Tentando descobrir por que é tão importante que estórias sejam contadas, recentemente tenho me aprofundado em entender o papel que a arte desempenha em nossas vidas. Permitam-me contar sobre uma obra fascinante que muda a vida de qualquer pessoa que, de forma concentrada e dedicada, tenha se empenhado em degustá-la. Antes de falar sobre um dos mais importantes livros já escritos em toda a história da Literatura Ocidental, irei compartilhar uma das mais fascinantes ideias acerca do verdadeiro papel das estórias que me causa comoção sempre que vem à memória.
Ao final do filme mais importante, sem a menor dúvida, da carreira de Tim Burton, um dos diálogos apresentados entre o Dr. Bennet (Robert Guillaume) e Will Bloom (Billy Crudup), este o filho de Ed Bloom (Albert Finney), que se encontra internado num hospital à beira da morte após ter apresentado um acidente vascular encefálico, reflete bem o papel das estórias em nossas vidas. O diálogo é assim:
Dr. Bennet: - Seu pai já contou do dia em que você nasceu?
Will Bloom: - Mil vezes. Ele pegou um peixe impossível de ser pescado.
Dr. Bennet: - Não essa. A estória verídica. Ele já lhe contou?
Will Bloom: - Não.
Dr. Bennet: - Sua mãe deu entrada perto das 15h00. Um vizinho lhe deu carona, pois seu pai tinha viajado a trabalho a Wichita. Você veio uma semana antes, mas sem complicações. Foi um parto perfeito. Seu pai lamentou não estar lá. Mas, na época, os homens não costumavam assistir aos partos e, por isso, não teria feito diferença se estivesse lá. Essa é a história verídica do seu nascimento. Não é muito emocionante, não é? Acho que se eu tivesse de escolher entre a versão verdadeira e uma inventada, envolvendo um peixe e uma aliança, talvez eu escolhesse a fantasiosa. Bom, é o que eu faria.
Will Bloom: - Gostei da sua versão.
No filme O Peixe Grande (Big Fish), de 2003, o enredo se desenvolve entre um pai e um filho que tentam uma espécie de reconciliação no final da vida daquele. O pai passou a vida toda contando estórias mirabolantes de eventos que afirma terem realmente ocorrido em sua vida, e muitos dos que estão ao seu redor adoram seus contos fantásticos; mas, o filho, não mais as admite e as considera mentiras que envolveram toda a sua vida...
Cartaz do filme 'Big Fish', de 2003. |
Tim Burton (diretor) |
Num dos filmes mais emocionantes sobre o papel da arte na vida do ser humano, mais precisamente a arte de contar estórias, Tim Burton não peca em absolutamente nenhum momento, e se utiliza de suas imagens fantásticas de forma cabal e altamente convincente. O mais importante é que o filme consegue transcender e colocar a arte como uma coisa essencial porque eterniza o ser humano. Após a morte do pai, o filho entende, enfim, o que aquele vinha tentando fazer com suas estórias que recriavam a realidade... Nas palavras do próprio filme:
Will Bloom: - Um homem conta tantas vezes suas estórias que se torna uma delas. Elas vivem após sua morte. E, desse modo, ele se torna imortal...
Espetacular!!! As estórias contadas repetidamente permitem que o ser humano se torne... imortal, eterno!!! Isto é tão verdade que o motivo desta postagem é tratar de um livro que foi publicado pela primeira vez em 1719 e consegue ecoar até os nossos tempos, certamente engrandecendo e mudando vidas até hoje... E é fascinante pensar que este é um prisma maravilhoso do papel da arte de contar estórias, pois, nos tornando imortais, significa que, daqui a muito e muito tempo, ela será capaz ainda de dar um sentido às vidas dos que estão por vir, comovendo-os sem a menor dúvida.
Albert Finney (faz o papel do pai, Ed Bloom, mais velho) |
Ewan McGregor (faz o papel do pai, Ed Bloom, mais jovem) |
Billy Crudup (faz o papel do filho, Will Bloom) |
Robert Guillaume (faz o papel do médico da família, Dr. Bennet) |
Bom, o responsável por este livro tão importante foi Daniel Defoe, um jornalista e escritor inglês nascido em Londres em 1660. Nascido Daniel Foe, mudou seu nome aos 35 anos de idade para soar mais aristocrático. Seus pais eram dissidentes presbiterianos. Quando criança, Daniel testemunhou dois dos grandes desastres do século XVII: uma recorrência da peste e o Grande Incêndio de Londres de 1666. Estes eventos podem ter moldado sua fascinação por catástrofes e sobrevivência, temas presentes em suas obras. Tendo considerado em um momento de sua vida se tornar um Ministro Presbiteriano (ideia posta de lado mais adiante), seus valores protestantes duraram ao longo de sua vida a despeito de discriminações e perseguições, e estes são valores presentes em Robinson Crusoé. Em 1683, torna-se um mercador de malhas, tendo visitado a Holanda, a França e Espanha a negócios e desenvolvido um gosto por viagens que durou por toda a sua vida; sua ficção reflete este interesse em viagens, sendo que seu personagem principal título da referida obra muda sua vida viajando para longe de sua terra mãe, a Inglaterra. Daniel prospera como mercador por um bom tempo, mas por motivos políticos (crítico fervoroso do rei James II), é exilado em 1685 e somente retorna à Inglaterra em 1688 depois da Revolução Gloriosa que depôs o rei e o substitui por William de Orange; a partir de então, entretanto, não tem o mesmo sucesso financeiro e acumula débitos até o fim de sua vida, jamais se livrando totalmente deles (o tema do valor do dinheiro, inclusive, está presente na sua magnus opum). Por volta do início do século seguinte, começa a escrever também como forma de sustento financeiro; com uma de suas primeiras obras, um poema de 1701 intitulado The True-Born Englishman, torna-se popular e ganha alguma celebridade. Escreveu também alguns panfletos políticos que o levaram à cadeia (um deles intitulado The Shortest Way with Dissenters), tendo permanecido no presídio de NewGate em 1703. Neste período, seus negócios se arruinaram e ele se tornou mais ligados às letras após a libertação. Foi extremamente prolífico como escritor, tendo publicado em torno de 500 obras entre livros e panfletos ao longo de sua vida. Começou a escrever ficção tarde (por volta dos 60 anos), tendo sido Robinson Crusoé seu primeiro romance, publicado em 1719. Atraiu um grande público na classe média. Em 1722, lança seu segundo romance, Moll Flanders. Ambas as obras mesclam jornalismo e ficção; Robinson Crusoé foi baseado na história real de um marinheiro náufrago chamado de Alexander Selkirk, enquanto Moll Flanders inclui descrições sombrias de prisão advindas das próprias experiências do autor em NewGate e de entrevistas com prisioneiros. O foco em situações reais do cotidiano, evitando situações heróicas e pomposas, fez de Daniel um revolucionário na literatura inglesa, ajudando a definir um novo gênero de romance. Quanto ao estilo, foi um grande inovador, tendo usado uma escrita direta, simples e baseada em fatos, que se tornou o novo padrão do romance inglês. Com o tema da existência humana solitária em Robinson Crusoé, Daniel pavimentou o caminho para o tema central moderno da alienação e do isolamento. O escritor faleceu em 24 de abril de 1731 de uma 'letargia fatal', um diagnóstico pouco claro que pode ter correspondido a um acidente vascular encefálico.
Daniel Defoe (1660-1731) |
Antes de me aprofundar nos temas da obra, farei um resumo da trama. Robinson Crusoé é um inglês da cidade de York no século XVII; é o filho mais novo de um mercador de origem alemã. Encorajado por seu pai a estudar Direito, Crusoé expressa seu desejo de navegar pelo mundo em vez de estudar. Sua família é absolutamente contra suas investidas marítimas, e seu pai aconselha que é melhor procurar uma vida modesta e segura para si. Inicialmente, Crusoé pensa em obedecer a seu pai, mas não resiste à tentação de se aventurar pelo mar e embarca em um navio com destino a Londres com um amigo. Quando uma tempestade quase causa a morte dele e de seu amigo, este desiste de continuar a se aventurar pelo mar, mas Crusoé insiste nesta investida e tenta se tornar mercador num navio que parte de Londres. Esta viagem é financeiramente bem sucedida, e Crusoé planeja outra, deixando seus proventos sob os cuidados de uma viúva. Não há boa sorte na segunda viagem: o navio é apreendido por piratas mouros, e Crusoé é escravizado por um soberano da cidade de Salé no norte da África. Enquanto numa expedição de pesca, ele e um garoto escapam e navegam ao longo da costa africana. Um gentil capitão português os captura, compra o garoto escravo de Crusoé e leva esta para o Brasil. Lá, Crusoé se estabelece como um dono de plantação e rapidamente se torna bem sucedido. Ansiando pelo trabalho com escravos e por suas vantagens econômicas, ele embarca em uma expedição de coleta de escravos ao oeste da África, mas acaba naufragando na costa de Trinidad. Crusoé logo percebe que é o único sobrevivente da expedição e procura abrigo e comida para si mesmo. Ele retorna aos destroços do naufrágio doze vezes e consegue encontrar e guardar armas, pólvora, alimento e outros itens. Em terra, ele encontra cabras e as pastoreia, alimentando-se delas; logo, constrói um abrigo. Ele ergue uma cruz em que inscreve a data de sua chegada à ilha (30 de setembro de 1659), inscrevendo uma marca na mesma para cada dia objetivando não perder a noção do tempo. Registra suas atividades em um diário. Em junho de 1660, ele adoece e tem uma alucinação em que um anjo o visita, advertindo-o a se arrepender. Bebendo rum embebido com tabaco, Crusoé experimenta uma iluminação religiosa e percebe que Deus o perdoou dos seus pecados anteriores. Após ter se recuperado, Crusoé faz uma inspeção de algumas áreas e descobre que se encontra numa ilha. Ele escontra um vale agradável em que abundam uvas e constrói um retiro à sombra (um caramanchão). Crusoé começa a se sentir mais otimista com relação a estar na ilha, descrevendo-se como o 'rei' dela. Ele treina um papagaio de estimação, toma uma cabra para domesticar e desenvolve habilidades em construção de cestos, em fazer pão e em trabalhar a cerâmica. Ele derruba um cedro enorme e constrói uma grande canoa a partir de seu tronco, mas ele percebe que não consegue arrastar esta canoa grande até o mar. Após construir um barco menor, ele navega ao redor da ilha mas quase perece quando é arrastado para longe dela por uma forte corrente. Alcançado a costa novamente, ele escuta seu papagaio chamando por seu nome e agradece por ter sido salvo mais uma vez. Ele permanece vários anos na ilha em paz. Um dia, Crusoé fica chocado ao descobrir a pegada de um homem na praia. Ele primeiro assume que a pegada é do demônio, mas decide que ela deve pertencer a um dos canibais que acredita viverem pela região. Aterrorizado, ele se arma e permanece à procura dos canibais. Ele constrói uma caverna subterrânea em que reúne suas cabras à noite e desenvolve um jeito de cozinhar no subsolo. Uma noite, ele ouve tiros; no dia seguinte, percebe um navio naufragado na sua costa. Os restos do navio se encontram vazio quando lá ele chega para investigar melhor. Crusoé mais uma vez agradece à Providência por ter sido salvo. Pouco depois, Crusoé descobre pedaços humanos pela costa, aparentemente os restos de um banquete canibal. Ele fica alarmado e continua vigilante. Mais tarde, Crusoé consegue visualizar trinta canibais chegando à costa com suas vítimas. Uma destas é morta; outra, que aguardava ser sacrificada, subitamente foge e corre em direção à habitação de Crusoé. Este protege o fugitivo, matando um dos perseguidores e ferindo outro, que é logo em seguida morto pelo fugitivo. Bem armado, Crusoé mata a maioria dos canibais na costa. O sobrevivente fugitivo faz voto de total submissão a Crusoé em gratidão por sua libertação. Este o nomeia Sexta-feira, uma homenagem ao dia em que o sobrevivente chegou à ilha e foi salvo. Crusoé faz de Sexta-feira servo.
Capa de uma das edições do livro |
Capa de uma das edições do livro |
Crusoé acha Sexta-feira disposto e inteligente. Ensina a este algumas palavras da língua inglesa e alguns conceitos do cristianismo. Sexta-feira, da sua parte, explica que os canibais são divididos em nações distintas e que eles somente se alimentam de seus inimigos; explica que alguns espanhóis sobreviventes de um naufrágio foram salvos por canibais e que estão vivendo por terras nas redondezas da ilha. Crusoé alimenta uma ideia de fazer contato com os espanhóis. Os dois constróem um barco com a ideia de visitar as terras vizinhas. Antes de terem uma chance de partir, eles são surpreendidos pela chegada de vinte e um canibais em canoas; os canibais trazem três vítimas, uma das quais está vestida como um europeu. Crusoé e Sexta-feira matam a maioria dos canibais e libertam o europeu, um espanhol. Sexta-feira fica cheio de alegria ao descobrir que uma das outras vítimas salva é seu pai. Os quatro homens são levados à habitação de Crusoé para descansarem e se alimentarem. Pouco depois, o pai de Sexta-feira e o espanhol são mandados em um barco para a terra vizinha de onde foram capturados para contatar os demais habitantes para um possível resgate posterior de Crusoé. Oito dias depois, um navio inglês se aproxima da costa e alarma Sexta-feira. Este e Crusoé percebem que onze homens levam três reféns à costa em um barco. Nove dos homens exploram a ilha, deixando dois guardas para vigiar os reféns. Crusoé e Sexta-feira conseguem deter os dois guardas e salvar os três reféns. Um destes é o capitão do navio, que foi vítima de um motim. Crusoé e Sexta-feira conseguem fazer, após algumas armadilhas e embates, com que os rebeldes se rendam. Crusoé e o capitão fingem que a ilha é um território imperial e que o governador da ilha poupou a vida dos rebeldes para que sejam levados à Inglaterra para serem julgados. Mantendo cinco homens como reféns, Crusoé envia os demais homens para apreender o navio. Quando o navio é resgatado e trazido até ele, Crusoé quase desmaia. Após vinte e seis anos na ilha, em 19 de dezembro de 1686, Crusoé embarca no navio para retornar à Inglaterra. Lá, descobre que seus pais morreram, restando apenas duas irmãs. Sua amiga viúva manteve o dinheiro dele a salvo todo esse tempo; após ter viajado a Lisboa, descobre que o gentil capitão português ainda estava vivo e, por este, que o seus negócios no Brasil prosperaram. Crusoé planeja vender suas terras no Brasil. Cansado e temeroso por novas viagens por mar, Crusoé tenta voltar para a Inglaterra por terra; nesta viagem, é ameaçado por mau tempo (neve) e animais selvagens (lobos e ursos) no norte da Espanha, quase perecendo. Finalmente chega à Inglaterra; com a venda de suas terras no exterior, faz boa fortuna. Após doar uma parte para a viúva e para as irmãs dele, Crusoé fica inquieto e considera retornar ao Brasil, mas desiste da ideia pelo pensamento de que teria que se tornar católico. Ele se casa; sua esposa morre. Crusoé finalmente parte para as Índias Orientais como mercador em 1694. Ele revisita sua antiga ilha, encontrando os espanhóis como governantes da mesma; percebe que se tornou uma colônia próspera.
Alguns temas fundamentais podem ser extraídos da obra. A ambivalência da superioridade (domínio) é um dos mais evidentes; o sucesso de Crusoé em dominar a situação, superando os obstáculos e controlando seu ambiente apresenta a condição de comando como algo positivo no início do romance - Crusoé chega a um ambiente inabitado e o torna seu lar com maestria. O domínio de Crusoé sobre a natureza o torna mestre de si e do próprio destino. No começo do romance, ele frequentemente culpa a si mesmo por desobedecer ao conselho do pai ou culpa o destino que o levou para o mar; mas, ao longo da narrativa, Crusoé para de se ver como uma vítima passiva e se torna auto-determinado. Ao construir um novo lar para si na ilha, ele descobre que é o mestre da própria vida - ele sofre uma cruel fatalidade e, ainda assim, prospera. Entretanto, o tema do domínio se torna mais complexo e menos positivo com a chegada de Sexta-feira, e a ideia de superioridade acaba se aplicando mais à relação injusta entre os humanos; Crusoé ensina a Sexta-feira a falar a palavra 'mestre' antes de ensiná-lo a falar 'sim' ou 'não', e mesmo diz que 'mestre' é pra ser o nome a designar Crusoé. A este, nunca vem a ideia de considerar Sexta-feira como um igual - por alguma razão, a superioridade vem a Crusoé instintivamente. Assim, enquanto Crusoé parece louvável em dominar seu destino, o mérito de seu domínio sobre seus semelhantes é mais duvidoso. Defoe explora a relação entre os dois pontos de vista em sua representação da mente colonial. Outro tema evidente é o da necessidade de arrependimento; as experiências de Crusoé não constituem somente uma estória de aventuras em que coisas vibrantes acontecem, mas também uma discussão moral acerca das formas corretas e incorretas de se viver a vida. Estas dimensões moral e religiosa do relato é indicado no prefácio, o que atesta que a estória de Crusoé está sendo publicada para instruir outras pessoas na sabedoria de Deus, e uma parte de vital importância nesta sabedoria é o de se arrepender dos pecados cometidos. Enquanto é importante ser grato aos milagres de Deus, como o é Crusoé quando seus grãos brotam, não é suficiente apenas expressar gratidão ou mesmo rezar a Deus, como Crusoé faz várias vezes com poucos resultados. Ele precisa se arrepender mais do que agradecer, como ele aprende da figura angelical ardente que vem a ele durante uma alucinação num acesso febril e diz: 'vendo todas estas coisas não te levaram ao arrependimento; agora tu morrerás'. Crusoé acredita que seu maior pecado foi o comportamento rebelde diante do conselho de seu pai, e ele considera este o seu 'pecado original', fazendo referência à primeira desobediência de Adão e Eva a Deus. Esta referência bíblica também sugere que o exílio de Crusoé da civilização representa a expulsão de Adão e Eva dos jardins do Éden. Para Crusoé, o verdadeiro arrependimento consiste em reconhecer sua miséria e absoluta dependência do Senhor. Esta admissão marca uma mudança na consciência espiritual dele, e este a considera uma experiência de renascimento. Após se arrepender, ele reclama muito menos do seu triste destino e vê a ilha de forma mais positiva. Posteriormente, quando Crusoé é resgatado e sua fortuna restaurada, ele se compara com Jó, da Bíblia, que também readquiriu benevolência divina. Ironicamente, esta visão da necessidade de arrependimento acaba justificando o pecado: Crusoé podia não ter aprendido a se arrepender se ele jamais tivesse desobedecido o seu pai. Assim, embora poderoso como tema na obra, a necessidade de arrependimento é, também, um tema complexo e ambíguo. Um último tema que merece destaque é o da importância da auto-consciência; a chegada de Crusoé à ilha não o retrocede a um ser primitivo, que age somente por instintos e é bruto - ao contrário dos animais, ele permanece consciente de si mesmo todo o tempo. Na verdade, sua existência na ilha acaba o aprofundando na auto-consciência na medida em que ele se afasta da sociedade do mundo externo e se torna introspectivo. A ideia de que o indivíduo deve manter uma cuidadosa avaliação do estado de sua própria alma é um ponto chave da doutrina Presbiteriana, que Defoe levou a sério por toda sua vida. Vemos que em situações cotidianas na ilha, Crusoé faz contas de si mesmo o tempo todo de forma entusiástica e de várias formas; por exemplo, é significativo que o calendário improvisado de Crusoé não simplesmente marca a passagem dos dias, mas, em vez disto, mais egocentricamente marca os dias que ele permaneceu na ilha - é sobre ele mesmo, uma espécie de auto-consciência ou calendário autobiográfico com 'ele' no centro. Crusoé sente a importância obsessiva de permanecer consciente de sua situação o tempo todo. Também percebemos o impulso de Crusoé para a auto-consciência no fato de que ele ensina o seu papagaio a falar 'pobre Robin Crusoé... Onde você esteve?' Este tipo de auto-avaliação é natural para qualquer pessoa sozinha numa ilha deserta, mas recebe uma estranha intensidade quando percebemos que Crusoé passou meses ensinando o pássaro a lhe dizer isto. Crusoé ensina a natureza a verbalizar sua auto-consciência.
Com relação aos motivos, tecerei alguns comentários sobre três deles. O primeiro é o de contar e medir; Crusoé é um cuidadoso anotador sempre que se trata de números e quantidades. Ele não simplesmente relata que sua cerca viva envolve um grande espaço, mas é obsessivo em dizer a área exata deste espaço; ele não nos relata simplesmente que levou um bom tempo para fazer o barco, mas que tomou precisamente vinte dias para derrubar a árvore e quatorze para remover os galhos, e diz também a medida exata de todas as dimensões da árvore. Estes exemplos sublinham o caráter prático e metódico e a abordagem 'mãos à obra' com relação à vida. Mas Defoe algumas vezes sugere alguma futilidade neste caráter de Crusoé - por exemplo, quando o barco metodicamente medido não consegue chegar ao mar, ou quando seu calendário obsessivamente guardado é jogado fora em um dia que dormiu demais. Defoe pode estar sutilmente zombando da necessidade de quantificar, mostrando-nos que, no final, tudo o que Crusoé conta nunca acrescenta muito em sua vida e nem o salva do isolamento. Outro motivo é do alimento; uma das primeiras preocupações de Crusoé após o naufrágio é com relação ao seu suprimento de comida. Quando consegue garantir que sempre haverá carne das cabras, há desaparecimento imediato da fome; a descoberta dos grãos é vista como um milagre, como maná dos céus. O cultivo de uvas, quase um luxo para a vida que levava Crusoé, marca um novo período de conforto na existência pela ilha. De certa forma, essas imagens de comida transmitem a Crusoé a habilidade de integrar a ilha à sua vida, da mesma forma que a comida é integrada ao corpo para permitir que o organismo cresça e prospere. Mas tão logo Crusoé domina a arte de garantir o alimento, ele começa a temer ser comido ele próprio pelos canibais. A vida dele sempre ilustra esta filosofia de comer ou ser comido, mesmo quando retorna mais tarde à Europa e é ameaçado por lobos. Comer é uma espécie de imagem da existência em si, do mesmo modo que ser comido significa morrer para ele. Um último motivo que merece destaque é o das provações no mar; os encontros de Crusoé com água no romance são frequentemente associados não somente com dificuldade, mas com um tipo de provação simbólica ou teste de caráter. Primeiro, a tempestade no início da narrativa afasta o amigo de Crusoé de se aventurar no mar, mas Crusoé persiste. Depois, na primeira viagem mercante, ele se prova capaz para o comércio e, na segunda viagem, ele se mostra capaz de sobreviver à escravidão; a sua fuga do soberano mouro e seu encontro bem sucedido com os africanos a seguir ocorrem, ambos, no mar. Mais significativamente, Crusoé sobrevive a um naufrágio após uma longa imersão na água. Mas o mar permanece sendo uma fonte de perigo e medo quando, mais tarde, traz os canibais em barcos. O naufrágio do navio espanhol lembra a Crusoé do poder destruidor da água e de sua própria sorte em ter sobrevivido. Todas as imagens de provações de vida na água ao longo do romance têm sutis associações com o ritual do batismo, em que os cristãos provam sua fé e entram numa nova vida salva por Cristo.
Há ainda interessantes símbolos, estes que valem o destaque. Primeiramente, a pegada; o choque de Crusoé ao descobrir uma simples pegada na areia é um dos momentos mais famosos no romance, simbolizando os sentimentos conflituosos do nosso herói com relação à companhia humana. Mais cedo na narrativa, Crusoé confessa como sente a falta da companhia humana, mas a evidência de um outro homem na ilha o deixa em pânico. Imediatamente, ele interpreta a pegada negativamente, como a pegada do demônio ou de um agressor. Em nenhum momento ele demonstra a esperança de que a pegada pode pertencer a um anjo ou a outro europeu que poderia resgatá-lo ou se aliar a ele. Esta atitude instintivamente negativa e temerosa ao perceber a pegada pode nos levar a considerar que Crusoé talvez não deseje retornar à sociedade com os humanos afinal, e que o isolamento que ele vivencia pode ser, realmente, seu estado ideal. Outro símbolo importante é a cruz; o grande tamanho e as letras maiúsculas marcadas nela nos mostra o quão importante a mesma é para Crusoé como um dispositivo para cronometrar o tempo e, assim, também como uma forma de se relacionar com o mundo social maior lá fora, em que datas e calendários ainda importam. Mas a cruz é também um símbolo de sua nova existência na ilha, da mesma forma que a cruz cristã é um símbolo da nova vida em Cristo após o batismo, uma imersão em água semelhante à experiência de Crusoé no naufrágio. Ainda assim, a grande cruz de Crusoé parece de algum modo uma blasfêmia em não fazer nenhuma referência a Cristo; em vez disto, é um memorial a Crusoé em si, sublinhando o quão completamente ele se torna o centro de sua própria vida. Um último símbolo que merece destaque é o do caramanchão que Crusoé constrói; até o momento que ele encontra o vale em que construirá este, ele se preocupou somente com a sobrevivência. A construção do caramanchão marca um novo momento da existência dele na ilha, uma vez que passa a haver a ideia de viver com prazer. A vida na ilha não é mais necessariamente um desastre que denota puro sofrimento, mas pode ser uma oportunidade para se ter prazer e alegria - da mesma forma que, para os presbiterianos, a vida pode ser prazerosa somente após concluído o trabalho duro e alcançado o arrependimento.
Interessante como este livro é inspirador e importante para qualquer um que se aventure a lê-lo. Inspirou alguns filmes homônimos e um filme mais recente, muito comovente: Náufrago (Cast Away), de 2000, dirigido por Robert Zemeckis e com Tom Hanks no papel principal. Interessante como há a ideia de que, isolado na ilha, distante do mundo lá fora, o indivíduo acaba crescendo interiormente e, por conseguinte, alcançando horizontes mais distantes. Robinson Crusoé nunca perdeu o senso de auto-análise; tendo se isolado e imergido em sua consciência, desenvolvendo discussões com ela quase que o tempo todo, ele pôde crescer como jamais se imaginou pudesse ter crescido (isto se infere da leitura da narrativa que nada em sua vida teria permitido que ele atingisse com tamanha proporção o engrandecimento pessoal). E é assim com a vida de todos nós; o isolamento muitas vezes é importante para o crescimento pessoal - quando você se isola para estudar para um vestibular, para um concurso, para as provações da vida. Obviamente, as experiências com o mundo em si são fundamentais; por exemplo, se Robinson Crusoé tivesse nascido na ilha e tivesse se criado sozinho desde a infância, sem conhecer o mundo lá fora, não haveria horizontes a confrontar, e os alicerces de sua existência seriam bem diferentes, com outros desfechos para a estória. Mas, sou levado a crer que a salvação da existência do personagem principal do livro se deveu, em essência, à preservação da auto-consciência; isto prova que o engrandecimento interior tem consequências inimagináveis no crescimento do indivíduo diante do mundo. Na música November Rain, do Guns N' Roses, há versos que descrevem esta ideia de que, o isolamento é, muitas vezes e em momentos importantes da vida, necessário: 'Sometimes I need some time on my own / Sometimes I need some time all alone / Everybody needs some time on their own / Don't you know you need some time all alone?' .
Capa do filme Náufrago, de 2000 |
Em um dos momentos do livro em que Crusoé trabalha sua auto-consciência, percebemos o quão profundas são as conversas consigo mesmo. Vejamos um trecho do livro em que, ele, já tendo passado algum tempo na ilha, percebe o que realmente importa naquele momento e, portanto, o que importa em relação à vida, tecendo comentários contundentes acerca do dinheiro:
'Em suma, a natureza e a experiência me ensinaram, mediante justa reflexão, que todas as coisas boas desse mundo não continuam sendo boas para nós quando não servem mais para nosso uso. E o que quer que nós pudéssemos acumular, mesmo para dar a outros, nós usufruímos somente na medida em que podemos usá-lo e nada além. O mais ganancioso e empedernido avarento do mundo teria se curado do vício da cobiça se estivesse na minha situação, pois eu possuía infinitamente mais coisas do que poderia fazer com elas. Não havia espaço para o desejo, exceto de coisas que não tinha, as quais não passavam de ninharias, embora fossem realmente de grande utilidade para mim. Tinha, como observei antes, um pouco de dinheiro, tanto em ouro como em prata, cerca de trinta e seis libras esterlinas. Pobre de mim, ali estava aquela coisa vil, melancólica e inútil. Não tinha como empregá-lo e muitas vezes pensava comigo mesmo que daria um punhado cheio dele por alguns cachimbos ou por um moedor para meu cereal. Na verdade, eu o teria entregue todo por seis pence de sementes de nabos e cenouras da Inglaterra, ou por um punhado de ervilhas e feijões e um frasco de tinta. Nessas circunstâncias, não me trazia a menor vantagem ou benefício; contudo, ali estava em uma gaveta, a criar mofo, com a umidade da caverna na estação chuvosa. E se eu tivesse a gaveta cheia de diamantes, a situação teria sido a mesma, e eles não teriam tido qualquer espécie de valor para mim, pois não teriam utilidade alguma.
Agora, meu modo de vida tornara-se bem mais fácil do que a princípio e bem mais tranquilo, tanto para o espírito como para o corpo. Muitas vezes sentava-se a comer cheio de gratidão e admirava a mão da Providência, que assim servia minha mesa no deserto. Aprendi a olhar mais para o lado luminoso da minha condição e menos para o lado sombrio, e a considerar o que me dava prazer e não o que me faltava. Isso dava-me às vezes um tal conforto interior, que não poderia expressá-lo, e se o menciono aqui é para lembrar aqueles descontentes que não podem gozar confortavelmente o que Deus lhes deu, porque só vêem e cobiçam o que Ele não lhes concedeu. Todo nosso descontentamento em relação ao que não temos me parecia brotar da falta de gratidão pelo que possuímos.'
Mas a vida de Robinson Crusoé poderia ter sido simplesmente contada assim: Esta é a estória de um jovem que naufragou numa ilha após desobedecer seu pai, lá sobreviveu por vinte e seis anos, tendo vivido grandes aventuras, e voltou para casa, tendo conseguido prosperar. Mas, prefiro todo o esmero dedicado por Daniel Defoe na narrativa, que conseguiu mudar paradigmas ao criar a história da vida de muitos de nós, pessoas comuns; e, ecoando e se repetindo ao longo dos tempos, torna Robinson Crusoé imortal, dando sentido à existência humana. Livro, sem dúvida, engrandecedor e inspirador! Uma obra prima!
'Em suma, a natureza e a experiência me ensinaram, mediante justa reflexão, que todas as coisas boas desse mundo não continuam sendo boas para nós quando não servem mais para nosso uso. E o que quer que nós pudéssemos acumular, mesmo para dar a outros, nós usufruímos somente na medida em que podemos usá-lo e nada além. O mais ganancioso e empedernido avarento do mundo teria se curado do vício da cobiça se estivesse na minha situação, pois eu possuía infinitamente mais coisas do que poderia fazer com elas. Não havia espaço para o desejo, exceto de coisas que não tinha, as quais não passavam de ninharias, embora fossem realmente de grande utilidade para mim. Tinha, como observei antes, um pouco de dinheiro, tanto em ouro como em prata, cerca de trinta e seis libras esterlinas. Pobre de mim, ali estava aquela coisa vil, melancólica e inútil. Não tinha como empregá-lo e muitas vezes pensava comigo mesmo que daria um punhado cheio dele por alguns cachimbos ou por um moedor para meu cereal. Na verdade, eu o teria entregue todo por seis pence de sementes de nabos e cenouras da Inglaterra, ou por um punhado de ervilhas e feijões e um frasco de tinta. Nessas circunstâncias, não me trazia a menor vantagem ou benefício; contudo, ali estava em uma gaveta, a criar mofo, com a umidade da caverna na estação chuvosa. E se eu tivesse a gaveta cheia de diamantes, a situação teria sido a mesma, e eles não teriam tido qualquer espécie de valor para mim, pois não teriam utilidade alguma.
Agora, meu modo de vida tornara-se bem mais fácil do que a princípio e bem mais tranquilo, tanto para o espírito como para o corpo. Muitas vezes sentava-se a comer cheio de gratidão e admirava a mão da Providência, que assim servia minha mesa no deserto. Aprendi a olhar mais para o lado luminoso da minha condição e menos para o lado sombrio, e a considerar o que me dava prazer e não o que me faltava. Isso dava-me às vezes um tal conforto interior, que não poderia expressá-lo, e se o menciono aqui é para lembrar aqueles descontentes que não podem gozar confortavelmente o que Deus lhes deu, porque só vêem e cobiçam o que Ele não lhes concedeu. Todo nosso descontentamento em relação ao que não temos me parecia brotar da falta de gratidão pelo que possuímos.'
Mas a vida de Robinson Crusoé poderia ter sido simplesmente contada assim: Esta é a estória de um jovem que naufragou numa ilha após desobedecer seu pai, lá sobreviveu por vinte e seis anos, tendo vivido grandes aventuras, e voltou para casa, tendo conseguido prosperar. Mas, prefiro todo o esmero dedicado por Daniel Defoe na narrativa, que conseguiu mudar paradigmas ao criar a história da vida de muitos de nós, pessoas comuns; e, ecoando e se repetindo ao longo dos tempos, torna Robinson Crusoé imortal, dando sentido à existência humana. Livro, sem dúvida, engrandecedor e inspirador! Uma obra prima!
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