugere, é clarividente, sendo capaz de predizer quase qualquer evento em sua vida, embora ela não seja capaz de mudar o curso do futuro, somente de prevê-lo. Enquanto
Esteban trabalha nas minas, tentando fazer fortuna,
Rosa é acidentalmente envenenada no lugar de seu pai,
Severo del Valle.
Rosa morre.
Clara fica tão chocada que para de falar. Anos depois,
Esteban faz fortuna com uma propriedade de sua família,
Las Trés Marias, graças ao seu trabalho duro e à exploração dos camponeses locais. Além de explorar o trabalho destes,
Esteban também explora todas as jovens mulheres das famílias camponesas, notavelmente
Pancha, para sua satisfação sexual. Além das mulheres camponesas,
Esteban também tem relações com prostitutas, incluindo
Tránsito Soto, de quem ele fica amigo e a quem empresta dinheiro para que ela se mude para a cidade. A mãe de
Esteban tem sua condição de saúde agravada e está prestes a morrer, e ele retorna para a cidade, onde faz uma visita aos
del Valle.
Esteban e
Clara se comprometem e se casam. Eles se mudam para um casarão na esquina que
Esteban constrói para eles. A irmã deste,
Férula, se muda para morar com eles. Quase um ano após o casamento, nasce a primeira filha do casal,
Blanca. Quando a família viaja para
Las Trés Marias para passar o verão alguns anos depois,
Blanca conhece
Pedro Terceiro, e ambos se apaixonam.
Pedro Terceiro é o filho de
Pedro Segundo, o capataz dos camponeses de
Las Trés Marias. Até o fim do verão,
Clara engravida novamente, agora de gêmeos, que serão chamados de
Jaime e
Nicolas. Dias antes de os gêmeos nascerem, os pais de
Clara morrem num acidente de carro. Não se consegue encontrar a cabeça de
Nívea, que foi decepada no acidente. Ninguém quer dizer a
Clara que
Nívea está enterrada sem a cabeça, porque não quer que ela se atormente pouco antes do nascimento dos gêmeos.
Clara, porém, percebe que a cabeça de sua mãe não foi encontrada e leva
Férula para, juntas, irem buscar a cabeça desaparecida. Tão logo encontra e guarda a cabeça de sua mãe, os gêmeos nascem. Ao longo dos anos,
Clara e
Férula desenvolvem uma forte e profunda amizade. Os sentimentos de
Férula por
Clara beiram o amor passional, e aquela e
Esteban desenvolvem uma rivalidade na disputa pelas afeições de
Clara. Uma manhã,
Esteban volta para casa inesperadamente e encontra
Férula na cama de
Clara. Esteban enxota
Férula para fora de casa. Enquanto sai de casa,
Férula amaldiçoa
Esteban a uma vida de eterna solidão.
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Capa do livro 'A Casa dos Espíritos' |
O amor entre Blanca e Pedro Terceiro cresce à medida que eles amadurecem, e eles logo percebem que Esteban não aprovaria se descobrisse. Além de serem de classes sociais diferentes, Pedro Terceiro é um revolucionário, enquanto Esteban é um conservador. Os jovens continuam seu romance em segredo. Anos depois, eles acabam sendo descobertos por Esteban através de Jean de Satigny, que está tentando cair nas graças daquele para se tornar seu sócio nos negócios e para se tornar seu genro. Esteban faz Blanca sair de Las Trés Marias e tenta matar Pedro Terceiro. Em sua ira, Esteban bate em Clara; ela nunca mais falará com ele novamente. Por muitos anos, embora vivendo na mesma casa, eles quase nunca se vêem. Jaime e Nicolas terminam a escola e voltam para casa. Jaime estuda Medicina e Nicolas envereda por espiritualidade e invencionismo. Esteban se torna muito envolvido com o Partido Conservador, lança candidatura para o Senado e é eleito. Esteban e Clara voltam a ter um relacionamento silencioso mais civilizado. Alguns anos depois, Blanca engravida. Esteban diz a ela que matou Pedro Terceiro e a força a se casar com Jean de Satigny. Aproximadamente seis meses depois de casados, Blanca descobre práticas sexuais pouco comuns de Jean de Satigny e o deixa. Ela dá à luz sua filha Alba tão logo chega ao casarão da esquina. Miguel, o irmão mais novo de uma amiga e amante de Nicolas e Jaime, assiste ao nascimento de Alba de um armário.
De acordo com
Clara,
Alba nasceu com sorte. Ela é criada por toda a família, inspirando grande amor em todos. Ela é o único membro da família a desenvolver uma relação próxima e amável com
Esteban. Embora ela pense que
Jean de Satigny é seu pai e que ele está morto,
Alba conhece
Pedro Terceiro e estabelece uma amizade com ele. Para grande tristeza de todos, menos para ela mesma,
Clara morre. Quando completa dezoito anos,
Alba entra na universidade, onde conhece
Miguel, e ambos se apaixonam.
Miguel é um revolucionário. Ambos participam em alguns protestos anti-conservadores que vêm acontecendo pelo país. Para a surpresa de todos, os socialistas vencem as eleições.
Pedro Terceiro se junta ao governo. Os camponeses tomam
Las Trés Marias.
Esteban tenta interrompê-los e é feito refém. A pedido de
Blanca,
Pedro Terceiro intervém e salva
Esteban. Este e os conservadores fazem de tudo para difamar os socialistas, inclusive preparam um golpe militar. Alguns meses depois, este acontece.
Jaime, que é amigo do presidente socialista, é morto.
Miguel se junta aos guerrilheiros, e
Pedro Terceiro consegue se esconder no casarão da esquina.
Esteban inicialmente está feliz com o golpe militar, mas logo percebe que a vitória do golpe não representou o retorno dos conservadores ao governo do país, e sim a instalação de uma ditadura militar.
Esteban fica sem muitos poderes políticos, mas consegue fazer com que
Blanca e
Pedro Terceiro fujam para o
Canadá. O coronel que encabeça a ditadura sequestra
Alba; descobre-se que este coronel é
Esteban Garcia, neto de
Esteban Trueba com a camponesa
Pancha. Antes de morrer,
Pancha contou a
Esteban da descendência dele. Sob o pretexto de descobrir onde
Miguel está escondido,
Esteban Garcia planeja se vingar em
Alba pelo destratamento causado à avó dele. Desesperado para encontrar
Alba, Esteban Trueba recorre a
Tránsito Soto, que agora dirige um hotel que antes foi um bordel. Graças às amizades que ela fez por seus trabalhos sexuais com gente importante,
Tránsito é capaz de retribuir o favor que
Esteban Trueba fez por ela anos antes, e ela garante que
Alba irá retornar para casa; isto realmente acontece. Novamente reunidos,
Alba e
Esteban Trueba começam a escrever a história da família; tão logo começam a fazer tal registro,
Esteban morre.
Alba dá sequência ao projeto, grávida de uma criança cujo pai ou é
Miguel ou um dos homens que a estupraram enquanto ela estava detida.
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Gabriel García Márquez (1927- ) |
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Capa de 'Cem Anos de Solidão' |
Podem ser percebidos alguns
temas na obra. A
luta de classes é um bastante evidente; os principais personagens no livro provêm de duas classes distintas - a aristocracia proprietária de terras e os camponeses. As duas classes acabam entrando em conflito porque a superior é dona da terra em que a inferior trabalha; especialmente nas áreas rurais, como
Las Trés Marias, a classe aristocrática controla toda a infraestrutura, tal como as escolas, os meios de transporte, os bancos, os hospitais, bem como todo o capital. Enquanto a classe mais alta prospera, o conflito com a classe mais baixa se instala porque esta prosperidade não é igualmente distribuída. Várias atitudes diferentes são apresentadas ao longo do livro com relação à desigualdade de classes:
Esteban Trueba representa a visão conservadora - ou seja, o
status quo da classe dominante deve ser mantida e não há razão para que os camponeses compartilhem da abastança da classe superiora ou mudem a situação desta;
Pedro Terceiro representa a classe revolucionária entre os camponeses que irá trabalhar para que aquela mudança aconteça. As mulheres da família
Trueba, bem como
Jaime, ajudam os camponeses, e isto instala uma importante aliança entre todos aqueles que são subjugados pelo sistema patriarcal. Simplesmente por fazer da luta de classes um grande tema,
A Casa dos Espíritos apóia a visão dos camponeses, pois os conservadores não veriam esta luta de classes como um problema. A história narrada em terceira pessoa de fato acaba apresentando a perspectiva de
Alba, uma fiel defensora da revolução socialista. A visão de
Alba também prevalece no comentário retrospectivo de
Esteban Trueba, que lentamente vai aceitando a posição de sua neta. Outro tema em destaque é a
força das mulheres; a grande maioria dos protagonistas do romance é composta de mulheres que trabalham de forma sutil e em diferentes aspectos para reivindicar seus direitos. É como se
A Casa dos Espíritos fosse a resposta centrada no papel feminino a
Cem Anos de Solidão. Naquele,
Clara, Blanca e
Alba são o foco da estória, enquanto
Esteban, Pedro Terceiro e
Miguel entram na estória por que são homens que aquelas mulheres amam ou com quem se casam. Experiências particularmente centrais para a vida das mulheres dominam os eventos menores e os maiores ao longo do romance, tais como as descrições detalhadas de cada parto e do aborto, bem como a apresentação da violência física e sexual contra as mulheres. Todas as mulheres no romance são fortes e não se curvam aos maus-tratos; em vez de revoltas desmedidas, elas preferem respostas sutis, e este método de resistência pode ser visto como particularmente feminino. Se a violência e a atividade são traços masculinos, enquanto a mansidão e a passividade são traços femininos, isto não quer dizer, no romance, que os homens são os que realizam e mudam as coisas e as mulheres não; pelo contrário, as mulheres no romance efetuam mudanças mais duradouras e drásticas do que qualquer um dos homens. Enquanto os homens desencadeiam revoluções que derrubam o governo, eles mesmos rapidamente derrubam essas revoluções. Os métodos das mulheres mais sutis, de alfabetização e cuidados básicos de saúde, o estabelecimento de maldições e a recusa em falar são muito mais eficazes para uma mudança permanente.
Um outro tema é o da
importância da genealogia; embora esta seja um tema sutil no romance, é finalmente a origem do desenlace. Quase todos os personagens na estória pertencem ou aos
del Valle, ou aos
Trueba ou aos
Garcia. O nome da família, ou a linhagem, ao qual cada personagem pertence determina o seu, ou a sua, posição na sociedade. A genealogia não segue, entretanto, simplesmente o parentesco biológico; na verdade, os traços de sangue dos
Trueba e dos
Garcia se cruzam repetidamente, mas
Esteban Trueba trabalha duro para assegurar que o nome de sua família e sua genealogia não se cruzem e não mudem. No romance, é menos uma questão dos genes carreados e mais uma questão do último nome que os personagens carregam que determina sua genealogia. Ao nascimento, a questão do último nome se instala, mas a cada momento que um personagem deseja marcar uma mudança drástica nas alianças para longe das do seu pai ou de sua família, ele muda o seu último nome. Apesar dos esforços de
Esteban Trueba para fazer com que a genealogia pelo último nome seja a única que importa, a sua recusa em reconhecer alguns de seus filhos biológicos, em última análise, volta para assombrá-lo. Um último tema detectável na obra é o da
civilização versus a barbárie; o país não nomeado no livro é dividido entre a cidade moderna e o campo muito pouco desenvolvido, e entre uma classe aristocrática e uma classe camponesa, com pouca coisa entre estas. Talvez um dos modelos mais antigos para se compreender as grandes divergências na cultura latino-americana seja o da cultura versus a natureza ou o da civilização versus a barbárie. A visão tradicional da civilização versus a barbárie sustenta que enquanto a natureza é generosa e tem poderes restauradores, ela é bárbara e necessita da influência da civilização para que seja produtiva. Esta mesma visão considera a civilização o reino das classes superiores e das cidades, e isto é racional e bem ordenado. Enquanto muitos dos personagens no livro aderem a estas visões tradicionais, o romance trabalha para quebrar qualquer divisão nítida entre a civilização e a barbárie. As crenças e práticas daqueles que acreditam serem eles mesmos civilizados são apresentadas frequentemente como desumanas, irracionais, inefetivas e arcaicas; ao mesmo tempo, os camponeses 'bárbaros' demonstram as repostas mais bem sucedidas a tudo, dos desastres naturais à política.
Dois
motivos são evidentes também no livro; o primeiro é o da
escrita. O romance começa e termina com os narradores se referindo explicitamente ao uso dos diários de
Clara para se escrever a história da família a mão; a alusão aos escritos de
Clara prevalecem ao longo de todo o romance. Atenção especial é dada ao modo como cada uma das mulheres aprende a escrever em
A Casa dos Espíritos, e aos momentos em que a escrita adquire um significado na vida delas. Tanto
Clara quanto
Alba primeiramente aprendem como escrever e então aprendem como usar a escrita. Escrever serve tanto para testemunho pessoal como para âmbito político, dando testemunho de eventos no sentido de ampliar a divulgação para uma maior audiência que possa ser capaz de aprender com estes eventos ou mesmo de remediar as situações testemunhadas. No âmbito pessoal,
Alba e outros membros da família são capazes de reunir pedaços e formam a verdadeira história de sua família baseando-se nos escritos de
Clara; no nível político,
Alba é capaz de atestar os abusos de poder do regime militar ao longo de seus escritos. Os escritos de
Alba são também uma metáfora aos escritos de
Isabel Allende para
A Casa dos Espíritos como um testemunho dos eventos que tiveram lugar no
Chile durante a sua vida lá. O segundo motivo é o do
destino; o acaso ou mudanças estranhas do destino ocorrem repetidamente no livro, sendo simbolizado pela clarividência de
Clara, que permite a ela compreender o destino das pessoas e predizer o futuro destas. Este aspecto do destino também estrutura a trama, que gira em torno de encontros e desencontros dos membros das famílias
del Valle, Trueba e
Garcia. Todos os casais que se envolvem romanticamente no livro se encontram aparentemente ao acaso quando jovens, mas anos mais tarde percebem que as coisas deveriam ser como acabaram sendo, como se estivessem destinadas a ser assim. Os romances persistem como uma estranha combinação de acaso e planejamento, como é o caso de outras conexões, tais como amizades e dívidas. Embora
Clara perceba que ela pode predizer, mas não mudar o futuro, o destino não é uma experiência inteiramente arbitrária no livro; mais do que isto, o destino de cada personagem é o resultado de todas as ações destes, grandes ou pequenas, da mesma forma que o destino do país é determinado por uma particular combinação de influências políticas que os personagens exercem.
Um
símbolo bem evidente na obra é o do
casarão na esquina.
Esteban constrói um casarão na esquina que é de superfície simples e pouco ostensiva.
A Casa dos Espíritos pode ser lido como um romance tradicional, seguindo uma família ao longo de várias gerações; entretanto, a casa de
Esteban acaba se enchendo de adições complicadas e pouco práticas. A despeito da estrutura aparentemente tradicional, o livro contém um grande número de mudanças complicadas da trama. O título da obra sublinha esta associação:
A Casa dos Espíritos se refere tanto ao livro como um todo como ao casarão na esquina, que, graças a
Clara, é sempre cheia de espíritos e fantasmas.
Dois personagens merecem uma menção especial por seu poder no livro.
Clara é pouco consciente do mundo material; ela é mais interessada em se comunicar com os espíritos e somente presta atenção nos detalhes mundanos, tais como as tarefas domésticas, em momentos de extrema necessidade. Ela é frequentemente descrita como flutuando pelo mundo. Em alguns momentos, isto se refere à sua levitação literal, em outros, à forma como ela é capaz de ignorar as coisas com as quais não consegue lidar. O temperamento de
Clara é extremamente calmo. Ela inspira grande respeito e devoção em todos aqueles com quem se encontra, de
Esteban à irmã deste,
Férula. Embora ela possa visualizar seu futuro antecipadamente,
Clara nunca luta contra seu destino. Ela não é, entretanto, passiva; quando ela enfrenta uma situação que ela não gosta, ela procede no sentido de mudá-la de forma quieta e sutil, como adicionando pequenos quartos ao casarão da esquina pouco a pouco, embora ele continue sendo o mesmo em aparência por fora, mas acaba se transformando completamente. O caráter de
Clara muda muito pouco ao longo de sua vida.
Outro grande personagem é
Esteban Trueba. Este é obsessivo, violento e materialista. Ele dedica sua vida aos negócios e à carreira política, determinado inicialmente a se tornar rico e, então, poderoso. Ele adquire muito de seu sucesso explorando os camponeses em
Las Trés Marias, mas ele nunca os trata com respeito ou igualdade. Do momento que ele se torna comprometido com
Clara até o fim da vida,
Esteban foi grandemente apaixonado por ela; este amor é tão grande que funciona como uma obsessão. Não é capaz, entretanto, de inibir o temperamento dele, mesmo contra ela.
Esteban adquire seus objetivos materiais mas não é capaz de ser próximo a ninguém, exceto sua neta,
Alba. Enquanto envelhece,
Esteban começa a enxergar os desfechos negativos de suas ações violentas e egoístas, tornando-se cada vez mais consciente do quão sozinho ele está.
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Capa do filme 'A Casa dos Espíritos', de 1993 |
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Jeremy Irons |
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Meryl Streep |
Um filme baseado no livro, homônimo, foi lançado em 1993. O filme, infelizmente, não chega a ter o peso e o poder do livro. A trama é muito deturpada, complicando intensamente o desenvolvimento da história; no fim, além de não contemplar personagens também importantes existentes no livro, não contempla a história tal como ela é apresentada no livro, e modifica a compreensão de muito da ideia central da obra. Mas os personagens de
Esteban Trueba, vivido por
Jeremy Irons, e de
Clara del Valle, vivida por
Meryl Streep, são as atrações que, no filme, são mais consistentes com a forma como ambos são apresentados no livro, e valem a audiência de alguma forma.
Por fim, em minha humilde opinião, no meio do poder das mulheres existentes no livro, o personagem mais atraente e marcante é o de
Esteban Trueba; o que mais fascina neste personagem e que faz qualquer pessoa que leia o livro não desgostá-lo definitivamente é sua
autenticidade. Em sendo uma pessoa mais real, mais humana em todos os sentidos, e mesmo no sentido do arrependimento e da redenção final,
Esteban Trueba é um dos personagens mais fortes e intensos em muitos dos livros já lidos por este que aqui escreve, e vive uma vida longa e cheia de demônios, mas ninguém que se envolva com a estória de forma concentrada irá evitar derramar uma lágrima quando de sua morte na cama em seu lar... A redenção final é algo que transcende! Obra prima sem qualquer dúvida!!!