domingo, 29 de dezembro de 2013

Robinson Crusoé

    Tentando descobrir por que é tão importante que estórias sejam contadas, recentemente tenho me aprofundado em entender o papel que a arte desempenha em nossas vidas. Permitam-me contar sobre uma obra fascinante que muda a vida de qualquer pessoa que, de forma concentrada e dedicada, tenha se empenhado em degustá-la. Antes de falar sobre um dos mais importantes livros já escritos em toda a história da Literatura Ocidental, irei compartilhar uma das mais fascinantes ideias acerca do verdadeiro papel das estórias que me causa comoção sempre que vem à memória. 
     Ao final do filme mais importante, sem a menor dúvida, da carreira de Tim Burton, um dos diálogos apresentados entre o Dr. Bennet (Robert Guillaume) e Will Bloom (Billy Crudup), este o filho de Ed Bloom (Albert Finney), que se encontra internado num hospital à beira da morte após ter apresentado um acidente vascular encefálico, reflete bem o papel das estórias em nossas vidas. O diálogo é assim:

     Dr. Bennet: - Seu pai já contou do dia em que você nasceu?
     Will Bloom: - Mil vezes. Ele pegou um peixe impossível de ser pescado.
     Dr. Bennet: - Não essa. A estória verídica. Ele já lhe contou?
     Will Bloom: - Não.
    Dr. Bennet: - Sua mãe deu entrada perto das 15h00. Um vizinho lhe deu carona, pois seu pai tinha viajado a trabalho a Wichita. Você veio uma semana antes, mas sem complicações. Foi um parto perfeito. Seu pai lamentou não estar lá. Mas, na época, os homens não costumavam assistir aos partos e, por isso, não teria feito diferença se estivesse lá. Essa é a história verídica do seu nascimento. Não é muito emocionante, não é? Acho que se eu tivesse de escolher entre a versão verdadeira e uma inventada, envolvendo um peixe e uma aliança, talvez eu escolhesse a fantasiosa. Bom, é o que eu faria.
     Will Bloom: - Gostei da sua versão.

     No filme O Peixe Grande (Big Fish), de 2003, o enredo se desenvolve entre um pai e um filho que tentam uma espécie de reconciliação no final da vida daquele. O pai passou a vida toda contando estórias mirabolantes de eventos que afirma terem realmente ocorrido em sua vida, e muitos dos que estão ao seu redor adoram seus contos fantásticos; mas, o filho, não mais as admite e as considera mentiras que envolveram toda a sua vida... 

Cartaz do filme 'Big Fish', de 2003.

Tim Burton (diretor)
     Num dos filmes mais emocionantes sobre o papel da arte na vida do ser humano, mais precisamente a arte de contar estórias, Tim Burton não peca em absolutamente nenhum momento, e se utiliza de suas imagens fantásticas de forma cabal e altamente convincente. O mais importante é que o filme consegue transcender e colocar a arte como uma coisa essencial porque eterniza o ser humano. Após a morte do pai, o filho entende, enfim, o que aquele vinha tentando fazer com suas estórias que recriavam a realidade... Nas palavras do próprio filme:
     
     Will Bloom: - Um homem conta tantas vezes suas estórias que se torna uma delas. Elas vivem após sua morte. E, desse modo, ele se torna imortal...

     Espetacular!!! As estórias contadas repetidamente permitem que o ser humano se torne... imortal, eterno!!! Isto é tão verdade que o motivo desta postagem é tratar de um livro que foi publicado pela primeira vez em 1719 e consegue ecoar até os nossos tempos, certamente engrandecendo e mudando vidas até hoje... E é fascinante pensar que este é um prisma maravilhoso do papel da arte de contar estórias, pois, nos tornando imortais, significa que, daqui a muito e muito tempo, ela será capaz ainda de dar um sentido às vidas dos que estão por vir, comovendo-os sem a menor dúvida.
     
Albert Finney (faz o papel do pai, Ed Bloom, mais velho)

Ewan McGregor (faz o papel do pai, Ed Bloom, mais jovem)

Billy Crudup (faz o papel do filho, Will Bloom)

Robert Guillaume (faz o papel do médico da família, Dr. Bennet)
     Bom, o responsável por este livro tão importante foi Daniel Defoe, um jornalista e escritor inglês nascido em Londres em 1660. Nascido Daniel Foe, mudou seu nome aos 35 anos de idade para soar mais aristocrático. Seus pais eram dissidentes presbiterianos. Quando criança, Daniel testemunhou dois dos grandes desastres do século XVII: uma recorrência da peste e o Grande Incêndio de Londres de 1666. Estes eventos podem ter moldado sua fascinação por catástrofes e sobrevivência, temas presentes em suas obras. Tendo considerado em um momento de sua vida se tornar um Ministro Presbiteriano (ideia posta de lado mais adiante), seus valores protestantes duraram ao longo de sua vida a despeito de discriminações e perseguições, e estes são valores presentes em Robinson Crusoé. Em 1683, torna-se um mercador de malhas, tendo visitado a Holanda, a França e Espanha a negócios e desenvolvido um gosto por viagens que durou por toda a sua vida; sua ficção reflete este interesse em viagens, sendo que seu personagem principal título da referida obra muda sua vida viajando para longe de sua terra mãe, a Inglaterra. Daniel prospera como mercador por um bom tempo, mas por motivos políticos (crítico fervoroso do rei James II), é exilado em 1685 e somente retorna à Inglaterra em 1688 depois da Revolução Gloriosa que depôs o rei e o substitui por William de Orange; a partir de então, entretanto, não tem o mesmo sucesso financeiro e acumula débitos até o fim de sua vida, jamais se livrando totalmente deles (o tema do valor do dinheiro, inclusive, está presente na sua magnus opum). Por volta do início do século seguinte, começa a escrever também como forma de sustento financeiro; com uma de suas primeiras obras, um poema de 1701 intitulado The True-Born Englishman, torna-se popular e ganha alguma celebridade. Escreveu também alguns panfletos políticos que o levaram à cadeia (um deles intitulado The Shortest Way with Dissenters), tendo permanecido no presídio de NewGate em 1703. Neste período, seus negócios se arruinaram e ele se tornou mais ligados às letras após a libertação. Foi extremamente prolífico como escritor, tendo publicado em torno de 500 obras entre livros e panfletos ao longo de sua vida. Começou a escrever ficção tarde (por volta dos 60 anos), tendo sido Robinson Crusoé seu primeiro romance, publicado em 1719. Atraiu um grande público na classe média. Em 1722, lança seu segundo romance, Moll Flanders. Ambas as obras mesclam jornalismo e ficção; Robinson Crusoé foi baseado na história real de um marinheiro náufrago chamado de Alexander Selkirk, enquanto Moll Flanders inclui descrições sombrias de prisão advindas das próprias experiências do autor em NewGate e de entrevistas com prisioneiros. O foco em situações reais do cotidiano, evitando situações heróicas e pomposas, fez de Daniel um revolucionário na literatura inglesa, ajudando a definir um novo gênero de romance. Quanto ao estilo, foi um grande inovador, tendo usado uma escrita direta, simples e baseada em fatos, que se tornou o novo padrão do romance inglês. Com o tema da existência humana solitária em Robinson Crusoé, Daniel pavimentou o caminho para o tema central moderno da alienação e do isolamento. O escritor faleceu em 24 de abril de 1731 de uma 'letargia fatal', um diagnóstico pouco claro que pode ter correspondido a um acidente vascular encefálico.

Daniel Defoe (1660-1731)
     Antes de me aprofundar nos temas da obra, farei um resumo da trama. Robinson Crusoé é um inglês da cidade de York no século XVII; é o filho mais novo de um mercador de origem alemã. Encorajado por seu pai a estudar Direito, Crusoé expressa seu desejo de navegar pelo mundo em vez de estudar. Sua família é absolutamente contra suas investidas marítimas, e seu pai aconselha que é melhor procurar uma vida modesta e segura para si. Inicialmente, Crusoé pensa em obedecer a seu pai, mas não resiste à tentação de se aventurar pelo mar e embarca em um navio com destino a Londres com um amigo. Quando uma tempestade quase causa a morte dele e de seu amigo, este desiste de continuar a se aventurar pelo mar, mas Crusoé insiste nesta investida e tenta se tornar mercador num navio que parte de Londres. Esta viagem é financeiramente bem sucedida, e Crusoé planeja outra, deixando seus proventos sob os cuidados de uma viúva. Não há boa sorte na segunda viagem: o navio é apreendido por piratas mouros, e Crusoé é escravizado por um soberano da cidade de Salé no norte da África. Enquanto numa expedição de pesca, ele e um garoto escapam e navegam ao longo da costa africana. Um gentil capitão português os captura, compra o garoto escravo de Crusoé e leva esta para o Brasil. Lá, Crusoé se estabelece como um dono de plantação e rapidamente se torna bem sucedido. Ansiando pelo trabalho com escravos e por suas vantagens econômicas, ele embarca em uma expedição de coleta de escravos ao oeste da África, mas acaba naufragando na costa de TrinidadCrusoé logo percebe que é o único sobrevivente da expedição e procura abrigo e comida para si mesmo. Ele retorna aos destroços do naufrágio doze vezes e consegue encontrar e guardar armas, pólvora, alimento e outros itens. Em terra, ele encontra cabras e as pastoreia, alimentando-se delas; logo, constrói um abrigo. Ele ergue uma cruz em que inscreve a data de sua chegada à ilha (30 de setembro de 1659), inscrevendo uma marca na mesma para cada dia objetivando não perder a noção do tempo. Registra suas atividades em um diário. Em junho de 1660, ele adoece e tem uma alucinação em que um anjo o visita, advertindo-o a se arrepender. Bebendo rum embebido com tabaco, Crusoé experimenta uma iluminação religiosa e percebe que Deus o perdoou dos seus pecados anteriores. Após ter se recuperado, Crusoé faz uma inspeção de algumas áreas e descobre que se encontra numa ilha. Ele escontra um vale agradável em que abundam uvas e constrói um retiro à sombra (um caramanchão). Crusoé começa a se sentir mais otimista com relação a estar na ilha, descrevendo-se como o 'rei' dela. Ele treina um papagaio de estimação, toma uma cabra para domesticar e desenvolve habilidades em construção de cestos, em fazer pão e em trabalhar a cerâmica. Ele derruba um cedro enorme e constrói uma grande canoa a partir de seu tronco, mas ele percebe que não consegue arrastar esta canoa grande até o mar. Após construir um barco menor, ele navega ao redor da ilha mas quase perece quando é arrastado para longe dela por uma forte corrente. Alcançado a costa novamente, ele escuta seu papagaio chamando por seu nome e agradece por ter sido salvo mais uma vez. Ele permanece vários anos na ilha em paz. Um dia, Crusoé fica chocado ao descobrir a pegada de um homem na praia. Ele primeiro assume que a pegada é do demônio, mas decide que ela deve pertencer a um dos canibais que acredita viverem pela região. Aterrorizado, ele se arma e permanece à procura dos canibais. Ele constrói uma caverna subterrânea em que reúne suas cabras à noite e desenvolve um jeito de cozinhar no subsolo. Uma noite, ele ouve tiros; no dia seguinte, percebe um navio naufragado na sua costa. Os restos do navio se encontram vazio quando lá ele chega para investigar melhor. Crusoé mais uma vez agradece à Providência por ter sido salvo. Pouco depois, Crusoé descobre pedaços humanos pela costa, aparentemente os restos de um banquete canibal. Ele fica alarmado e continua vigilante. Mais tarde, Crusoé consegue visualizar trinta canibais chegando à costa com suas vítimas. Uma destas é morta; outra, que aguardava ser sacrificada, subitamente foge e corre em direção à habitação de Crusoé. Este protege o fugitivo, matando um dos perseguidores e ferindo outro, que é logo em seguida morto pelo fugitivo. Bem armado, Crusoé mata a maioria dos canibais na costa. O sobrevivente fugitivo faz voto de total submissão a Crusoé em gratidão por sua libertação. Este o nomeia Sexta-feira, uma homenagem ao dia em que o sobrevivente chegou à ilha e foi salvo. Crusoé faz de Sexta-feira servo. 

Capa de uma das edições do livro

Capa de uma das edições do livro
     Crusoé acha Sexta-feira disposto e inteligente. Ensina a este algumas palavras da língua inglesa e alguns conceitos do cristianismo. Sexta-feira, da sua parte, explica que os canibais são divididos em nações distintas e que eles somente se alimentam de seus inimigos; explica que alguns espanhóis sobreviventes de um naufrágio foram salvos por canibais e que estão vivendo por terras nas redondezas da ilha. Crusoé alimenta uma ideia de fazer contato com os espanhóis. Os dois constróem um barco com a ideia de visitar as terras vizinhas. Antes de terem uma chance de partir, eles são surpreendidos pela chegada de vinte e um canibais em canoas; os canibais trazem três vítimas, uma das quais está vestida como um europeu. Crusoé e Sexta-feira matam a maioria dos canibais e libertam o europeu, um espanhol. Sexta-feira fica cheio de alegria ao descobrir que uma das outras vítimas salva é seu pai. Os quatro homens são levados à habitação de Crusoé para descansarem e se alimentarem. Pouco depois, o pai de Sexta-feira e o espanhol são mandados em um barco para a terra vizinha de onde foram capturados para contatar os demais habitantes para um possível resgate posterior de Crusoé. Oito dias depois, um navio inglês se aproxima da costa e alarma Sexta-feira. Este e Crusoé percebem que onze homens levam três reféns à costa em um barco. Nove dos homens exploram a ilha, deixando dois guardas para vigiar os reféns. Crusoé e Sexta-feira conseguem deter os dois guardas e salvar os três reféns. Um destes é o capitão do navio, que foi vítima de um motim. Crusoé e Sexta-feira conseguem fazer, após algumas armadilhas e embates, com que os rebeldes se rendam. Crusoé e o capitão fingem que a ilha é um território imperial e que o governador da ilha poupou a vida dos rebeldes para que sejam levados à Inglaterra para serem julgados. Mantendo cinco homens como reféns, Crusoé envia os demais homens para apreender o navio. Quando o navio é resgatado e trazido até ele, Crusoé quase desmaia. Após vinte e seis anos na ilha, em 19 de dezembro de 1686, Crusoé embarca no navio para retornar à Inglaterra. Lá, descobre que seus pais morreram, restando apenas duas irmãs. Sua amiga viúva manteve o dinheiro dele a salvo todo esse tempo; após ter viajado a Lisboa, descobre que o gentil capitão português ainda estava vivo e, por este, que o seus negócios no Brasil prosperaram. Crusoé planeja vender suas terras no Brasil. Cansado e temeroso por novas viagens por mar, Crusoé tenta voltar para a Inglaterra por terra; nesta viagem, é ameaçado por mau tempo (neve) e animais selvagens (lobos e ursos) no norte da Espanha, quase perecendo. Finalmente chega à Inglaterra; com a venda de suas terras no exterior, faz boa fortuna. Após doar uma parte para a viúva e para as irmãs dele, Crusoé fica inquieto e considera retornar ao Brasil, mas desiste da ideia pelo pensamento de que teria que se tornar católico. Ele se casa; sua esposa morre. Crusoé finalmente parte para as Índias Orientais como mercador em 1694. Ele revisita sua antiga ilha, encontrando os espanhóis como governantes da mesma; percebe que se tornou uma colônia próspera.



     Alguns temas fundamentais podem ser extraídos da obra. A ambivalência da superioridade (domínio) é um dos mais evidentes; o sucesso de Crusoé em dominar a situação, superando os obstáculos e controlando seu ambiente apresenta a condição de comando como algo positivo no início do romance - Crusoé chega a um ambiente inabitado e o torna seu lar com maestria. O domínio de Crusoé sobre a natureza o torna mestre de si e do próprio destino. No começo do romance, ele frequentemente culpa a si mesmo por desobedecer ao conselho do pai ou culpa o destino que o levou para o mar; mas, ao longo da narrativa, Crusoé para de se ver como uma vítima passiva e se torna auto-determinado. Ao construir um novo lar para si na ilha, ele descobre que é o mestre da própria vida - ele sofre uma cruel fatalidade e, ainda assim, prospera. Entretanto, o tema do domínio se torna mais complexo e menos positivo com a chegada de Sexta-feira, e a ideia de superioridade acaba se aplicando mais à relação injusta entre os humanos; Crusoé ensina a Sexta-feira a falar a palavra 'mestre' antes de ensiná-lo a falar 'sim' ou 'não', e mesmo diz que 'mestre' é pra ser o nome a designar Crusoé. A este, nunca vem a ideia de considerar Sexta-feira como um igual - por alguma razão, a superioridade vem a Crusoé instintivamente. Assim, enquanto Crusoé parece louvável em dominar seu destino, o mérito de seu domínio sobre seus semelhantes é mais duvidoso. Defoe explora a relação entre os dois pontos de vista em sua representação da mente colonial. Outro tema evidente é o da necessidade de arrependimento; as experiências de Crusoé não constituem somente uma estória de aventuras em que coisas vibrantes acontecem, mas também uma discussão moral acerca das formas corretas e incorretas de se viver a vida. Estas dimensões moral e religiosa do relato é indicado no prefácio, o que atesta que a estória de Crusoé está sendo publicada para instruir outras pessoas na sabedoria de Deus, e uma parte de vital importância nesta sabedoria é o de se arrepender dos pecados cometidos. Enquanto é importante ser grato aos milagres de Deus, como o é Crusoé quando seus grãos brotam, não é suficiente apenas expressar gratidão ou mesmo rezar a Deus, como Crusoé faz várias vezes com poucos resultados. Ele precisa se arrepender mais do que agradecer, como ele aprende da figura angelical ardente que vem a ele durante uma alucinação num acesso febril e diz: 'vendo todas estas coisas não te levaram ao arrependimento; agora tu morrerás'. Crusoé acredita que seu maior pecado foi o comportamento rebelde diante do conselho de seu pai, e ele considera este o seu 'pecado original', fazendo referência à primeira desobediência de Adão e Eva a Deus. Esta referência bíblica também sugere que o exílio de Crusoé da civilização representa a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Éden. Para Crusoé, o verdadeiro arrependimento consiste em reconhecer sua miséria e absoluta dependência do Senhor. Esta admissão marca uma mudança na consciência espiritual dele, e este a considera uma experiência de renascimento. Após se arrepender, ele reclama muito menos do seu triste destino e vê a ilha de forma mais positiva. Posteriormente, quando Crusoé é resgatado e sua fortuna restaurada, ele se compara com Jó, da Bíblia, que também readquiriu benevolência divina. Ironicamente, esta visão da necessidade de arrependimento acaba justificando o pecado: Crusoé podia não ter aprendido a se arrepender se ele jamais tivesse desobedecido o seu pai. Assim, embora poderoso como tema na obra, a necessidade de arrependimento é, também, um tema complexo e ambíguo. Um último tema que merece destaque é o da importância da auto-consciência; a chegada de Crusoé à ilha não o retrocede a um ser primitivo, que age somente por instintos e é bruto - ao contrário dos animais, ele permanece consciente de si mesmo todo o tempo. Na verdade, sua existência na ilha acaba o aprofundando na auto-consciência na medida em que ele se afasta da sociedade do mundo externo e se torna introspectivo. A ideia de que o indivíduo deve manter uma cuidadosa avaliação do estado de sua própria alma é um ponto chave da doutrina Presbiteriana, que Defoe levou a sério por toda sua vida. Vemos que em situações cotidianas na ilha, Crusoé faz contas de si mesmo o tempo todo de forma entusiástica e de várias formas; por exemplo, é significativo que o calendário improvisado de Crusoé não simplesmente marca a passagem dos dias, mas, em vez disto, mais egocentricamente marca os dias que ele permaneceu na ilha - é sobre ele mesmo, uma espécie de auto-consciência ou calendário autobiográfico com 'ele' no centro. Crusoé sente a importância obsessiva de permanecer consciente de sua situação o tempo todo. Também percebemos o impulso de Crusoé para a auto-consciência no fato de que ele ensina o seu papagaio a falar 'pobre Robin Crusoé... Onde você esteve?' Este tipo de auto-avaliação é natural para qualquer pessoa sozinha numa ilha deserta, mas recebe uma estranha intensidade quando percebemos que Crusoé passou meses ensinando o pássaro a lhe dizer isto. Crusoé ensina a natureza a verbalizar sua auto-consciência.
     Com relação aos motivos, tecerei alguns comentários sobre três deles. O primeiro é o de contar e medirCrusoé é um cuidadoso anotador sempre que se trata de números e quantidades. Ele não simplesmente relata que sua cerca viva envolve um grande espaço, mas é obsessivo em dizer a área exata deste espaço; ele não nos relata simplesmente que levou um bom tempo para fazer o barco, mas que tomou precisamente vinte dias para derrubar a árvore e quatorze para remover os galhos, e diz também a medida exata de todas as dimensões da árvore. Estes exemplos sublinham o caráter prático e metódico e a abordagem 'mãos à obra' com relação à vida. Mas Defoe algumas vezes sugere alguma futilidade neste caráter de Crusoé - por exemplo, quando o barco metodicamente medido não consegue chegar ao mar, ou quando seu calendário obsessivamente guardado é jogado fora em um dia que dormiu demais. Defoe pode estar sutilmente zombando da necessidade de quantificar, mostrando-nos que, no final, tudo o que Crusoé conta nunca acrescenta muito em sua vida e nem o salva do isolamento. Outro motivo é do alimento; uma das primeiras preocupações de Crusoé após o naufrágio é com relação ao seu suprimento de comida. Quando consegue garantir que sempre haverá carne das cabras, há desaparecimento imediato da fome; a descoberta dos grãos é vista como um milagre, como maná dos céus. O cultivo de uvas, quase um luxo para a vida que levava Crusoé, marca um novo período de conforto na existência pela ilha. De certa forma, essas imagens de comida transmitem a Crusoé a habilidade de integrar a ilha à sua vida, da mesma forma que a comida é integrada ao corpo para permitir que o organismo cresça e prospere. Mas tão logo Crusoé domina a arte de garantir o alimento, ele começa a temer ser comido ele próprio pelos canibais. A vida dele sempre ilustra esta filosofia de comer ou ser comido, mesmo quando retorna mais tarde à Europa e é ameaçado por lobos. Comer é uma espécie de imagem da existência em si, do mesmo modo que ser comido significa morrer para ele. Um último motivo que merece destaque é o das provações no mar; os encontros de Crusoé com água no romance são frequentemente associados não somente com dificuldade, mas com um tipo de provação simbólica ou teste de caráter. Primeiro, a tempestade no início da narrativa afasta o amigo de Crusoé de se aventurar no mar, mas Crusoé persiste. Depois, na primeira viagem mercante, ele se prova capaz para o comércio e, na segunda viagem, ele se mostra capaz de sobreviver à escravidão; a sua fuga do soberano mouro e seu encontro bem sucedido com os africanos a seguir ocorrem, ambos, no mar. Mais significativamente, Crusoé sobrevive a um naufrágio após uma longa imersão na água. Mas o mar permanece sendo uma fonte de perigo e medo quando, mais tarde, traz os canibais em barcos. O naufrágio do navio espanhol lembra a Crusoé do poder destruidor da água e de sua própria sorte em ter sobrevivido. Todas as imagens de provações de vida na água ao longo do romance têm sutis associações com o ritual do batismo, em que os cristãos provam sua fé e entram numa nova vida salva por Cristo.


     Há ainda interessantes símbolos, estes que valem o destaque. Primeiramente, a pegada; o choque de Crusoé ao descobrir uma simples pegada na areia é um dos momentos mais famosos no romance, simbolizando os sentimentos conflituosos do nosso herói com relação à companhia humana. Mais cedo na narrativa, Crusoé confessa como sente a falta da companhia humana, mas a evidência de um outro homem na ilha o deixa em pânico. Imediatamente, ele interpreta a pegada negativamente, como a pegada do demônio ou de um agressor. Em nenhum momento ele demonstra a esperança de que a pegada pode pertencer a um anjo ou a outro europeu que poderia resgatá-lo ou se aliar a ele. Esta atitude instintivamente negativa e temerosa ao perceber a pegada pode nos levar a considerar que Crusoé talvez não deseje retornar à sociedade com os humanos afinal, e que o isolamento que ele vivencia pode ser, realmente, seu estado ideal. Outro símbolo importante é a cruz; o grande tamanho e as letras maiúsculas marcadas nela nos mostra o quão importante a mesma é para Crusoé como um dispositivo para cronometrar o tempo e, assim, também como uma forma de se relacionar com o mundo social maior lá fora, em que datas e calendários ainda importam. Mas a cruz é também um símbolo de sua nova existência na ilha, da mesma forma que a cruz cristã é um símbolo da nova vida em Cristo após o batismo, uma imersão em água semelhante à experiência de Crusoé no naufrágio. Ainda assim, a grande cruz de Crusoé parece de algum modo uma blasfêmia em não fazer nenhuma referência a Cristo; em vez disto, é um memorial a Crusoé em si, sublinhando o quão completamente ele se torna o centro de sua própria vida. Um último símbolo que merece destaque é o do caramanchão que Crusoé constrói; até o momento que ele encontra o vale em que construirá este, ele se preocupou somente com a sobrevivência. A construção do caramanchão marca um novo momento da existência dele na ilha, uma vez que passa a haver a ideia de viver com prazer. A vida na ilha não é mais necessariamente um desastre que denota puro sofrimento, mas pode ser uma oportunidade para se ter prazer e alegria - da mesma forma que, para os presbiterianos, a vida pode ser prazerosa somente após concluído o trabalho duro e alcançado o arrependimento.
     Interessante como este livro é inspirador e importante para qualquer um que se aventure a lê-lo. Inspirou alguns filmes homônimos e um filme mais recente, muito comovente: Náufrago (Cast Away), de 2000, dirigido por Robert Zemeckis e com Tom Hanks no papel principal. Interessante como há a ideia de que, isolado na ilha, distante do mundo lá fora, o indivíduo acaba crescendo interiormente e, por conseguinte, alcançando horizontes mais distantes. Robinson Crusoé nunca perdeu o senso de auto-análise; tendo se isolado e imergido em sua consciência, desenvolvendo discussões com ela quase que o tempo todo, ele pôde crescer como jamais se imaginou pudesse ter crescido (isto se infere da leitura da narrativa que nada em sua vida teria permitido que ele atingisse com tamanha proporção o engrandecimento pessoal). E é assim com a vida de todos nós; o isolamento muitas vezes é importante para o crescimento pessoal - quando você se isola para estudar para um vestibular, para um concurso, para as provações da vida. Obviamente, as experiências com o mundo em si são fundamentais; por exemplo, se Robinson Crusoé tivesse nascido na ilha e tivesse se criado sozinho desde a infância, sem conhecer o mundo lá fora, não haveria horizontes a confrontar, e os alicerces de sua existência seriam bem diferentes, com outros desfechos para a estória. Mas, sou levado a crer que a salvação da existência do personagem principal do livro se deveu, em essência, à preservação da auto-consciência; isto prova que o engrandecimento interior tem consequências inimagináveis no crescimento do indivíduo diante do mundo. Na música November Rain, do Guns N' Roses, há versos que descrevem esta ideia de que, o isolamento é, muitas vezes e em momentos importantes da vida, necessário: 'Sometimes I need some time on my own / Sometimes I need some time all alone / Everybody needs some time on their own / Don't you know you need some time all alone?' .

Capa do filme Náufrago, de 2000


     Em um dos momentos do livro em que Crusoé trabalha sua auto-consciência, percebemos o quão profundas são as conversas consigo mesmo. Vejamos um trecho do livro em que, ele, já tendo passado algum tempo na ilha, percebe o que realmente importa naquele momento e, portanto, o que importa em relação à vida, tecendo comentários contundentes acerca do dinheiro:
   
     'Em suma, a natureza e a experiência me ensinaram, mediante justa reflexão, que todas as coisas boas desse mundo não continuam sendo boas para nós quando não servem mais para nosso uso. E o que quer que nós pudéssemos acumular, mesmo para dar a outros, nós usufruímos somente na medida em que podemos usá-lo e nada além. O mais ganancioso e empedernido avarento do mundo teria se curado do vício da cobiça se estivesse na minha situação, pois eu possuía infinitamente mais coisas do que poderia fazer com elas. Não havia espaço para o desejo, exceto de coisas que não tinha, as quais não passavam de ninharias, embora fossem realmente de grande utilidade para mim. Tinha, como observei antes, um pouco de dinheiro, tanto em ouro como em prata, cerca de trinta e seis libras esterlinas. Pobre de mim, ali estava aquela coisa vil, melancólica e inútil. Não tinha como empregá-lo e muitas vezes pensava comigo mesmo que daria um punhado cheio dele por alguns cachimbos ou por um moedor para meu cereal. Na verdade, eu o teria entregue todo por seis pence de sementes de nabos e cenouras da Inglaterra, ou por um punhado de ervilhas e feijões e um frasco de tinta. Nessas circunstâncias, não me trazia a menor vantagem ou benefício; contudo, ali estava em uma gaveta, a criar mofo, com a umidade da caverna na estação chuvosa. E se eu tivesse a gaveta cheia de diamantes, a situação teria sido a mesma, e eles não teriam tido qualquer espécie de valor para mim, pois não teriam utilidade alguma.
     Agora, meu modo de vida tornara-se bem mais fácil do que a princípio e bem mais tranquilo, tanto para o espírito como para o corpo. Muitas vezes sentava-se a comer cheio de gratidão e admirava a mão da Providência, que assim servia minha mesa no deserto. Aprendi a olhar mais para o lado luminoso da minha condição e menos para o lado sombrio, e a considerar o que me dava prazer e não o que me faltava. Isso dava-me às vezes um tal conforto interior, que não poderia expressá-lo, e se o menciono aqui é para lembrar aqueles descontentes que não podem gozar confortavelmente o que Deus lhes deu, porque só vêem e cobiçam o que Ele não lhes concedeu. Todo nosso descontentamento em relação ao que não temos me parecia brotar da falta de gratidão pelo que possuímos.'

     Mas a vida de Robinson Crusoé poderia ter sido simplesmente contada assim: Esta é a estória de um jovem que naufragou numa ilha após desobedecer seu pai, lá sobreviveu por vinte e seis anos, tendo vivido grandes aventuras, e voltou para casa, tendo conseguido prosperar. Mas, prefiro todo o esmero dedicado por Daniel Defoe na narrativa, que conseguiu mudar paradigmas ao criar a história da vida de muitos de nós, pessoas comuns; e, ecoando e se repetindo ao longo dos tempos, torna Robinson Crusoé imortal, dando sentido à existência humana. Livro, sem dúvida, engrandecedor e inspirador! Uma obra prima!

domingo, 7 de julho de 2013

Um Pequeno Romance


     O que torna uma estória uma boa estória? Difícil dizer. Mas, acho que, após algumas divagações, o que torna uma estória notável é a capacidade que tem o leitor de absorver a inspiração que levou o autor a escrever a sua estória em um particular momento de fraqueza, não uma fraqueza no sentido literal do termo, mas uma espécie de abertura mental e receptividade àquilo que se está lendo, ouvindo, ou assistindo; é mais ou menos como se uma boa estória dependesse muito do estado de espírito do interlocutor. Isto é mais fácil de ser percebido, por exemplo, com as músicas; é possível que uma bela canção que gerou em nós grande emoção possa não o fazer igualmente todos os dias, haja vista que nem sempre nos encontramos em um estado de espírito favorável à absorção do que inspirou o compositor e daquilo que nos é apresentado. Mas existem as obras clássicas, e isto nos vários níveis de expressão da arte: Literatura, Música, Artes Plásticas, Cinema, etc. E, facilmente, surge outra pergunta: o que faz de uma obra clássica? Também é algo difícil de responder, mas acredito que isto provavelmente advém da qualidade da obra no que diz respeito à inovação em termos da técnica utilizada na composição da mesma em algum nível e/ou à abordagem que estes mestres clássicos dão aos dramas mais importantes na vida de cada um de nós, e visualizamos nestes dramas grandes conflitos humanos... Obviamente, nem toda obra considerada clássica é de fato uma boa estória no sentido estrito do termo, mas deverá sê-lo no sentido amplo da palavra; aí, entra o papel do interlocutor. Será que nunca aconteceu com você, leitor, de ler um livro considerado clássico e aquilo não causar um terremoto em seu espírito como era de se esperar? Quem sabe isto não tenha acontecido devido ao estado de espírito do interlocutor no momento da apreciação da obra, ou da falta de concentração ao apreciá-la, ou mesmo porque, eventualmente, este não se encontrava maduro ou preparado para aquilo que se encontrava diante de seus olhos ou ouvidos. E, não é difícil acontecer de, algumas vezes, ao se retornar à obra que não tenha causado tanta comoção assim numa primeira apreciação, possa fazer todo sentido numa segunda visualização; ora, parece, então, que o estado de espírito e maturidade do interlocutor é essencial ao se contemplar ou apreciar qualquer obra... Isto aconteceu comigo ao assistir a um filme duas vezes em momentos diferentes de minha vida, e o final de Blade Runner: O Caçador de Andróides fez, nos dias mais recentes, muito sentido.

Cartaz do filme Blade Runner, do diretor Ridley Scott, (1982)
Cena do filme Blade Runner (inovação técnica)
   Ao assistir ao referido filme de 1982 em um dos anos de minha infância, não teve jeito: apresentou-se um grande enfado e uma total desconexão com aquilo a que eu assistia. Ora, esperando que houvesse andróides, ciborgues, robôs, além do ambiente futurista (este sim, realmente evidente), com ação desenfreada e coisas do tipo, houve uma profunda negação e até revolta numa primeira apreciação. Uma criança que assiste a este filme, numa era pré-internet, diferente da que conhecemos hoje, dificilmente enxergará algum sentido. Mas, como o ser humano é, por definição, alguém inquieto, e estará sempre tentando retomar alguma coisa do passado e tentando aprender algo com aquilo que se 'deixou' para trás, revendo erros ou lacunas para que se chegue a acertos e completudes, permiti-me revê-lo em um momento mais recente, na minha quarta década de existência... Ah, e aquele filme não pode representar algo que não a essência da ficção científica, e coloca em pauta dramas profundos da existência humana; por isto, e por ser tecnicamente inovador para a época (repito: 1982), é considerado um clássico. E o final? Rutger Hauer, representando um andróide na chuva segurando uma pomba branca, dizendo um dos trechos mais emblemáticos e fortes do cinema em todos os tempos ao ser  humano falível, frágil e emotivo que pertence à espécie que o criou, Harrison Ford, o caçador de andróides. E foi isto que ele disse: 'I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched c-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.' Ou seja: 'Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Órion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, próximo do Portão de Tannhäuser. Todos estes momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer.' Poderia ficar discutindo por linhas e mais linhas sobre este trecho, mas basta dizer, para os fins desta postagem, que, ao dizê-lo, Roy, o personagem de Rutger Hauer, que no filme é um andróide que busca seu criador querendo descobrir uma forma de viver mais tempo do que os quatro anos a ele permitidos, acaba expressando algo que somente poderia caber ao ser humano, dotado de espírito e emoção - naquele momento, a criatura esboça uma transformação em criador, e quase se pode enxergar uma alma saindo de seu corpo robótico. O 'hora de morrer' é o ponto final de sua existência; para nós humanos, acreditamos, mesmo que alguns insistam em negar isto, que a morte não é o fim de tudo... Belíssimo fechamento para um, agora, grandioso filme em minha humilde opinião. Veja o trecho do filme abaixo:


   Acredito ser de conhecimento universal uma estória que começa com um coelho preocupado com o tempo, portando um relógio de bolso, seguido por uma menina que cai em sua toca e bebe um certo líquido que a deixa grande e passa a viver algumas aventuras num mundo fantástico, e que, no fim, é acordada por sua irmã e percebe que tudo se tratava de um sonho. Será? Bom, estou a falar de Alice no País das Maravilhas (Alice's Adventures in Wonderland), livro de Charles Lutwidge Dodgson, um romancista, matemático e poeta britânico que entrou para a história da literatura, sendo mais conhecido por seu pseudônimo: Lewis Carroll (1832-1898). Este livro, publicado em 1865 pela primeira vez, tem um estilo considerado nonsense, mas é bastante instigante como ele apresenta uma realidade com muito sense. Se não, vejamos!

Lewis Carroll (1832-1898)
Alice Pleasance Liddell (1852-1934), a garota real que inspirou a obra de Carroll
   Podemos observar alguns temas importantes. Um deles é a perda trágica e inevitável da inocência da infância; durante todo o curso das aventuras de Alice, ela passa por uma série de mudanças físicas absurdas. O desconforto que ela sente por nunca ser do tamanho certo acaba servindo como um símbolo para as mudanças que ocorrem durante a puberdade; Alice descobre que tais alterações são traumáticas, sentindo desconforto, frustração e tristeza quando passa por elas. Ela se esforça para manter um tamanho confortável, e as flutuações constantes representam a forma como a criança pode sentir o seu corpo crescendo e mudando durante a puberdade. Outro tema é o da vida como um quebra-cabeça sem sentido; nas suas aventuras, Alice encontra uma série deles que parecem não ter soluções muito claras, e isto parece imitar a forma como a vida frustra as expectativas. Ela, Alice, espera que as situações que ela enfrenta venham a fazer um certo tipo de sentido, mas estas repetidamente frustram a capacidade de ela explorar o 'País das Maravilhas'. Os problemas e charadas apresentados na obra não parecem ter propósito ou resposta; interessante como Alice descobre que ela não pode esperar encontrar  a lógica ou sentido nas situações que ela vivencia, mesmo quando estas parecem ser problemas, enigmas ou jogos que normalmente teriam soluções que ela seria capaz de descobrir. Carroll, também matemático, faz uma abordagem mais ampla sobre os caminhos que a vida frustra as expectativas e resiste a interpretações, mesmo quando os problemas parecem familiares e solúveis. Um outro tema é o da morte como uma ameaça constante e subjacente; Alice se encontra continuamente em situações em que há o risco de morte, e enquanto essas ameaças nunca se materializam, elas sugerem que a morte se esconde atrás dos acontecimentos ridículos do livro como um resultado real e possível. Ao longo do livro, Alice vai mudando a forma de pensar sobre a morte: no início, ela nunca considera a morte como um resultado possível, mas, no 'país das maravilhas', ao final do livro, a morte passa a parecer uma ameaça real, e ela começa a entender que os riscos que ela enfrenta podem não ser tão ridículos e absurdos, afinal, exatamente como uma adolescente, passando da infância para a vida adulta.

Capa do livro 'Alice no País das Maravilhas'
   Alguns motivos são muito interessantes no livro. O do sonho de Alice, por exemplo; o fato de as aventuras dela terem lugar em seu sonho permite que personagens e fenômenos do mundo real se misturem com elementos de seu profundo estado de inconsciência. O fato de tudo se passar num sonho explica a abundância de acontecimentos absurdos e díspares na estória; como num sonho, a narrativa segue o que aquele que está sonhando encontra e há a tentativa de interpretação das experiências oníricas em relação a si mesmo e ao mundo real. Embora as experiências de Alice se prestem a observações significativas, elas resistem a uma interpretação singular e coerente. Outro motivo é o da subversão; Alice descobre ao longo de suas aventuras que o único aspecto em que ela pode confiar no 'país das maravilhas' é que os acontecimentos irão frustar suas expectativas e desafiar sua compreensão da ordem natural do mundo. No seu sonho, Alice descobre que suas aulas não mais significam aquilo que ela pensava. O 'país das maravilhas' frustra os desejos de Alice de atender suas experiências sob uma estrutura lógica, em que ela pode enxergar o sentido na relação entre causa e efeito. Um outro motivo é a linguagem; Carroll brinca com as convenções linguísticas na obra, fazendo uso de trocadilhos e brincando com os vários significados das palavras ao longo do texto. O autor inventa palavras e expressões e desenvolve novos significados para elas, e isto sugere que Alice pode descrever o que vivencia de forma expansiva e para além das expectativas e convenções. Tudo é possível no 'país das maravilhas', e a manipulação da linguagem por parte do autor reflete este senso de possibilidade ilimitada.
   A simbologia por trás do texto do livro é, também, muito rica. Quase todos os objetos nas aventuras de Alice funcionam como um símbolo, mas nada representa claramente uma coisa específica ou particular. As ressonâncias simbólicas dos objetos que aparecem no 'país das maravilhas' são geralmente restritos ao episódio individual em que aparecem, embora com certa frequência os símbolos trabalhem em conjunto para transmitir um significado particular. Neste sentido, o jardim em que Alice adormece pode simbolizar o Jardim do Éden, um espaço idílico de beleza e inocência que ela não tem permissão para acessar; em um nível mais abstrato, o jardim pode simplesmente representar a experiência do desejo, em que Alice concentra sua energia e emoção na tentativa de alcançá-lo. Estes significados simbólicos trabalham em conjunto para enfatizar o desejo dela em reter seus sentimentos de inocência infantil, que ela deverá abandonar conforme amadurece.
   Por tudo isto, considero a estória de Lewis Carroll uma bela estória, capaz de engrandecer a mente que a absorve, tendo como grande tema o das mudanças da adolescência, um período de descobertas e de novas percepções, e o indivíduo neste período particular vive por mundos que acredita serem novos e totalmente desconhecidos, mas acaba percebendo, mais adiante na vida, que eles, sim, sempre existiram, sempre estiveram lá - por isto, este é um período tão fascinante em nossas vidas. O que mais me comove, até hoje, quando tratando de Alice no País das Maravilhas, é como Carroll retrata a visão que um adolescente, ou mesmo uma criança, tem dos adultos - percebam que, 'de cara', o início do sonho de Alice é ela tentando entender por que um coelho branco está com um relógio de bolso correndo 'atrás do tempo', e ela percebe que o coelho acaba não sabendo explicar porque está correndo 'atrás do tempo'. Quem, se não um adulto, está claramente estampado neste coelho... Os coelhos somos nós adultos, sempre atrasados para algo, correndo atrás de algo, tentando descobrir por que, mas sabendo que nunca iremos ter certeza plena desta resposta. Certamente é assim que uma criança enxerga um adulto... Grande percepção do ponto de vista dos mais novos! 
   Conhecer os lugares e as pessoas nos põe diante de boas estórias. Há alguns anos, visitamos uma cidade que está repleta de belíssimas estórias; com pouco mais de 270 mil habitantes, é um lugar fascinante. Por lá, caminha-se por estreitas ruas, não se encontram carros, se perde facilmente e, da mesma forma, se relocaliza com extrema rapidez. Caminhando por estas estreitas ruas, passa-se por pontes menores, algumas maiores, tem-se a impressão de se andar sobre as águas, encontram-se veículos aquáticos e se percebe que há uma grande singularidade em tudo por ali; não existe lugar parecido em qualquer lugar no mundo. No Dia dos Namorados naquele ano, passeávamos minha esposa e eu durante a noite e, sob a ajuda de Baco, visualizamos o mundo tal qual Alice - tudo era onírico! Jamais poderei descrever com precisão aquela noite, mas recordo-me que, após um saboroso jantar, passeando pelas ruelas, nos deparamos com vendedores ambulantes de máscaras de um dos carnavais mais clássicos e antigos que existe - o Carnaval de Veneza. Com um pouco de imaginação, era fácil ser transportado para anos e anos atrás - uma viagem no tempo tão magnífica como a viagem que fizemos àquele lugar. Passeando e vendo cada vez mais daquelas máscaras, imaginava pessoas com roupas da época, fogos de artifício, danças, sorrisos e mais sorrisos, e sempre uma atmosfera de mistério naquela cidade tão absorvente. No final daquela noite transcendental, o doce do sorvete italiano fez todo o sentido: éramos como magos numa terra mágica. 





   No dia seguinte, passeando por todas as cores e atmosfera daquela histórica e bela cidade, cada vez mais nos deparávamos com igrejas, cada uma mais aconchegante que a outra. Após uma pequena ruela, é chocante sair na Praça São Marcos, imensa, diante daquela Basílica Bizantina e do Palácio Ducal, além do Campanário. Fiquei mais feliz ao saber que uma de minhas cantoras preferidas, Norah Jones, iria se apresentar naquela belíssima e grandiosa praça alguns dias depois. Continuando o passeio cada vez mais estarrecedor, nos vimos diante de um cartaz que me lembrou uma boa estória. Conta-se que naquela cidade, alguns séculos antes, viveu um padre bastante prolífico - obviamente, este termo remete à sua obra, e não a seus descendentes. :) Tendo entrado para a História como o padre vermelho (il sacerdote rosso) compôs nada menos que 770 peças musicais, tendo morrido pobre e somente restabelecido o lugar no alto da ribalta após os anos 1900. Diz-se que Antonio Lucio Vivaldi (1678-1741), o compositor da famosíssima As Quatro Estações (Le Quattro Stagioni), o conjunto de quatro concertos para violino mais famoso da História da Música, respirava música, e nada mais invadia sua mente. Posicionados diante daquele cartaz, que apresentava datas de apresentações destes concertos de Vivaldi nos diversos teatros e igrejas da cidade, lembrei-me de uma estória sobre ele. Reza a lenda que, rezando, Deus aparecia sempre em sua mente sob a forma de música, e que, numa das vezes em que estava a celebrar uma missa, uma bela melodia lhe veio à mente. Interrompeu a homilia imediatamente, saiu correndo da igreja e pegou o primeiro violino que conseguiu encontrar, rapidamente tocando e escrevendo aquelas notas que lhe surgiram inspiradamente na cabeça. Assim lê-se romanticamente em algumas de suas biografias; mas, homens mais sérios insistem em deturpar o imaginário humano e afirmar que a asma o afastou dos aglomerados sacerdotais e da vida eclesiástica. :) O fato é que, depois deste cartaz, continuando o passeio pela belíssima Veneza, vez por outra se ouvia algumas das melodias de As Quatro Estações, principalmente próximo a igrejas.


Antonio Vivaldi (1678-1741)




   Perto do momento em que se iria por o sol, fizemos o passeio de gôndola, a embarcação mais romântica que existe, sem a menor dúvida. Emoção tamanha me tomou o espírito quando passamos por baixo da Ponte dos Suspiros. Fazendo parte do Palácio Ducal, diz-se que recebe este nome porque, separando o complexo principal do palácio de um anexo de celas que fazia parte deste mesmo palácio, esta ponte era o percurso realizado pelos condenados que seguiam para a cadeia - ao passar pela ponte, era o último momento em que viam o mundo lá fora, e, por isto, suspiravam. Esta é a versão provavelmente real do título dado à ponte; o que os livros não contam, entretanto, é que existe uma lenda que afirma que quando um casal de apaixonados passa por baixo dela em uma gôndola no momento em que o sol está se pondo, sob as badaladas dos sinos do Campanário da Basílica de São Marcos, e se beijam, eles terão um amor eterno. Você, leitor, acredita nesta lenda? Bom, alguém acreditou, e criou uma das mais belas estórias de amor do cinema. O mais interessante? Esta estória se deu entre duas pessoas muito, muito jovens...
   

   


   Um belíssimo filme de crianças para adultos pode ser apreciado em Um Pequeno Romance (A Little Romance), lançado em 1979. A estória apresenta Lauren King (Diane Lane) como uma estudante de 13 anos americana altamente inteligente vivendo em Paris com sua família rica. Ela passa o tempo livre lendo Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão que influenciou, entre outros, Jean-Paul Sartre (1905-1980). Daniel Michon (Thelonious Bernard) também é um estudante de 13 anos muito inteligente, francês, de uma pobre família, que adora os filmes de Hollywood e que usa seu talento com lógica e probabilidade para apostar em corridas de cavalo. Os dois se conhecem num museu em que um filme está sendo gravado e acabam se apaixonando. A mãe vulgar de Lauren, Sally Kellerman (1937-), proíbe arrogantemente o romance, considerando o garoto francês um 'imundo' inadequado para sua filha. Quando Daniel dá um soco no 'namorado' egocêntrico da mãe de Lauren, um diretor de filmes, os dois garotos são proibidos de se encontrar. Eles encontram Julius (Laurence Olivier, 1907-1989), um gentil senhor batedor de carteiras que conta sobre a lenda relatada anteriormente. Ao descobrir que irá embora de volta para os Estados Unidos em breve (para o Texas), Lauren traça um plano para que ela e Daniel viagem para Veneza com a ajuda de Julius e se beijem conforme a lenda, para que compartilhem um amor eterno.


Cartaz do filme 'Um Pequeno Romance'
George Roy Hill (1921-2002), diretor do filme  'Um Pequeno Romance'
Diane Lane
Diane Lane
Laurence Olivier
Thelonious Bernard
Sally Kellerman
   O filme é baseado no romance francês E=MC2, Mon Amour, de Patrick Cauvin (1932-2010), e celebra as pequenas alegrias da vida humana profundamente, reafirmando a nossa crença em céus azuis, amor juvenil e a promessa da primavera. É uma viagem indubitável à elevação do espírito! Sendo um filme despretensioso, encanta em cada cena, em cada parte do seu andamento natural e previsível, com uma preciosa e absorvente fotografia, mostrando o verdadeiro sentido em pequenas coisas. Desde o início, com o amor do jovem francês pelo cinema americano, percebe-se uma maturidade pouco comum aos jovens de uma época muito mais tradicional e sem acesso à internet como a conhecemos hoje; e qual não é sua emoção ao visualizar aquela que, certamente, lhe completa na figura de uma Diane Lane jovem, encantadora e já promissora, uma americana tão apaixonada por temas sobre a vida quanto ele. A influência da obra do bardo inglês, William Shakespeare, na peça Romeu e Julieta, é muito evidente, tanto pelo fato da pouca idade dos jovens quando se apaixonam quanto pela impossibilidade por motivos alheios a eles em viverem 'felizes para sempre'. 

Patrick Cauvin
   À medida que o filme se desenvolve, percebemos que um gentil senhor acaba enxergando precocemente tal afeição entre os pequenos e os incita a desenvolver este sentimento; a grandeza da mente dos jovens se apresenta no primeiro encontro com o senhor e quando temas de importância para a humanidade são logo discutidos e o senhor percebe o gosto em comum com parte das leituras que Lauren havia feito até então. Quando expõe o gosto pela poetisa inglesa Elizabeth Browning (1806-1861), Lauren absorve Julius em sua visão de mundo e na sua forma de expressar sentimentos; a recitação de um trecho de um dos sonetos de amor de Elizabeth dedicado ao seu marido, o também poeta Robert Browning (1802-1889), dá partida ao desejo dos jovens em ficarem juntos e impulsiona o filme, que se desenvolve em um único fôlego, absorvendo intensamente quem a ele assiste até o seu final. Criando uma mentira que acaba se tornando o principal motivo da estória do filme, o velho Julius, falível e frágil ladrão barato (batedor de carteiras), quis apenas acrescentar 'um pequeno romance' em sua amarga vida até então. Mas é esta mentira que é o meio que justificará o fim tão desejado pelos pequenos, estes que são capazes de ensinar ao pobre e experiente Julius ainda que adolescentes vivendo em um mundo muito particular.
   Tentando parecer diferente da Alice de Carroll, os jovens do filme tentam fugir de uma realidade que entendem e viver um sonho, o desejo de ficarem juntos até o fim de suas vidas. Antes de se dirigirem a Veneza para realizarem o que afirma a lenda contada por Julius, os três passam por Verona, e o fim é antecipado de certa forma... A analogia com Romeu e Julieta é expressa nesta passagem pela cidade dos jovens amantes que inspirou Shakespeare; ao apresentar tal passagem, o filme parece anunciar que, no fim, os jovens não ficarão juntos - mas a grandeza do filme está justamente no fato de muitos e muitos ensinamentos não dependerem do final mais lógico e provável, consistente com a essência de Daniel e com a inteligência e mentalidade de ambos os pequenos personagens. Thomas Wolfe (1900-1938) uma vez observou que 'o verdadeiro sentimento romântico não é desejar fugir à vida, mas prevenir que a vida fuja de você', e os jovens amantes expressam justamente isto. 

Elizabeth Browning 
Thomas Wolfe
   Numa passagem consistente com a conexão e mentalidade de ambos, eles conversam sobre o amor logo após terem repudiado um filme erótico, em que acontecia sexo sem amor. Eles conversam pela noite: ela - 'Eu costumava pensar, talvez há muito tempo, como no tempo dos faraós, ou de Luís XIII, que havia alguém feito sob medida para mim. Quer dizer, quando você pensa nisso, e considera que os sentimentos de amor começam por volta dos 10 anos, e se você viver até uns 70, bem, é bem limitante, porque que chance você tem dele estar vivo na mesma época que você?' Ele - 'Eu sinto a mesma coisa. Quero dizer, mesmo se ela vivesse na minha época, e se minha mulher perfeita morasse na Índia, ou Califórnia, ou Brasil? Que chance eu teria de encontrá-la vivendo em La Garenne?' Ela - 'É incrível, não acha?' Ele - 'Totalmente incrível!' 
   Como todo bom filme, há sempre uma referência que engradece a essência da trama. Neste caso, uma grande referência é à poetisa Elizabeth Browning, como já comentado. O livro 'Sonetos da Portuguesa' é um conjunto de poemas que ela escreveu sobre o amor, muitos para o seu amado Robert, com quem viria a se casar dois anos após ter iniciado a criação destes sonetos (de fato, por suas características físicas, Robert chamava Elizabeth de 'pequena portuguesa', daí o título da obra). Um deles, o soneto 43, é considerado um dos sonetos mais belos existentes em língua inglesa.

   How do I love thee? Let me count the ways.
   I love thee to the depth and breadth and height
   My soul can reach, when feeling out of sight
   For the ends of Being and ideal Grace.

   I love thee to the level of everyday's
   Most quiet need, by sun and candlelight.
   I love thee freely, as men strive for Right;
   I love thee purely, as they turn from Praise.

   I love thee with the passion put to use
   In my old griefs, and with my childhood's faith.

   I love thee with a love I seemed to lose
   With my lost saints, - I love thee with the breath,
   Smiles, tears, of all my life! - and, if God choose,
   I shall but love thee better after death.


   Manuel Bandeira traduziu este poema da seguinte forma:

   Amo-te quanto em largo, alto e profundo
   Minh'alma alcança quando, transportada,
   Sente, alongando os olhos deste mundo,
   Os fins do Ser; a Graça entressonhada.

   Amo-te em cada dia, hora e segundo:
   À luz do sol, na noite sossegada.
   E é tão pura a paixão de que me inundo
   Quanto o pudor dos que não pedem nada.

   Amo-te com o doer das velhas penas;
   Com sorrisos, com lágrimas de prece,
   E a fé da minha infância, ingênua e forte.

   Amo-te até nas coisas mais pequenas.
   Por toda a vida. E, assim Deus o quisesse,
   Ainda mais te amarei depois da morte.














   
   A verdade que transparece em Alice e nos jovens do filme é que passar pela adolescência dói. A racionalidade que chega a nós em forma de maturidade quando adultos parece estar sempre tentando retornar àquela inocência da infância, e estamos, de certa forma, quase sempre querendo experimentar sensações, emoções, deixar o superego adormecer um pouco... Mas este tempo já passou, e os filmes, as leituras e as músicas nos ajudam a viajar no tempo enquanto não podendo mudar o espaço de fato. Uma boa semana a todos!