domingo, 31 de março de 2013

Estudos em Shakespeare - Dramas Históricos - Vida e Morte do Rei João

   Depois de ter escrito sobre a primeira de suas tragédias, esta semana tecerei alguns comentários sobre um drama histórico do bardo inglês: Vida e Morte do Rei João. Esta é uma obra que se classifica desta forma por fazer parte do conjunto de sua obra que é baseada num contexto histórico, fundamentado em pesquisas históricas e expostas de forma artística como teatro. Com linguagem também elaborada e algumas descrições densas, já mostram uma marca importante e característica que consagrou o autor e o sedimentou para a posteridade.
   A peça provavelmente foi escrita antes de 1596 e apresenta uma visão diferente da história inglesa do que as que foram desenvolvidas por Shakespeare em suas peças históricas anteriores, estas que mostravam principalmente a luta interna entre os membros das famílias reais durante a Guerra das Rosas. Vida e Morte do Rei João apresenta uma temática focalizada em eventos históricos reais, não atribuindo qualquer significado fundamental ou grande sentido ao reinado do rei João; na verdade, ele trata a história como um desenrolar imprevisível de acontecimentos em que momentos aparentemente decisivos se tornam episódios insignificantes em um universo casual.

William Shakespeare
      É bem possível que o público que viveu durante a época de Shakespeare pode ter achado a peça, que se ambienta no século XIII, uma espécie de reflexão acerca do debate contemporâneo sobre a legitimidade real que envolvia as reivindicações dos concorrentes ao trono da rainha Elizabeth e Maria, rainha dos escoceses; os paralelos entre a peça e esses debates são muito numerosos. A reinvidicação do rei João ao trono se baseia na vontade do rei Ricardo, o Coração de Leão, seu irmão mais velho e rei anterior; o pai de Elizabeth, o rei Henrique VIII, também determinou que esta fosse sua herdeira por vontade, a despeito de disputas sobre a legalidade de nomeação de sucessores. O papa excomungou tanto o rei João como a rainha Elizabeth da Igreja Católica. Se forem analisados profundamente, os paralelos entre ambos os momentos históricos são muito presentes.

Rainha Elizabeth I (com a Armada Inglesa ao fundo)

Rei João
      O rival do rei João ao trono, Arthur, era filho do irmão mais velho de João, bem como Maria, rival de Elizabeth, era filha da irmã mais velha do rei Henrique VIII. Como a sucessão do trono normalmente se dá aos descendentes do filho mais velho, então as reivindicações de João e Elizabeth ao trono careciam de poder argumentativo. A causa de Arthur recebeu apoio do rei Filipe, da França, bem como a causa de Maria recebeu apoio de reis estrangeiros, incluindo o rei Filipe II, da Espanha. Da mesma forma que o rei João ordena a morte de Arthur e tenta se distanciar da ação, a rainha Elizabeth ordenou o assassinato de Maria e se distanciou do mesmo. A morte de Arthur funciona como um pretexto para uma invasão francesa, e a morte de Maria provocou o rei Filipe II a lançar a Armada Espanhola contra a Inglaterra. Esta é salva por uma tempestade que afunda os reforços franceses da mesma forma que outra tempestade ajudou os ingleses contra o poder da Armada Espanhola. Até certo ponto, este conjunto de paralelos simplifica tanto o teatro como a história, mas permite a Shakespeare enfatizar os temas da peça, incluindo a briga contra o papa, ameaça de invasão e a questão do governo ilegítimo.


    Alguns críticos acreditam que uma peça anterior anônima, The Troublesome Reign of John, King of England (1591), foi a fonte principal de Shakespeare para esta peça. Ambos se basearam na obra Chronicles of England, Scotland, and Ireland (1587), de Raphael Holinshed, uma narrativa da história inglesa que fundamentou extensivamente as peças históricas do bardo inglês na década de 1590. João tinha sido pensado como uma espécie de rei proto-protestante que tinha se levantado contra o papa, mas Shakespeare atenua a resistência temporária do rei João contra a Igreja Católica Romana; ele emerge mais como um rei que não apoiou nem os protestantes e nem os católicos. Ele enfraqueceu a Igreja Católica por pilhar as finanças dos mosteiros, mas acaba cedendo a Roma.
   Vida e Morte do Rei João foi publicada pela primeira vez na First Folio de 1623. Estudiosas datam a escrita inicial desta peça como sendo do período logo após a derrota da Armada Espanhola e acreditam que ela foi escrita após a peça anônima que trata do mesmo tema. Análises estilísticas e de direção de palco sugerem que a peça foi escrita por volta de 1596.
   Resumidamente, a peça começa com um mensageiro da França chegando à corte inglesa exigindo que o rei João renuncie ao trono em favor de seu sobrinho Arthur. Este mensageiro fala em nome do rei Filipe, da França, que apóia Arthur como o legítimo herdeiro do trono inglês; uma vez que o rei João se recusa a ceder a esta exigência, a França ameaça guerra contra a Inglaterra. O Bastardo e seu irmão mais novo aparecem para disputar suas terras herdadas. O rei João declara que o Bastardo tem o direito às terras, uma vez que a descendência de uma esposa se torna um herdeiro do pai, não importa quem seja o verdadeiro pai. A mãe de João, Eleonor, começa a gostar do Bastardo porque há rumores de que o pai deste teria sido o filho dela e irmão de João, Ricardo, o Coração de Leão. Ela propõe que ele deixe suas terras para o seu irmão mais novo e se junte aos exércitos dela sob o título de Bastardo de Ricardo, o Coração de Leão; ele concorda, e João o torna cavaleiro.



    Na França, Filipe e suas forças se preparam para atacar a cidade de Angers, mantida pelos ingleses, a menos que os seus cidadãos jurem submissão a Arthur. João e seu exército chegam ao local; a mãe de Arthur, Constança, e Eleonor trocam insultos, enquanto vários membros de cada um dos lados concordam com os insultos. Cada um dos reis pergunta aos cidadãos de Angers quem eles apóiam como rei da Inglaterra, mas os cidadãos dizem que apóiam o rei legítimo. Os exércitos de ambos os reis iniciam a guerra, mas são tão semelhantes em competência que nenhum dos lados vence. Os cidadãos de Angers ainda não se decidiram entre o verdadeiro rei. O Bastardo sugere que os exércitos inglês e francês se unam para conquistar a desobediente cidade de Angers e, posteriormente, combaterem um contra o outro; eles concordam e se preparam para atacar, mas os cidadãos da cidade sugerem uma alternativa: casar o filho do rei Filipe, Luís, com a sobrinha do rei João, Branca de Espanha; com isto, a paz pode ser alcançada. A ideia agrada Luís e João, pois isto reforça o elo de João ao trono e Luís ganha territórios franceses mantidos pelos ingleses. O Bastardo fica maravilhado com a mente mutável dos nobres...
   Constança fica chateada com o curso dos acontecimentos e culpa Felipe por ter abandonado seu apoio à causa de Arthur quando se apresenta com um vínculo mais frutífero ao trono inglês. Luís e Branca de Espanha são casados quando Pandolfo, um embaixador do papa, chega. Ele culpa João por ter desobedecido ao papa na nomeação de um arcebispo, mas João se mostra sem interesse em obedecer a um papa distante do território inglês. Pandolfo excomunga João e cobra de Luís o dever de derrubar João. Filipe, cuja família acabara de assumir um elo com João pelo casamento descrito, hesita enquanto seus nobres tentam influenciá-lo. Pandolfo o lembra de que seus laços com a Igreja antecedem suas conexões com João e ameaça excomungá-lo também. Finalmente, Filipe cede e rompe com João.
   Após batalhas inconclusivas em que os ingleses capturam Arthur, João se prepara para retornar à Inglaterra, deixando sua mãe no comando dos territórios franceses sob o domínio inglês e enviando o Bastardo à frente para coletar impostos dos mosteiros ingleses. João instrui Hubert a cuidar de Arthur e então o ordena sutilmente a matar o sobrinho. Enquanto isto, Pandolfo tenta encorajar os franceses a lutar, sugerindo que Luís agora também pode requerer o trono inglês com o mesmo direito que Arthur pelo casamento com uma herdeira da família real inglesa; Luís concorda em atacar a Inglaterra.
   Hubert tenta matar Arthur, mas ele fica tão encantado com a inocência deste que se torna incapaz de fazê-lo; ele diz a Arthur que ninguém pode saber que este está vivo. Enquanto isto,  os nobres de João pedem que este liberte Arthur, e o rei concorda em libertá-lo. Hubert entra e relata que Arthur está morto; os nobres acreditam que Arthur foi assassinado e partem para se unir ao exército de Luís. O Bastardo retorna dos mosteiros relatando que o povo não está contente em saber que o rei está roubando os mosteiros, e este mesmo povo prediz a queda de João. O rei grita com Hubert e o acusa de o ter estimulado a ordenar a morte de Arthur, a qual ele clama nunca ter querido. Finalmente, Hubert revela que Arthur está vivo; o rei fica aliviado e manda Hubert aos nobres que partiram para lhes informar desta notícia.
   Arthur tenta fugir da Inglaterra, mas de forma tola pula de um muro de castelo e cai para a sua morte.Os nobres encontram o seu corpo e ficam horrorizados com a brutalidade que eles acreditam que foi utilizada para matar o garoto. Hubert aparece e relata que Arthur está vivo; os nobres apontam para o corpo do garoto e acusam Hubert de o ter morto. Hubert diz que Arthur estava vivo quando o deixou. Os nobres partem para encontrar Luís.
   João faz um acordo com Pandolfo: ele concorda em honrar o papa se Pandolfo puder mandar o exército francês embora. O Bastardo chega para relatar a partida dos nobres; João o informa de seu acordo com Pandolfo. O Bastardo, por seu lado, quer lutar contra os franceses e, sob o seu comando,  conduz o exército do rei João. Os nobres ingleses que deixaram João juram lealdade a Luís. Pandolfo chega com a notícia de que João se reconciliou com Roma e tenta dissuadir Luís do ataque, mas este diz que não será ordenado por ninguém a não atacar. O Bastardo chega para falar com Luís e o ameaça de grande destruição pelas mãos do exército inglês, a menos que o delfim francês recue; cada lado se prepara para a batalha.
   Um nobre francês está ferido e diz aos nobres ingleses que Luís planeja matá-los se ele ganhar; ele os aconselha a se reconciliarem com João, e eles o fazem. Os reforços de Luís são perdidos no mar, o que muito compromete suas perspectivas de vitória. Enquanto isto, o Bastardo encontra Hubert, que relata que João foi envenenado por um monge em um mosteiro, onde ele estaria esperando por notícias do Bastardo. Os nobres ingleses e o filho de João, o príncipe Henrique, reúnem-se ao rei doente. O Bastardo relata que perdeu muitos de seus homens, que se afogaram na maré. João morre pelo efeito do veneno do monge. O Bastardo se prepara para atacar Luís, mas os nobres relatam que Pandolfo acabara de trazer-lhes um tratado de paz do delfim francês. O Bastardo e os nobres juram lealdade a Henrique, e o Bastardo fala da Inglaterra e de como ela nunca será tomada por conquistadores estrangeiros, a menos que seja primeiramente danificada por conflitos internos.
    
O Rei João Sem-Terra assinando a Carta Magna

   Tecerei agora alguns comentários sobre os principais personagens da peça. O rei João é o terceiro filho de Henrique II. O seu irmão mais velho, Ricardo, o Coração de Leão, foi rei antes dele. Após a morte deste, legalmente, o filho de seu irmão mais velho já morto, Geoffrey, de nome Arthur, deveria ter se tornado o próximo rei, mas João assume o trono porque Ricardo o designara; a legitimidade do seu reinado é, então, colocada em dúvida, mas João fica feliz em ir para a guerra defender a si mesmo. Entretanto, há outras questões que ameaçam o seu governo tanto quanto a sua legitimidade com relação ao trono, que são a sua indiferença em relação aos decretos do papa e sua vontade de roubar dos mosteiros. Contudo, no fim, é sua ordem para matar Arthur que destrói o apoio dos seus nobres. Por conta dos roubos aos mosteiros, é morto pelas mãos de um monge.

O rei João e Eleonor
   A mãe de João, Eleonor, encoraja-o a se manter firme no trono a despeisto da questão da legitimidade. Ela e a mãe de Arthur travam discursos agressivos sobre quem deveria ser o próximo rei. A morte de Eleonor na França significa que João não está adequadamente informado sobre a invasão francesa e isto rapidamente o leva ao desespero.

O delfim Luís, o rei Filipe, da França, e o rei João, da Inglaterra.
   O rei da França, Filipe, é o campeão de Arthur e solicita ao rei João que este abdique ao trono em favor do seu sobrinho. Mostra-se muito volúvel quando muda de ideia e se junta à família de João na questão do casamento de Luís com Branca de Espanha. É forçado a mudar de ideia novamente quando Pandolfo insiste que ele deve defender o papa e guerrear João. Entretanto, o principal problema de Filipe é que ele acabara perdendo muitos dos seus exércitos ao cruzar o mar entre a França e a Inglaterra.

Arthur e Hubert
   O herdeiro legítimo ao trono é Arthur, filho do irmão mais velho de João. Sua mãe, Constança, manipula a tentativa dele em tomar o trono inglês, e Filipe providencia a força militar de que ele precisa. Por outro lado, Arthur deseja nunca ter fazido parte da vida política complexa que ele enfrenta, e sonha, na verdade, em ser um simples pastor. Ele convence Hubert a não matá-lo, mas morre quando tolamente tenta pular os muros do castelo em fuga.
   Um dos personagens mais interessantes da peça é o Bastardo. Filho ilegítimo de Ricardo, o Coração de Leão, o verdadeiro nome dele é Filipe. Ele clama pela herança de sei pai adotivo, mas decide abdicar desta herança em favor de seu irmão mais novo para se tornar um cavaleiro a serviço do rei João. No início da peça, ele se apresenta como uma figura perniciosa, solicitando que ingleses e franceses se unissem para destruir Angers e, sob ordens de João, roubando dos mosteiros; entretanto, logo ele se torna o principal apoio do rei João depois que todos os nobres abandonam este. O Bastardo aparece falando à audiência, interpretando e analisando cenas. Pelo final da peça, seu comportamento honroso o torna mais carismático e apreciável que o próprio rei João, mas a má sorte o acompanha quando ele perde metade do exército inglês. Ele persiste, porém, e tenta declarar guerra a Luís mesmo após a paz ter sido declarada. As falas de maior profundidade na peça pertencem ao Bastardo.

O rei João e o Bastardo
   O filho de Filipe, Luís, casa-se com Branca de Espanha e, assim, torna-se um outro distante herdeiro da coroa inglesa. Pandolfo o encoraja a requisitar este direito, e ele decide atacar a Inglaterra. Entretanto, seus reforços se perdem no mar, e Luís leva Pandolfo a requerer um tratado de paz com a Inglaterra.
   O príncipe Henrique, filho do rei João, torna-se o rei Henrique III após a morte do seu pai, e os nobres todos juram lealdade a ele sob o corpo de seu pai morto.
   Ao contrário das peças históricas mais iniciais de Shakespeare, Vida e Morte do Rei João não retrata um movimento providencial da história, em que tudo acontece por um razão em um caminho predestinado a uma conclusão moral. Enquanto a peça mantém o foco em alguns eventos históricos do reinado do rei João, ela nos apresenta menos curso narrativo em relação a peças como Henrique V. Os eventos na trama interrompem a conexão entre a intenção e os resultados ao longo de toda a peça; os personagens são frustrados por acidentes históricos e adversidades, de modo que esta peça é mais uma representação pragmática de eventos políticos do que uma história moldada de acordo com fins estéticos. O principal conflito gira em torno dos esforços de João para manter a coroa contra as alegações de que ele não é o herdeiro legítimo do trono. A cena de abertura mostra uma luta sobre a herança entre o Bastardo e seu irmão mais novo, mas o fim da disputa é surpreendente ao mostrar que ser um filho bastardo não é barreira para a herança; porém, o Bastardo renuncia à sua herança, escolhendo ser um cavaleiro sem terras.
   Há algo muito interessante a se notar na peça: a realeza é intensamente volúvel. Acordos vêm e vão ao longo de toda a peça. Os reinos francês e inglês disputam a lealdade de Angers, mas logo em seguida se unem para destrui-la; depois, acabam terminando o conflito e poupam a cidade sob a negociação do casamento entre herdeiros da França e da Inglaterra. Porém, esta resolução é transitória, pois o representante do papa, Pandolfo, excomunga João e insiste que o rei Filipe, da França, que acabara de se unir à família real inglesa pelo casamento de seu filho, Luís, guerreie contra os ingleses.
   Filipe apóia Arthur como o herdeiro legal do trono inglês; baseando-se nisto, João conclui que manterá seu lugar no trono seguro desde que Arthur morra, e ordena o assassinato deste. Entretanto, este ato faz com que seus nobres se virem contra ele e unam-se aos franceses na invasão à Inglaterra. Sabendo que o carrasco de Arthur, Hubert, na verdade poupara o garoto, o rei João tenta reverter a situação com relação aos nobres. Mas Arthur morre acidentalmente; com a interpretação de assassinato para esta morte por parte dos nobres ingleses, estes se afastam do rei João. Este tenta postergar a batalha com os franceses tentando se redimir com o papa, mas isto acaba não surtindo efeito. Os nobres ingleses acabam retornando para o rei João somente após saber do plano francês para executá-los logo que houvesse uma vitória contra os ingleses.
  Batalhas importantes têm lugar fora dos palcos de guerra em si, embora nem todas, como descarrilhamentos por traições de última hora ou uma sucessão de grupos de exército perdidos no mar. João morre fora dos campos de batalha, envenenado por um monge indignado com os seus roubos contra os mosteiros; este final do rei é pouco dramático, baseando-se em circunstâncias mal retratadas dentro do escopo da peça. O filho do rei aparece convenientemente no leito de morte de João, anunciando o acordo de paz com a França. O final da peça parece um tanto ortodoxo: um rei morto sucedido por seu filho e herdeiro; mas, na verdade, acaba se mostrando um tanto instável, já que as perspectivas de paz pareciam tão flutuantes antes da morte de João, além do que este nunca foi, reconhecidamente, o herdeiro verdadeiro do trono.
   A peça dramatiza vários pontos que suscitariam interesse por parte da audiência de Shakespeare à época deste: um conflito com o papado, o perigo de invasão e o debate sobre a regra de legitimidade. Estes mesmos temas foram debatidos durante o reinado da rainha Elizabeth I. Entretanto, esta peça difere de outros dramas históricos do bardo inglês: ele retrata o século XIII, em vez do XIV ou XV; além disto, é uma peça única, ou seja, não faz parte de uma série. Outras de suas peças históricas mantêm o foco no equilíbrio do poder entre a nobreza e o rei, dando conta da agitação popular; esta peça, em contraste, marginaliza completamente a população no sentido em que não atribui muito poder aos nobres.
   Com tudo isto, o foco real da peça se torna a questão da legitimidade do trono e da aptidão para governar, que se dá apresentando a relação entre João e Arthur. Como já dito, Arthur, sendo o filho do irmão mais velho de João, era o legítimo herdeiro do trono inglês; mas João é escolhido para governar pelo rei anterior. Entretanto, interessantemente, no caso do Bastardo, o rei João determina que a vontade não pode se antepor à lei, e a vontade do pai que sua herança passasse para o seu filho mais novo foi sobrepujada pela lei, que determina que a herança deve ir para o filho mais velho, bastardo ou não. Agindo desta forma, João involuntariamente prova seu direito ilegítimo ao trono, pois é baseado em vontade, e não em direito legal à sucessão. Embora Shakespeare tenha provado que João não é o herdeiro legítimo do trono, a questão é bastante complicada na medida em que se discute a clara diferença que existe entre a ideia de ´legitimidade´ e ´aptidão´. Ora, Arthur é o herdeiro legítimo, mas é retratado como uma criança fraca que vive sob a ´saia de sua mãe´, e isto o apresenta como alguém inapto ao poder, de modo que haveria uma grande probabilidade de se tornar um rei fraco e ineficaz. Por que João é um homem mais forte, sua reivindicação ao trono começa a parecer muito mais atraente.
   Com esta situação toda, parece surgir uma espécie de defesa da ilegitimidade. Para este fim, o Bastardo se desenvolve como o personagem mais convincente na peça. Ele surge menos como um personagem do que como um conjunto de funções teatrais, encarnando a figura perniciosa de peças de moralidade inglesa anteriores; ele fala com a audiência e faz observações acerca dos eventos. No mais, ao longo da segunda metade da peça, ele se torna inabalavelmente leal ao rei, denunciando acordos feitos entre João e Filipe e entre João e Pandolfo, e critica o desejo da realeza por comodidade e auto-interesse. O Bastardo parece acreditar que Arthur morreu acidentalmente e retorna para junto do rei para defender a coroa e o reinado; neste ponto, ele se torna o centro retórico e ético da peça.
   Ao apoiar João, o heróico e honroso Bastardo faz parecer que aquele deve ser a escolha certa para ser o rei. Entretanto, ao ordenar a morte de Arthur e mostrar uma crueldade desnecessária, o rei parece fazer tremer o equilíbrio entre o legalmente certo e a legitimidade hereditária no reinado; como o argumento central se enfraquece, também se enfraquece o herói da peça: o Bastardo perde parte de seu exército em outra sepultura aquosa, e, além disto, planeja lutar uma guerra irrelevante com a França mesmo após outros terem negociado paz. Mesmo com tudo isto, ele não é totalmente colocado de lado (ele faz o discurso final da peça); porém, enquanto ele elogia a força inconquistável de sua nação, sua resolução tem menos a ver com a vitória do que com o colapso simultâneo dos exércitos de ambas as nações. E enquanto ele se deleita com o poder da Inglaterra, ele também observa que os conflitos internos poderiam desgraçar a nação.
   Com toda esta discussão sobre a peça, o poder da mesma insiste em permanecer nas palavras, nos discursos. Por isto Shakespeare emociona a todos, fazendo os corações se aquecerem e as mentes se iluminarem à emanação de conjuntos de palavras que geram imagens que, na verdade, não estão lá. Deixo trechos de dois discursos do personagem mais cativante de toda a peça: o Bastardo.

   Discurso 1:
   E esse mesmo pendor, esse Interesse,
   esse alcaiote tecedor de intrigas,
   palavra que transforma tudo a todos
   os momentos, lançado contra os olhos
   da França tão volúvel, fez que logo
   desistisse do auxílio que ela própria
   decidira prestar e de uma guerra
   principiada com honra, para, agora,
   concluir uma paz vil e infamante.
   Por que cubro de injúrias o Interesse?
   Tão-somente por não me ter ainda
   conquistado. É certeza: eu não teria
   coragem de fechar a mão, se, acaso,
   se dispusessem seus bonitos anjos
   a me cumprimentar. Não tendo sido
   tentada ainda, ela é como a dos pobres
   mendigos que os ricaços vitupera.
   Pois o mesmo farei, enquanto pobre:
   não há pecado como o da riqueza,
   direi então; mas quando ficar rico,
   direi ser a miséria o único vício.
   Se a ambição, entre os reis, é quase uma arte,
   Interesse, és meu deus: quero adorar-te.

   No original, em inglês:
   And this same bias, this Commodity,
   This bawd, this broker, this all-changing word,
   Clapp´d on the outward eye of fickle France,
   Hath drawn him from his own determin´d aid,
   From a resolv´d and honourable war,
   To a most base and vile-concluded peace.
   And why rail I on this Commodity?
   But for because he hath not woo´d me yet.
   Not that I have the power to clutch my hand
   When his fair angels would salute my palm;
   But for my hand, as unattempted yet,
   Like a poor beggar, raileth on the rich.
   Well, whiles I am a beggar, I will rail,
   And say there is no sin but to be rich;
   And being rich, my virtue then shall be
   To say there is no vice but beggary.
   Since kings break faith upon Commodity,
   Gain, be my lord, for I will worship thee!  


   Discurso 2:
   Só paguemos ao tempo a indispensável
   tristeza, por se ter antecipado
   demais à nossa dor. Esta Inglaterra
   nunca jamais caiu sob o orgulhoso
   pé de inimigo algum, senão no instante
   em que ela quis ferir o próprio seio.
   Mas agora que os príncipes voltaram,
   ainda que contra nós armados venham
   os três cantos do mundo, saberemos
   defender-nos. Jamais teremos causa
   de pesar, se, na paz como na guerra,
   fiel a si mesmo for, sempre, a Inglaterra.

   No original em inglês:
   O! let us pay the time but needful woe
   Since it hath been beforehand with our griefs.
   This England never did, nor never shall,
   Lie at the proud foot of a conqueror,
   But when it first did help to wound itself.
   Now these her princes are come home again,
   Come the three corners of the world in arms,
   And we shall shock them. Nought shall make us rue,
   If England to itself do rest but true.


   Inalcançável Shakespeare! Uma boa semana a todos!

segunda-feira, 18 de março de 2013

Estudos em Shakespeare - Tragédias - Romeu e Julieta

      Após um mês e meio, volto a tentar enveredar pelo caminho das letras por aqui. Passo por um período de mudança em meu lar e ainda não me instalei definitivamente; mas, a vontade de escrever sobrepuja todas estas mudanças das últimas semanas. No início do ano, tentei traçar metas para 2013 que tento desenvolver incansavelmente, embora outras funções estejam sempre a tomar o nosso tempo, já que este blog é, para mim, uma espécie de trabalho-hobby, e por isto mesmo muito importante e interessante sob o meu prisma, pois me permito escrever por muito gostar de arte e cultura em geral, e sempre tento ver o papel de tudo isto em minha vida, como venho fazendo desde o início deste projeto. O fato é que, entre estas metas, está o de desbravar toda a obra de Shakespeare. Percebam que escrevi a parte mais conhecida do seu nome completo; ora, acho muito pouco provável que alguém não saiba a quem me refiro, mesmo eu só escrevendo uma parte do seu nome. O interesse em estudar toda a sua obra, e tentar registrar e compartilhar com quem se interessar pelo tema como eu, veio do fato de enxergar a importância que tem o seu legado escrito na vida de todos nós, essencialmente nós que vivemos no mundo ocidental. Quando assistindo ao filme/documentário de Al Pacino sobre a peça Ricardo III (o título deste filme é Looking for Richard, de 1996), há um conjunto de pequenas entrevistas a pessoas nas ruas sobre o autor; uma das pessoas entrevistadas é um mendigo, que abrilhanta demais o filme ao responder uma pergunta de Al Pacino. Quando questionado se ele conhecia Shakespeare e o que ele achava do autor, se era importante conhecê-lo, se conhecer sua obra seria importante para a vida, etc., o mendigo responde o seguinte: Shakespeare foi aquele indivíduo que nos mostrou todos os sentimentos, e, mais do que isto, nos ensinou a sentir. Ao ouvir isto de um mendigo, prontamente se percebe a importância que este dá ao dinheiro: nenhuma; a sua riqueza é, no entanto, de uma grandiosidade maior do que a de muita gente. Este trecho do filme reforçou minha obrigação moral de conhecer tudo do autor!


Capa do filme 'Looking for Richard'
   Quando se procura escrever sobre Shakespeare, é válido se perguntar por onde começar. Deixem-me tentar expor o que me impeliu a começar por onde vou começar! Recentemente, assisti a um filme traduzido por aqui de Barão Vermelho. Este é um daqueles filmes biográficos que é revestido de um certo lirismo mas que nos ensina sobre a vida de um grande personagem que passou por este planeta. Vem deste personagem, por exemplo, o título da banda de rock nacional e o nome do local de apresentações que hoje existe no Rio de Janeiro e que foi muito utilizado por Cazuza e sua trupe: o Circo Voador. O personagem de que trata o filme é Manfred Albrecht Freiherr von Richthofen, piloto alemão que nasceu em 1892 e morreu no ano em que terminou a Primeira Guerra Mundial, 1918. Vindo de família aristocrática, desde cedo foi apaixonado por aviação e se tornou, por seguir fielmente este desejo durante toda a sua vida, o maior piloto de aviação de combate da história da Alemanha e um dos maiores do mundo. No início da guerra, a aviação de combate era apenas uma espécie de esporte para ele, mas ao longo do conflito, ele enxerga os horrores que permeiam todo o combate. A sua maior virtude, ao que consta, foi a coragem (tanto que o seu apelido, o Barão Vermelho, vem justamente de ter pilotado um avião triplano Fokker Dr. I vermelho, justificando que para ele o importante não era ter o elemento surpresa da camuflagem no ar, o que dificilmente seria conseguido com a cor vermelha na fuselagem do avião, mas que seus inimigos soubessem quem os estava atacando e os temessem), mas o grande triunfo de sua personalidade para a posteridade foi particularmente a sensibilidade em reconhecer que a Alemanha não ganharia a guerra mesmo antes de isto realmente acontecer, e que o motivo dos aliados para justificar a guerra talvez fossem mais nobres e menos errados que o dos alemães. Escreve um livro nos anos da Primeira Guerra Mundial, cujo tema é a guerra em si, e vira uma lenda para o seu povo, servindo como inspiração para o Exército Alemão durante o conflito. Tendo adquirido um cargo de comando de todos os aviadores alemães na Primeira Grande Guerra, abdica do mesmo por preferir lutar cada batalha pilotando o seu avião vermelho com sua equipe de aviadores que constituíam o esquadrão que ficou conhecido como Circo Voador. A maturidade e sensibilidade que adquire ao longo da guerra são tocantes, e morre no ar, onde sempre quis exercer a expressão máxima da liberdade humana, abatido por um avião inimigo do piloto australiano Cedric Popkin, em abril de 1918, com somente 25 anos de idade. Após a sua morte, teve seu corpo velado pelo Exército Aliado (ou seja, inimigo), mesmo sendo alemão, e recebeu todas as honras militares por sua grande atuação em combate e um exemplo a ser seguido. Tendo conseguido 80 vitórias em combate aéreo, entrou para a História como o maior ás da aviação alemã, e um dos maiores do mundo. O que me faz refletir profundamente é o sentido de tragédia existente em sua história; tragédia é toda aquela estória em que há um final triste, geralmente com mortes ou coisas do mesmo nível. Mas o que há de interessante nas tragédias é que, geralmente, existe um sentido que deve se completar com o destino chegando para os personagens; é como se o sentido somente se completasse, fosse consistente, se o final viesse a ser triste, como algo que é necessário para a concepção da tragédia. Enfim, é como se outro final não fosse possível! E as tragédias de Shakespeare estão entre suas obras mais famosas ao longo dos séculos. Assim, começarei pelo seu conjunto de obras mais importante: as Tragédias. Destas, a primeira a ser escrita por ele foi Romeu e Julieta. Mas antes de falar sobre ela, permitam-me falar um pouco mais sobre William Shakespeare, o bardo inglês, aquele que nos ensinou a sentir.


Manfred Albrecht Freiherr von Richthofen (1892-1918), o 'Barão Vermelho'


Fokker Dr. I

   Bom, o escritor inglês de maior influência nasceu em 1564 em Stratford-upon-Avon, na Inglaterra, no meio de uma família bem sucedida de classe média que trabalhava na fabricação de luvas. Chegou a cursar a escola secundária mas sua educação formal não foi além disto. Um dos fatos interessantes em sua vida pessoal foi ter se casado, em 1582 (portanto aos 18 anos), com uma mulher de mais idade do que ele chamada de Anne Hathaway, com quem teve três filhos. Após 8 anos deste casamento, ele deixa sua família e se muda para Londres pleiteando trabalhar como ator e dramaturgo. O sucesso de público e crítica rapidamente o abençoou, e ele acabou se tornando o mais popular dramaturgo da Inglaterra e um dos proprietários do Globe Theater. Sua carreira envolveu a transição dos reinados de Elizabeth I (que reinou de 1558-1603) e de James I (que reinou de 1603-1625), e ele foi um grande favorito de ambos os monarcas. Rico e reconhecido, Shakespeare voltou para sua terra natal, Stratford-upon-Avon, em 1616, ano em que morreu aos 52 anos. Na época em que faleceu, centelhas literárias de renome, como Ben Johnson, consideravam seu trabalho como eterno.


William Shakespeare (1564-1616)


Anne Hathaway

   Suas obras foram compiladas e impressas em várias edições no século que seguiu o de sua morte, e no início do século XVIII a sua reputação como o maior poeta e escritor de todos os tempos a escrever em língua inglesa estava bem sedimentado. Esta admiração sem precedentes recebida por sua obra levou a uma curiosidade intempestiva sobre a sua vida pessoal, mas a escassez de informações biográficas deixou muitos detalhes de sua vida envoltos em uma atmosfera de mistério. Muito se cogitou sobre a autenticidade dos escritos de Shakespeare, mas na ausência de provas críveis em contrário, ele deve ser visto como o autor das 37 peças e 154 sonetos que carregam sua assinatura. O legado do seu trabalho é imensurável, e uma série de peças do bardo parece ter transcendido a categoria de 'brilhante', tendo se tornado tão influente que afetaram profundamente o curso da literatura e da cultura ocidental para sempre.
   Shakespeare não criou a estória de Romeu e Julieta, e nem, de fato, a introduziu no idioma inglês. Um poeta inglês chamado de Arthur Brooke, de quem sabemos apenas que morreu por volta de 1563, teve como único trabalho que ficou para a posteridade o poema laborioso conhecido por The Tragicall History of Romeus and Juliet, de 1562, e este mesmo não era original de todo, tendo sido considerado uma tradução do poema em italiano de Matteo Bandello (1480-1562). Muitos dos detalhes da trama desta peça de Shakespeare são levantadas diretamente do poema de Brooke (inclusive, a apropriação de outras estórias como inspiração para as suas peças é bem característico do bardo inglês). O uso de material existente previamente como fonte para as peças não deve ser considerado, contudo, uma falta de originalidade; na verdade, em vez disto, os leitores devem notar como Shakespeare, artesanalmente,  utiliza o material de suas fontes e cria uma nova compreensão da tradição literária no qual trabalha. A versão dele para Romeu e Julieta, por exemplo, é bastante distinta daquelas dos seus predecessores em muitos e importantes aspectos: a sutileza e a originalidade dos seus personagens (Shakespeare praticamente criou quase que totalmente o personagem Mercúrio), o ritmo intenso da ação da peça, que é comprimida de nove meses para quatro dias frenéticos, um enriquecimento poderoso dos aspectos temáticos da estória, e, acima de tudo, um uso extraordinário da linguagem, a marca registrada do estilo shakespeareano. Outro fator interessante é que a peça de Shakespeare não somente apresenta uma semelhança com as obras em que se baseia como é, de fato, bastante similar quanto ao enredo, ao tema e ao dramático fim da estória de Píramo e Tisbe, contada pelo grande poeta Ovídio na sua obra Metamorfoses. O bardo, inclusive, bastante ciente da similaridade, inclui uma referência a Tisbe em Romeu e Julieta. Esta peça foi escrita sob profundo conhecimento por parte do poeta de que ele estava contando uma estória antiga, bastante clichê e alvo fácil para paródias. Escrevendo Romeu e Julieta, Shakespeare, então, implicitamente se comprometeu com a tarefa de contar uma estória de amor a despeito das grandes forças que ele sabia que agiam contra o seu sucesso. Através da incomparável intensidade de sua linguagem, o bardo foi extremamente bem sucedido neste esforço, tendo escrito uma obra-prima que é universalmente aceita na cultura ocidental como o arquétipo da estória de amor.
   Resumidamente, o que se passa na peça é o seguinte. Nas ruas de Verona, outra briga irrompe entre os servos das famílias nobres rivais, Capuleto e Montecchio. Cidadãos, indignados com a violência constante, derrotam as facções em conflito e o príncipe Escalo, o governante de Verona, tenta evitar novos conflitos entre as famílias, e decreta a morte para qualquer indivíduo que vier a perturbar a paz da cidade no futuro. Romeu, filho do chefe dos Montecchio, corre para seu primo Benvólio, que já havia percebido aquele deprimido em um bosque de sicômoros. Depois de alguma insistência pelo seu primo, Romeu confessa estar apaixonado por Rosalina, uma mulher que não corresponde às suas afeições. Benvólio o aconselha a esquecê-la e encontrar uma outra, mais bonita, mas Romeu fica desanimado com a ideia. Enquanto isto, Páris, um parente do príncipe, pretende casar-se com Julieta; o pai desta, Capuleto, embora feliz com a ideia, pede que ele espere dois anos, já que ela ainda não tem nem 14 anos. Capuleto organiza um baile de máscaras, tradicional na cidade, e convida, entre outros, Páris, esperando que ele, aos poucos, conquiste o coração de Julieta. Romeu e Benvólio, ainda discutindo sobre Rosalina, encontram o servo de Capuleto que detém a lista de convidados para o baile. Benvólio sugere que eles frequentem a festa, pois isto permitirá que Romeu compare sua amada a outras mulheres de Verona. Romeu concorda em ir para a festa, mas somente porque Rosalina, nome que ele lê na lista de convidados, estará lá. Na casa de Capuleto, a jovem e bela Julieta fala com sua mãe e sua ama sobre a possibilidade de se casar com Páris, embora ainda não tenha considerado o casamento com ele. A festa tem início; um Romeu melancólico segue Benvólio e seu espirituoso amigo Mercúrio para a casa de Capuleto. Uma vez dentro, Romeu Julieta de longe e imediatamente se apaixona por ela, esquecendo-se de Rosalina imediata e completamente. Enquanto vê Julieta, hipnotizado e em transe, um jovem Capuleto, chamado Teobaldo, reconhece Romeu, e fica enfurecido. Logo Romeu fala para Julieta e os dois experimentam uma profunda atração; eles se beijam sem saber os nomes um do outro. Quando Romeu descobre da ama de Julieta que esta é filha de Capuleto, o maior dos inimigos de sua família, ele fica perturbado. Igualmente chateada fica Julieta ao descobrir que acabara de beijar o filho de Montecchio. Enquanto Mercúrio e Benvólio deixam a propriedade de Capuleto, Romeu pula o muro do pomar para o jardim, incapaz de deixar Julieta para trás. De seu esconderijo, ele vê Julieta em uma janela acima do pomar e a ouve falar o nome dele. Ele chama por ela e eles trocam votos de amor.
  
Romeu e Julieta (1884), de Frank Dicksee

   Romeu se apressa para ver seu amigo e confessor, o Frei Lourenço, que, embora chocado com a súbita mudança no coração do jovem, aceita casar os amantes em segredo, vendo neste amor a possibilidade de acabar com a briga antiga entre Capuletos e Montecchios. No dia seguinte, Romeu e Julieta se encontram no cômodo do Frei e são casados por este. A ama, a par do segredo, adquire uma escada, que Romeu irá usar para subir na janela de Julieta para a sua noite de núpcias. No dia seguinte, Benvólio e Mercúrio encontram Teobaldo, primo de Julieta, que, ainda enfurecido com Romeu, desafia este para um duelo. Romeu aparece, e, por agora ser parente de Teobaldo, já que se casara com Julieta, implora ao Capuleto para adiar o duelo até que este entenda por que Romeu não quer lutar. Irritado com esta apelo à paz, Mercúrio diz que irá lutar com Teobaldo ele mesmo. Os dois começam o duelo; Romeu tenta impedi-los, saltando entre eles. Teobaldo esfaqueia Mercúrio por baixo do braço de Romeu, e Mercúrio morre. Em um acesso de raiva, Romeu mata Teobaldo e foge de cena. Logo depois, o príncipe o declara para sempre banido de Verona por seu crime. O Frei Lourenço arranja para que Romeu possa passar sua noite de núpcias com Julieta antes de ter que sair para a Mântua na manhã seguinte. Em seu quarto, Julieta aguarda a chegada de seu novo marido; a ama entra e, depois de alguma confusão, diz a Julieta que Romeu matou Teobaldo. Atormentada, Julieta de repente se vê casada com um homem que matara seu parente. Mas ela se recompõe e percebe que seu dever é estar com o seu amor: Romeu. Romeu entra no quarto de Julieta e finalmente consuma seu casamento naquela noite. A manhã chega e os amantes dizem adeus, sem saber quando se verão novamente.


L'ultimo bacio dato a Giulietta da Romeo (1823), de Francesco Hayez
   Julieta descobre que seu pai, afetado pelos acontecimentos recentes, pretende agora que ela se case com Páris em apenas três dias. Sem saber como proceder, incapaz de revelar a seus pais que ela é casada com Romeu, Julieta pede conselho à sua ama. Esta aconselha a considerar Romeu morto e se casar com Páris, que é a melhor saída de qualquer maneira. Desgostosa com a deslealdade da ama, Julieta ignora o conselho daquela e se apressa para encontrar o Frei Lourenço. Ele inventa um plano para reunir Julieta e Romeu em Mântua; na noite anterior ao dia do seu casamento com Páris, ela deve beber uma poção que a fará parecer estar morta. Depois que ela for enterrada na cripta da família, o Frei e Romeu secretamente a recuperarão, e ela estará livre para viver com seu amado, longe das brigas dos seus pais. Julieta volta para casa para descobrir que o casamento foi antecipado em um dia, e ela irá se casar já no dia seguinte. Naquela noite, portanto, Julieta bebe a poção e a ama a descobre aparentemente morta na manhã seguinte. Os Capuleto lamentam, e Julieta é sepultada conforme o plano, mas uma mensagem do Frei Lourenço endereçada a Romeu e explicando sobre o plano jamais chega às mãos deste em Mântua. O Frei João, responsável por entregar a carta, acaba ficando confinado em quarentena em uma casa, e Romeu ouve apenas que Julieta está morta. Com isto, decide se matar, em vez de viver sem ela. Ele compra um frasco de veneno de um boticário relutante em vendê-lo; então, acelera seu retorno a Verona para tirar a própria vida no túmulo de Julieta. Fora da cripta dos Capuleto, Romeu ataca Páris, que está espalhando flores sobre o túmulo de Julieta. Na luta, Romeu mata Páris. A seguir, entra no túmulo, vê o corpo inanimado de Julieta, bebe o veneno e morre ao lado dela. Só então, Frei Lourenço entra e percebe que Romeu matara Páris e a si próprio. Ao mesmo tempo, Julieta acorda. O Frei ouve a vinda de pessoas em sua direção; quando Julieta se recusa a sair com ele, o Frei foge sozinho. Julieta vê seu amado Romeu e percebe que ele se matou com veneno. Ela beija seus lábios envenenados, e, quando isto não a mata, enterra um punhal no peito, caindo morta sobre o corpo dele. Chegam o vigilante, o príncipe, os Capuleto e os Montecchio. Vendo os corpos de seus filhos, as duas famílias concordam em acabar com a rivalidade de longa data e levantar estátuas em ouro de seus filhos lado a lado em uma nova Verona, agora pacífica.


The Reconciliation of the Montagues and Capulets over the Dead Bodies of Romeo and Juliet (1855), 
de Frederic Lord Leighton

   É válido que analisemos quatro personagens mais importantes na peça. O primeiro deles, Romeu, tem um nome que, na cultura popular, tornou-se quase sinônimo de 'amante'. Na peça, ele de fato experimenta um amor de tal pureza e paixão que se mata quando acredita que o objeto de seu amor, Julieta, morreu. O poder do amor de Romeu, entretanto, muitas vezes esconde uma visão clara do personagem em si, que é muito mais complexo. Mesmo a relação de Romeu com o amor não é tão simples; no início da peça, ele tem grande pretensão por Rosalina, a proclamando como o modelo de mulher e desesperado pela indiferença dela em relação a ele. De certa forma, o histrionismo induzido em Romeu por Rosalina parece bastante juvenil; ele é um grande leitor de poesia de amor, e a representação de seu amor por Rosalina sugere que ele está tentando recriar os sentimentos que ele tem lido. Após o primeiro beijo de Julieta, ela diz a ele que 'ele beija como no livro', ou seja, que ele beija de acordo com as regras, o que implica que, enquanto proficiente, seu beijo carece de originalidade. Em  relação a Rosalina, ao que parece, Romeu ama 'pelo livro'. Ao ver pela primeira vez Julieta, Rosalina some imediatamente da cabeça de Romeu; mas Julieta não é mera substituição, e o amor que ela divide com Romeu é muito mais profundo, mais autêntico e original do que o amor clichê que ele sentia por Rosalina. Deve-se atribuir o desenvolvimento de Romeu, pelo menos em parte, a Julieta; as observações desta, como aquela sobre o beijo de Romeu, parecem essencialmente o importante para tirar este de sua ideia superficial do amor e para inspirá-lo a começar a falar um pouco da poesia de amor mais bela e intensa já escrita. No entanto, a profunda capacidade de Romeu para o amor é apenas uma parte de sua maior capacidade para intensos sentimentos de todos os tipos. Dito em outras palavras, é possível descrever Romeu como alguém a quem falta a capacidade de moderação - o amor o impulsiona a esgueirar-se pelo jardim da filha do inimigo, arriscando-se a morrer simplesmente para ter um vislumbre dela; a raiva o obriga a matar o primo de sua esposa em um duelo imprudente para vingar a morte de seu amigo; o desespero o obriga ao suicídio ao saber da morte de Julieta. Tal comportamento extremo domina o personagem de Romeu durante toda a peça, contribuindo para a tragédia final que recai sobre os amantes. Se Romeu tivesse se contido antes de matar Teobaldo, ou esperado mais um dia antes de se matar depois de ouvir a notícia da morte de sua amada, o final poderia ter sido feliz. É óbvio, entretanto, que se Romeu não tivesse tal profundidade de sentimentos, o amor que ele dividia com Julieta nunca teria existido em primeiro lugar. Entre seus amigos, especialmente ao gracejar com Mercúrio, mostra vislumbres de sua personalidade social; é inteligente, perspicaz, amante de duelos verbais (especialmente sobre sexo), leal e não teme o perigo.
 
Leonard Whiting (Romeu), no filme Romeu & Julieta de 1968, dirigido por Franco Zeffirelli
    Já analisando Julieta percebe-se que, não tendo alcançado seu décimo quarto aniversário direito, ela está justamente na fronteira entre a imaturidade e a maturidade. No início da peça, ela lembra apenas uma criança obediente, abrigada e ingênua. Muitas meninas com a mesma idade que a sua, incluindo sua mãe, já pensam no casamento ou mesmo se casaram; Julieta não deu ao assunto qualquer importância. Quando a senhora Capuleto menciona o interesse de Páris em se casar com Julieta, esta apenas obedientemente responde que irá tentar amá-lo, uma resposta um tanto infantil na sua obediência e na sua concepção de amor, que se percebe imaturo. Outra coisa interessante é que Julieta parece não ter amigos de sua idade e não fica confortável quando se fala de sexo (percebe-se isto quando a ama brinca com Julieta, como descrito na Cena III do Ato I). Há um vislumbre da determinação, força e sobriedade de Julieta nas primeiras cenas, e isto oferece uma pré-visualização da mulher que ela irá, ao longo dos quatro dias da peça, se tornar; a senhora Capuleto, por exemplo, mostra-se incapaz de acalmar a ama, enquanto Julieta o consegue fazer com apenas uma palavra. Além disto, mesmo em obediente aquiescência, Julieta tenta amar Páris, mas há algumas sementes de determinação firme nesta resiliência; Julieta promete considerar Páris como um possível marido na medida exata dos desejos de sua mãe, mas não mais do que isto. Julieta cederá aos desejos da mãe mas sem deixar de atender aos próprios desejos para se apaixonar por Páris. O primeiro encontro de Julieta com Romeu é a mágica que impulsiona fortemente sua concepção de vida para a fase adulta desta. Embora logo profundamente apaixonada por ele, Julieta é capaz de perceber e criticar as decisões precipitadas de Romeu e a tendência dele em romantizar sempre as situações. Depois que Romeu mata Teobaldo e é banido de Verona, Julieta não o segue de forma cega; ela desenvolve uma decisão lógica e sincera assumindo sua lealdade e amor por Romeu como prioridades em sua vida. Essencialmente, Julieta se liberta de suas correntes sociais - sua ama, seus pais e sua posição social em Verona - para tentar se reunir com Romeu. No fim da peça, quando ela acorda no túmulo e encontra Romeu morto, ela não se mata por fraqueza feminina, mas com uma intensidade de amor tal qual o fez Romeu. O suicídio de Julieta, na verdade, exige mais força e controle do que o de Romeu: enquanto ele engole veneno, ela apunhala a si mesma, através do coração, com um punhal. Um dos triunfos do início da carreira de Shakespeare em termos de caracterização é justamente o desenvolvimento da personagem Julieta de uma menina inocente e de ´olhos arregalados´ em uma mulher auto-confiante, leal e totalmente capaz. É uma das principais marcas do poeta em termos de personagem feminina confiante e completa.


Olivia Hussey (Julieta), no filme Romeu & Julieta de 1968, dirigido por Franco Zeffirelli

     Quando se volta os olhos para o Frei Lourenço percebe-se que este ocupa uma estranha posição na peça. Ele é um clérigo bondoso que ajuda Romeu e Julieta ao longo de toda a estória; ele realiza o casamento de ambos e dá importantes conselhos, especialmente no que diz respeito à necessidade de moderação e equilíbrio. Na peça, ele é a única figura religiosa atuante, mas é também o mais intrigante e político dos personagens em Romeu e Julieta: ele casa ambos como parte de um plano para acabar com a guerra civil em Verona, ele inspira Romeu a entrar no quarto de Julieta e, consequentemente, a ter que deixar Verona, ele elabora o plano para reunir ambos através do artifício enganoso de uma poção para dormir que parece surgir de um conhecimento um tanto místico. A propósito, esta espécie de conhecimento místico parece meio fora de propósito para um frei católico; por que ele tem tal conhecimento, e o que tal conhecimento pode significar? As respostas não parecem claras. Além de tudo isto, embora os planos do Frei sejam todos bem concebidos e de boa índole, eles acabam servindo como o mecanismo principal através do qual o destino trágico da peça ocorre; os leitores devem reconhecer que o Frei não é apenas sujeito ao destino que domina a peça - de várias maneiras, ele traz este destino.

Milo O´Shea (Frei Lourenço), no filme Romeu & Julieta de 1968, dirigido por Franco Zeffirelli
     Enfim, é válido que se discuta um pouco Mercúrio. Com um humor rápido e uma mente inteligente, ele é um daqueles ladrões de cena e um dos mais memoráveis personagens em todos os trabalhos de Shakespeare. Embora ele esteja constantemente a despejar trocadilhos, piadas e brincadeiras, às vezes de forma humorística, às vezes com certa amargura, Mercúrio não é um mero bufão ou brincalhão. Com suas palavras ferozes, ele perfura os sentimentos românticos e o amor-próprio cego que existe na peça; ele zomba da auto-indulgência de Romeu e ridiculariza a altivez e adesão de Teobaldo à moda. Alguns críticos consideram Mercúrio como uma força dentro da peça que funciona para esvaziar a possibilidade do amor romântico e do poder do destino trágico. Ao contrário dos outros personagens que culpa o destino por suas mortes, Mercúrio morre amaldiçoando todos os Montecchio e os Capuleto; ele acredita que pessoas, e não forças impessoais externas, são responsáveis por sua morte.


John McEnery (Mercúrio), no filme Romeu & Julieta de 1968, dirigido por Franco Zeffirelli

   Falemos um pouco sobre os temas, motivos e símbolos existentes na peça. O primeiro grande tema é o da contundência do amor. Romeu e Julieta é a estória de amor mais famosa na tradição literária inglesa, e mesmo em toda a cultura ocidental; sem a menor dúvida, e naturalmente, o amor é o tema dominante em toda a peça. Esta está centralizada no amor romântico, essencialmente emanado pela intensa paixão que brota à primeira vista entre os dois amantes. Na peça, o amor é uma força violenta, de irresistível êxtase, que supera todos os outros valores, lealdades e emoções; ao longo da estória, os jovens amantes são levados a desafiar todo o mundo social em que estão inseridos: as famílias, os amigos e os regentes. O amor é, sim, o tema principal na peça, mas deve-se lembrar que Shakespeare, aqui, não está interessado em retratar um amor enfeitado, uma versão graciosa da emoção, do tipo que os maus poetas que Romeu lê no início da peça, quando apaixonado por Rosalina, escrevem; em Romeu e Julieta, o amor é uma emoção brutal e poderosa que captura os indivíduos e os catapulta contra os seus mundos, e, às vezes, contra si mesmos. A natureza poderosa do amor pode ser vista na maneira como é descrito, ou, mais precisamente, na forma como as descrições falham em captar a sua totalidade; algumas vezes, o amor é descrito em termos religiosos (como na primeira vez em que os amantes se encontram), outras vezes, de forma um tanto mágica. Julieta, talvez, mais perfeitamente o represente quando se recusa a descrever o amor que sente por Romeu. O amor, em outras palavras, resiste a qualquer única metáfora, porque é poderoso demais para ser tão facilmente contido ou compreendido. Romeu e Julieta não faz uma alusão moral específica sobre as relações entre o amor e a sociedade, religião e família; outrossim, retrata o caos e a paixão de estar apaixonado, combinando imagens de amor, violência, morte religião e família em uma corrida impressionística que leva à conclusão trágica da peça. Antes de comentar o próximo tema e pela beleza das palavras, deixo abaixo o amor com conotação religiosa quando do primeiro encontro e troca de palavras entre os amantes.

   Romeu (a Julieta): Se minha mão profana o relicário 
     em remissão aceito a penitência;
     meu lábio, peregrino solitário,
     demonstrará, com sobra, reverência.
   Julieta: Ofendeis vossa mão, bom peregrino,
     que se mostrou devota e reverente.
     Nas mãos dos santos, pega o paladino.
     Esse é o beijo mais santo e conveniente.
   Romeu: Os santos e os devotos não têm boca?
   Julieta: Sim, peregrino, só para orações.
   Romeu: Deixai, então, ó santa! que esta boca
      mostre o caminho certo aos corações.
   Julieta: Sem se mexer, o santo exalça o voto.
   Romeu: Então ficai quietinha: eis o devoto.
     Em tua boca me limpo dos pecados.
                                           (Beija-a.)


   Outro tema importante na peça é o do amor como causa de violência. Os temas de morte e violência permeiam Romeu e Julieta, e estão sempre conectados à paixão, quer esta paixão seja amor ou ódio. A conexão entre o ódio, a violência e a morte parece óbvia, mas a ligação entre o amor e a violência requer um pouco mais de investigação. Na peça, o amor é uma grande paixão, e, como tal, chega a cegar, podendo sobrecarregar uma pessoa tão forte e completamente como pode o ódio. Desde o início do romance, o amor apaixonado entre Romeu e Julieta está ligado à morte: Teobaldo percebe a presença de Romeu na festa e determina-se a matá-lo no mesmo instante em que Romeu avista Julieta e imediatamente se apaixona por ela. A partir deste momento, o amor parece empurrar os amantes mais para perto da ligação amor x violência do que para longe. Os amantes são atormentados com pensamentos de suicídio e uma vontade de experimentá-lo - Romeu brande uma faca na presença do Frei Lourenço e ameaça se matar depois de ter sido banido de Verona e do seu amor; Julieta também o faz três cenas mais tarde. Por fim, cada um imagina que o outro parece morto na manhã após a sua primeira e única experiência sexual. Este tema continua até a sua conclusão inevitável: duplo suicídio. E esta escolha trágica é a mais suprema expressão do amor que ambos podem fazer; é somente através da morte que eles podem preservar seu amor, e este amor é tão profundo que eles estão dispostos a acabar com suas vidas em sua defesa. Na peça, enfim, o amor surge como algo amoral, levando tanto à destruição como à felicidade; mas, na sua extrema paixão, o amor que Romeu e Julieta experimentam também parece tão primorosamente bonito que poucos iriam querer, ou ser capaz, de resistir a seu poder.

Uma das cenas finais do filme Romeu & Julieta (1968), dirigido por Franco Zeffirelli
       Outro grande tema na peça é o conflito entre o indivíduo e a sociedade. Uma boa parte da peça envolve lutas dos amantes contra as instituições públicas e sociais que, explícita ou implicitamente, se opõem à existência do amor dos amantes. Estas estruturas vão do concreto ao abstrato: as famílias e o poder familiar centralizado na figura do pai; a lei e o desejo de ordem pública; a religião; a importância social depositada na honra masculina. Estas instituições frequentemente entram em conflito umas com as outras: a importância da honra, por exemplo, algumas vezes resulta em brigas que perturbam a paz pública. Embora nem sempre ajam em conjunto, cada uma destas instituições de alguma forma acabam se tornando obstáculos para Romeu e Julieta. A inimizade entre ambas as famílias, associada à ênfase colocada na lealdade e honra dos parentes, combinam para criar um profundo conflito para os amantes, que devem se rebelar contra seus patrimônios. Ainda, a estrutura patriarcal nas família renascentistas, em que o pai define toda a estrutura e desfechos sociais para os membros da sua família, particularmente para as mulheres, coloca Julieta numa posição extremamente vulnerável; o seu coração, na visão da família, não é seu para dar a quem desejar. A lei e a ênfase na civilidade social demandam termos de conduta com os quais a paixão cega do amor não pode concordar. A religião, da mesma forma, demanda prioridades que os amantes não podem cumprir por causa da intensidade do amor deles; embora na maioria das situações os amantes defendam as tradições do cristianismo (como esperar se casar e, somente depois, consumar o amor), o seu amor é tão poderoso que eles começam a pensar um no outro em termos de blasfêmia. Em uma das falas de Julieta, ela chama Romeu de ´deus da minha idolatria´, elevando o amante ao nível de Deus. Ainda, o ato final de suicídio do casal é também um ato de blasfêmia, não-cristão; a manutenção da honra masculina força Romeu a cometer ações que ele preferiria evitar, mas a ênfase social delegada à honra masculina é tão profunda que ele não pode simplesmente ignorá-la. É possível, assim, ver Romeu e Julieta como uma batalha entre as responsabilidades sociais e as ações exigidas por instituições sociais e as exigidas pelos desejos particulares do indivíduo... Ora, e não é assim a vida de todos nós? A apreciação da noite pelos amantes, com sua escuridão e privacidade, e a renúncia deles aos seus nomes, com sua consequente perda de obrigações, faz sentido no contexto dos indivíduos que querem escapar do mundo público, do mundo social. Entretanto, os amantes não podem impedir que a noite vire dia, e Romeu, por exemplo, não pode deixar de ser um Montecchio somente porque ele assim o quer; o resto do mundo não o permitirá. O suicídio final dos amantes pode ser compreendido, assim, como a noite definitiva, a privacidade definitiva.
   Um último grande tema tem alguma relação com o que escrevi nos primeiros parágrafos desta postagem: a inevitabilidade do destino. É como se não houvesse outra saída para o final da peça, e que o sentido somente se completa com o fim trágico. Já no prólogo da peça, na sexta linha do original em inglês, o coro anucia ´a pair of star-cross´d lovers take their life´, ou seja, o destino controla suas vidas. Não somente para o público, este senso de destino permeia toda a peça; os personagens são bastante conscientes disto: os amantes estão constatemente diante de presságios. Por exemplo, quando Romeu acredita que Julieta está morta, ele grita ´Então, eu te desafio, estrelas´, complementando a ideia de que o amor entre ambos está em oposição aos decretos do destino. Obviamente, o desafio de Romeu o leva a se jogar nas mãos do destino, e a sua determinação em passar a eternidade com Julieta resulta em suas mortes. O interessante mecanismo do destino envolve todos os eventos que cercam os amantes: a rivalidade entre suas famílias (é válido notar que o ódio entre as famílias nunca é explicado na peça, devendo o leitor apenas aceitá-lo como um aspecto inegável do mundo na peça), a série de acidentes horríveis que arruínam os aparentemente bem-intencionados planos do Frei Lourenço no final da peça, e, por fim, o trágico jogo do tempo no exato momento do suicídio de Romeu, imediatamente seguido do despertar de Julieta. Estes eventos não são mera coincidência, mas sim manifestações do destino que ajudam a trazer o resultado inevitável da morte dos jovens amantes.
   Quanto aos motivos da peça, um dos mais importantes é o contraste de imagens em claro e escuro. Nem sempre, contudo, há um significado metafórico especial no contraste: por exemplo, luz nem sempre é bom e o escuro nem sempre é mau; pelo contrário, a luz e a escuridão são geralmente utilizadas para proporcionar um contraste sensorial e sugerir alternativas opostas. Um dos exemplos mais importantes deste motivo é a longa meditação de Romeu sobre o sol e a lua durante a cena da sacada, em que Julieta, metaforicamente descrita como o sol, é vista como a banir a ´lua invejosa´ e a transformar a noite em dia. Outro momento em que se percebe o motivo é nas primeiras horas da manhã logo após a única noite em que os amantes ficam juntos; Romeu, forçado a fugir para o exílio no período da manhã, e Julieta, não querendo que ele saia do seu quarto, tentam fingir que ainda é noite, e que a luz é realmente escuridão (´A luz aumenta a cada instante / a luz? a escuridão apavorante´). Deixo parte da cena em que Romeu associa Julieta metaforicamente ao sol...

   Romeu: Só ri das cicatrizes quem ferida
     nunca sofreu no corpo.
                                (Julieta aparece na janela.)
     Que luz escoa agora da janela?
     Será Julieta o sol daquele oriente?
     Surge, formoso sol, e mata a lua
     cheia de inveja, que se mostra pálida
     e doente de tristeza, por ter visto
     que, como serva, és mais formosa que ela.
     Deixa, pois, de servi-la; ela é invejosa.
     Somente os tolos usam sua túnica
     de vestal, verde e doente; joga-a fora.
     Eis minha dama. Oh, sim! é o meu amor.
     Se ela soubesse disso!
     Ela fala; contudo, não diz nada.
     Que importa? Com o olhar está falando. 
     Vou responder-lhe. Não; sou muito ousado;
     não se dirige a mim: duas estrelas
     do céu, as mais formosas, tento tido
     qualquer ocupação, aos olhos dela
     pediram que brilhassem nas esferas,
     até que elas voltassem. Que se dera
     se ficassem lá no alto os olhos dela,
     e na sua cabeça os dois luzeiros?
     Suas faces nitentes deixariam
     corridas as estrelas, como o dia
     faz com a luz das candeias, e seus olhos
     tamanha luz no céu espalhariam,
     que os pássaros, despertos, cantariam.
     Vede como ela apóia o rosto à mão.
     Ah! se eu fosse uma luva dessa mão,
     para poder tocar naquela face!

    Outro motivo interessante são os pontos de vista opostos; neste sentido, Mercúrio desempenha um papel cabal. Na peça, Shakespeare inclui numerosas falas e cenas em que se apresentam dicas quanto às várias formas de se avaliar o que está acontecendo. Mercúrio constantemente espeta os pontos de vista dos outros personagens na peça; por exemplo, ele vê a devoção de Romeu ao amor como um tipo de cegueira que o rouba de si mesmo. Da mesma forma, ele enxerga a devoção de Teobaldo à honra como cega e estúpida. Os seus trocadilhos e o discurso sobre a Rainha Mab podem ser interpretados como uma subcotação de virtualmente todas as paixões evidentes na peça; assim, Mercúrio funciona como um crítico das ilusões de justiça e de grandeza dos personagens que o cercam. Os pontos de vista opostos também podem ser percebidos nas cenas com os servos. O mundo dos nobres é cheio de grandes tragédias; o dos servos, em contraste, é caracterizado por necessidades simples, e mortes prematuras ocorrem geralmente por doenças e pobreza, e não por duelos e grandes paixões. Enquanto a nobreza quase parece se deleitar com a sua capacidade para o drama, a vida dos servos é tal que eles não podem se permitir tragédias do tipo épico.
   Existem três interessantes símbolos na peça. O primeiro deles é o veneno; em sua primeira aparição, o Frei Lourenço observa que cada planta, erva e pedra tem suas próprias características especiais, e que não existe nada na natureza que não possa ser usado para fins bons e maus. Assim, o veneno não é intrinsecamente mau, mas é, em vez disto, uma substância natural que se torna letal através de mãos humanas. Ao longo da peça, estas palavras do Frei se provam verdadeiras. A poção de dormir que ele dá a Julieta surge para causar a impressão de morte dela, não a morte em si, mas por circunstâncias que fogem ao controle do Frei, a poção acaba levando a um resultado fatal: o suicídio de Romeu. Este exemplo mostra como os seres humanos tendem a causar a morte, mesmo sem querer. De forma semelhante, Romeu sugere que a sociedade é culpada pela venda criminosa de veneno pelo boticário, porque, enquanto há leis que proíbem a venda de veneno pelo boticário, não há leis que o ajudariam a ganhar dinheiro. Com tudo isto, o veneno simboliza a tendência da sociedade para arruinar as coisas boas e torná-las fatal, assim como a intriga sem sentido dos Capuleto e dos Montecchio transforma o amor de Romeu e Julieta em veneno. É interessante notar que, diferente de muitas de suas outras tragédias, esta peça não apresenta um vilão maldoso em si, mas sim pessoas com boas qualidades que acabam se tornando veneno pelo mundo em que vivem. 
   O segundo símbolo interessante na peça é o de morder o polegar. Este gesto é considerado desonroso na intriga entre as famílias e inicia disputas entre estas; ora, este gesto, essencialmente sem sentido, como causa de conflitos, representa a loucura da disputa entre os Capuleto e os Montecchio e toda a estupidez da violência em geral. 
   O último dos fortes símbolos na peça é a Rainha Mab. Há um discurso deslumbrante de Mercúrio sobre esta fada, que viaja durante a noite em sua pequena carruagem trazendo sonhos aos que dormem. Um dos mais interessantes aspectos da Rainha Mab, contudo, é que os sonhos que ela traz geralmente não contêm os melhores lados dos sonhadores, mas, em vez disto, serve para confirmar os vícios e desvirtudes que eles apresentam - por exemplo, a ganância, a violência, a luxúria. Outro importante aspecto da descrição da fada por Mercúrio é que ela é completamente sem sentido, embora vívida e muito colorida. Finalmente, é interessante notar que, na descrição da fada, ela percorre grandes distâncias para enfatizar o quão pequena e insubstancial ela e seus apretechos são. A Rainha Mab e sua carruagem não simplesmente simbolizam os sonhos dos que dormem, mas também o poder de expor fantasias, devaneios e desejos. Através do imaginário da fada, Mercúrio sugere que todos os desejos e fantasias são tão sem sentido e frágil quanto Mab, e que eles são basicamente corruptores. Este ponto de vista contrasta fortemente com o de Romeu e Julieta, que vêem seu amor tão real quanto nobre.

Rainha Mab
   Enfim, a primeira tragédia do ´bardo inglês´ se reveste de um brilho como nunca se tinha visto antes dele em estórias de amor. E o poder das suas palavras é tão grande que não existe qualquer referência àquele sentimento que não traga à memória imediatamente esta tragédia. Quantos filmes, quantas músicas, quantas peças, quantos quadros foram inspirados nesta peça! O que mais me chama a atenção em Romeu e Julieta é a idade dos amantes; no início da adolescência eles foram capazes de conhecer e viver o maior amor de suas vidas, e parece que o trágico fim se reveste de uma felicidade para o eterno, para o firmamento. Não poderia haver outro final! Neste fim transcendental, a primavera e o inverno se encontram - o inverno assume o papel da primavera, e esta a tristeza daquele. O maior sentido de todos? Parece que, não importa o que os personagens façam para tentar recriar o destino a eles imposto, este prepondera e se completa. Mas o destino parece que age como a dizer que, se não fosse ele, as coisas não se cercariam do sentido perfeito que lhes cabe; não parece ser uma questão de ´bom´ ou ´mau´. E, é válido analisar o final feliz de várias estórias infantis: ´e viveram felizes para sempre...´. Não, não pode haver tal final; não neste mundo! A vida exige o equilíbrio entre as coisas boas e ruins, inclusive elas coexistem dentro de cada um de nós. Agora, no caso da peça de Shakespeare, o final se deu para além deste mundo, e eles viveram exatamente o inverso do que ocorre nestas estórias infantis: eles tiveram um momento de felicidade suprema ao consumarem o seu amor uma única vez e o sofrimento supremo no duplo suicídio do final; mas o fim trágico é deste mundo, e a felicidade suprema está para além dele, por isto se completa e faz sentido, e o destino se exime de qualquer culpa. A truly masterpiece! Felicidade é ler Shakespeare! :) Uma boa semana a todos! Deixo a música homônima de Dire Straits, que muito tocou o coração dos jovens amantes, inclusive o meu!