domingo, 31 de março de 2013

Estudos em Shakespeare - Dramas Históricos - Vida e Morte do Rei João

   Depois de ter escrito sobre a primeira de suas tragédias, esta semana tecerei alguns comentários sobre um drama histórico do bardo inglês: Vida e Morte do Rei João. Esta é uma obra que se classifica desta forma por fazer parte do conjunto de sua obra que é baseada num contexto histórico, fundamentado em pesquisas históricas e expostas de forma artística como teatro. Com linguagem também elaborada e algumas descrições densas, já mostram uma marca importante e característica que consagrou o autor e o sedimentou para a posteridade.
   A peça provavelmente foi escrita antes de 1596 e apresenta uma visão diferente da história inglesa do que as que foram desenvolvidas por Shakespeare em suas peças históricas anteriores, estas que mostravam principalmente a luta interna entre os membros das famílias reais durante a Guerra das Rosas. Vida e Morte do Rei João apresenta uma temática focalizada em eventos históricos reais, não atribuindo qualquer significado fundamental ou grande sentido ao reinado do rei João; na verdade, ele trata a história como um desenrolar imprevisível de acontecimentos em que momentos aparentemente decisivos se tornam episódios insignificantes em um universo casual.

William Shakespeare
      É bem possível que o público que viveu durante a época de Shakespeare pode ter achado a peça, que se ambienta no século XIII, uma espécie de reflexão acerca do debate contemporâneo sobre a legitimidade real que envolvia as reivindicações dos concorrentes ao trono da rainha Elizabeth e Maria, rainha dos escoceses; os paralelos entre a peça e esses debates são muito numerosos. A reinvidicação do rei João ao trono se baseia na vontade do rei Ricardo, o Coração de Leão, seu irmão mais velho e rei anterior; o pai de Elizabeth, o rei Henrique VIII, também determinou que esta fosse sua herdeira por vontade, a despeito de disputas sobre a legalidade de nomeação de sucessores. O papa excomungou tanto o rei João como a rainha Elizabeth da Igreja Católica. Se forem analisados profundamente, os paralelos entre ambos os momentos históricos são muito presentes.

Rainha Elizabeth I (com a Armada Inglesa ao fundo)

Rei João
      O rival do rei João ao trono, Arthur, era filho do irmão mais velho de João, bem como Maria, rival de Elizabeth, era filha da irmã mais velha do rei Henrique VIII. Como a sucessão do trono normalmente se dá aos descendentes do filho mais velho, então as reivindicações de João e Elizabeth ao trono careciam de poder argumentativo. A causa de Arthur recebeu apoio do rei Filipe, da França, bem como a causa de Maria recebeu apoio de reis estrangeiros, incluindo o rei Filipe II, da Espanha. Da mesma forma que o rei João ordena a morte de Arthur e tenta se distanciar da ação, a rainha Elizabeth ordenou o assassinato de Maria e se distanciou do mesmo. A morte de Arthur funciona como um pretexto para uma invasão francesa, e a morte de Maria provocou o rei Filipe II a lançar a Armada Espanhola contra a Inglaterra. Esta é salva por uma tempestade que afunda os reforços franceses da mesma forma que outra tempestade ajudou os ingleses contra o poder da Armada Espanhola. Até certo ponto, este conjunto de paralelos simplifica tanto o teatro como a história, mas permite a Shakespeare enfatizar os temas da peça, incluindo a briga contra o papa, ameaça de invasão e a questão do governo ilegítimo.


    Alguns críticos acreditam que uma peça anterior anônima, The Troublesome Reign of John, King of England (1591), foi a fonte principal de Shakespeare para esta peça. Ambos se basearam na obra Chronicles of England, Scotland, and Ireland (1587), de Raphael Holinshed, uma narrativa da história inglesa que fundamentou extensivamente as peças históricas do bardo inglês na década de 1590. João tinha sido pensado como uma espécie de rei proto-protestante que tinha se levantado contra o papa, mas Shakespeare atenua a resistência temporária do rei João contra a Igreja Católica Romana; ele emerge mais como um rei que não apoiou nem os protestantes e nem os católicos. Ele enfraqueceu a Igreja Católica por pilhar as finanças dos mosteiros, mas acaba cedendo a Roma.
   Vida e Morte do Rei João foi publicada pela primeira vez na First Folio de 1623. Estudiosas datam a escrita inicial desta peça como sendo do período logo após a derrota da Armada Espanhola e acreditam que ela foi escrita após a peça anônima que trata do mesmo tema. Análises estilísticas e de direção de palco sugerem que a peça foi escrita por volta de 1596.
   Resumidamente, a peça começa com um mensageiro da França chegando à corte inglesa exigindo que o rei João renuncie ao trono em favor de seu sobrinho Arthur. Este mensageiro fala em nome do rei Filipe, da França, que apóia Arthur como o legítimo herdeiro do trono inglês; uma vez que o rei João se recusa a ceder a esta exigência, a França ameaça guerra contra a Inglaterra. O Bastardo e seu irmão mais novo aparecem para disputar suas terras herdadas. O rei João declara que o Bastardo tem o direito às terras, uma vez que a descendência de uma esposa se torna um herdeiro do pai, não importa quem seja o verdadeiro pai. A mãe de João, Eleonor, começa a gostar do Bastardo porque há rumores de que o pai deste teria sido o filho dela e irmão de João, Ricardo, o Coração de Leão. Ela propõe que ele deixe suas terras para o seu irmão mais novo e se junte aos exércitos dela sob o título de Bastardo de Ricardo, o Coração de Leão; ele concorda, e João o torna cavaleiro.



    Na França, Filipe e suas forças se preparam para atacar a cidade de Angers, mantida pelos ingleses, a menos que os seus cidadãos jurem submissão a Arthur. João e seu exército chegam ao local; a mãe de Arthur, Constança, e Eleonor trocam insultos, enquanto vários membros de cada um dos lados concordam com os insultos. Cada um dos reis pergunta aos cidadãos de Angers quem eles apóiam como rei da Inglaterra, mas os cidadãos dizem que apóiam o rei legítimo. Os exércitos de ambos os reis iniciam a guerra, mas são tão semelhantes em competência que nenhum dos lados vence. Os cidadãos de Angers ainda não se decidiram entre o verdadeiro rei. O Bastardo sugere que os exércitos inglês e francês se unam para conquistar a desobediente cidade de Angers e, posteriormente, combaterem um contra o outro; eles concordam e se preparam para atacar, mas os cidadãos da cidade sugerem uma alternativa: casar o filho do rei Filipe, Luís, com a sobrinha do rei João, Branca de Espanha; com isto, a paz pode ser alcançada. A ideia agrada Luís e João, pois isto reforça o elo de João ao trono e Luís ganha territórios franceses mantidos pelos ingleses. O Bastardo fica maravilhado com a mente mutável dos nobres...
   Constança fica chateada com o curso dos acontecimentos e culpa Felipe por ter abandonado seu apoio à causa de Arthur quando se apresenta com um vínculo mais frutífero ao trono inglês. Luís e Branca de Espanha são casados quando Pandolfo, um embaixador do papa, chega. Ele culpa João por ter desobedecido ao papa na nomeação de um arcebispo, mas João se mostra sem interesse em obedecer a um papa distante do território inglês. Pandolfo excomunga João e cobra de Luís o dever de derrubar João. Filipe, cuja família acabara de assumir um elo com João pelo casamento descrito, hesita enquanto seus nobres tentam influenciá-lo. Pandolfo o lembra de que seus laços com a Igreja antecedem suas conexões com João e ameaça excomungá-lo também. Finalmente, Filipe cede e rompe com João.
   Após batalhas inconclusivas em que os ingleses capturam Arthur, João se prepara para retornar à Inglaterra, deixando sua mãe no comando dos territórios franceses sob o domínio inglês e enviando o Bastardo à frente para coletar impostos dos mosteiros ingleses. João instrui Hubert a cuidar de Arthur e então o ordena sutilmente a matar o sobrinho. Enquanto isto, Pandolfo tenta encorajar os franceses a lutar, sugerindo que Luís agora também pode requerer o trono inglês com o mesmo direito que Arthur pelo casamento com uma herdeira da família real inglesa; Luís concorda em atacar a Inglaterra.
   Hubert tenta matar Arthur, mas ele fica tão encantado com a inocência deste que se torna incapaz de fazê-lo; ele diz a Arthur que ninguém pode saber que este está vivo. Enquanto isto,  os nobres de João pedem que este liberte Arthur, e o rei concorda em libertá-lo. Hubert entra e relata que Arthur está morto; os nobres acreditam que Arthur foi assassinado e partem para se unir ao exército de Luís. O Bastardo retorna dos mosteiros relatando que o povo não está contente em saber que o rei está roubando os mosteiros, e este mesmo povo prediz a queda de João. O rei grita com Hubert e o acusa de o ter estimulado a ordenar a morte de Arthur, a qual ele clama nunca ter querido. Finalmente, Hubert revela que Arthur está vivo; o rei fica aliviado e manda Hubert aos nobres que partiram para lhes informar desta notícia.
   Arthur tenta fugir da Inglaterra, mas de forma tola pula de um muro de castelo e cai para a sua morte.Os nobres encontram o seu corpo e ficam horrorizados com a brutalidade que eles acreditam que foi utilizada para matar o garoto. Hubert aparece e relata que Arthur está vivo; os nobres apontam para o corpo do garoto e acusam Hubert de o ter morto. Hubert diz que Arthur estava vivo quando o deixou. Os nobres partem para encontrar Luís.
   João faz um acordo com Pandolfo: ele concorda em honrar o papa se Pandolfo puder mandar o exército francês embora. O Bastardo chega para relatar a partida dos nobres; João o informa de seu acordo com Pandolfo. O Bastardo, por seu lado, quer lutar contra os franceses e, sob o seu comando,  conduz o exército do rei João. Os nobres ingleses que deixaram João juram lealdade a Luís. Pandolfo chega com a notícia de que João se reconciliou com Roma e tenta dissuadir Luís do ataque, mas este diz que não será ordenado por ninguém a não atacar. O Bastardo chega para falar com Luís e o ameaça de grande destruição pelas mãos do exército inglês, a menos que o delfim francês recue; cada lado se prepara para a batalha.
   Um nobre francês está ferido e diz aos nobres ingleses que Luís planeja matá-los se ele ganhar; ele os aconselha a se reconciliarem com João, e eles o fazem. Os reforços de Luís são perdidos no mar, o que muito compromete suas perspectivas de vitória. Enquanto isto, o Bastardo encontra Hubert, que relata que João foi envenenado por um monge em um mosteiro, onde ele estaria esperando por notícias do Bastardo. Os nobres ingleses e o filho de João, o príncipe Henrique, reúnem-se ao rei doente. O Bastardo relata que perdeu muitos de seus homens, que se afogaram na maré. João morre pelo efeito do veneno do monge. O Bastardo se prepara para atacar Luís, mas os nobres relatam que Pandolfo acabara de trazer-lhes um tratado de paz do delfim francês. O Bastardo e os nobres juram lealdade a Henrique, e o Bastardo fala da Inglaterra e de como ela nunca será tomada por conquistadores estrangeiros, a menos que seja primeiramente danificada por conflitos internos.
    
O Rei João Sem-Terra assinando a Carta Magna

   Tecerei agora alguns comentários sobre os principais personagens da peça. O rei João é o terceiro filho de Henrique II. O seu irmão mais velho, Ricardo, o Coração de Leão, foi rei antes dele. Após a morte deste, legalmente, o filho de seu irmão mais velho já morto, Geoffrey, de nome Arthur, deveria ter se tornado o próximo rei, mas João assume o trono porque Ricardo o designara; a legitimidade do seu reinado é, então, colocada em dúvida, mas João fica feliz em ir para a guerra defender a si mesmo. Entretanto, há outras questões que ameaçam o seu governo tanto quanto a sua legitimidade com relação ao trono, que são a sua indiferença em relação aos decretos do papa e sua vontade de roubar dos mosteiros. Contudo, no fim, é sua ordem para matar Arthur que destrói o apoio dos seus nobres. Por conta dos roubos aos mosteiros, é morto pelas mãos de um monge.

O rei João e Eleonor
   A mãe de João, Eleonor, encoraja-o a se manter firme no trono a despeisto da questão da legitimidade. Ela e a mãe de Arthur travam discursos agressivos sobre quem deveria ser o próximo rei. A morte de Eleonor na França significa que João não está adequadamente informado sobre a invasão francesa e isto rapidamente o leva ao desespero.

O delfim Luís, o rei Filipe, da França, e o rei João, da Inglaterra.
   O rei da França, Filipe, é o campeão de Arthur e solicita ao rei João que este abdique ao trono em favor do seu sobrinho. Mostra-se muito volúvel quando muda de ideia e se junta à família de João na questão do casamento de Luís com Branca de Espanha. É forçado a mudar de ideia novamente quando Pandolfo insiste que ele deve defender o papa e guerrear João. Entretanto, o principal problema de Filipe é que ele acabara perdendo muitos dos seus exércitos ao cruzar o mar entre a França e a Inglaterra.

Arthur e Hubert
   O herdeiro legítimo ao trono é Arthur, filho do irmão mais velho de João. Sua mãe, Constança, manipula a tentativa dele em tomar o trono inglês, e Filipe providencia a força militar de que ele precisa. Por outro lado, Arthur deseja nunca ter fazido parte da vida política complexa que ele enfrenta, e sonha, na verdade, em ser um simples pastor. Ele convence Hubert a não matá-lo, mas morre quando tolamente tenta pular os muros do castelo em fuga.
   Um dos personagens mais interessantes da peça é o Bastardo. Filho ilegítimo de Ricardo, o Coração de Leão, o verdadeiro nome dele é Filipe. Ele clama pela herança de sei pai adotivo, mas decide abdicar desta herança em favor de seu irmão mais novo para se tornar um cavaleiro a serviço do rei João. No início da peça, ele se apresenta como uma figura perniciosa, solicitando que ingleses e franceses se unissem para destruir Angers e, sob ordens de João, roubando dos mosteiros; entretanto, logo ele se torna o principal apoio do rei João depois que todos os nobres abandonam este. O Bastardo aparece falando à audiência, interpretando e analisando cenas. Pelo final da peça, seu comportamento honroso o torna mais carismático e apreciável que o próprio rei João, mas a má sorte o acompanha quando ele perde metade do exército inglês. Ele persiste, porém, e tenta declarar guerra a Luís mesmo após a paz ter sido declarada. As falas de maior profundidade na peça pertencem ao Bastardo.

O rei João e o Bastardo
   O filho de Filipe, Luís, casa-se com Branca de Espanha e, assim, torna-se um outro distante herdeiro da coroa inglesa. Pandolfo o encoraja a requisitar este direito, e ele decide atacar a Inglaterra. Entretanto, seus reforços se perdem no mar, e Luís leva Pandolfo a requerer um tratado de paz com a Inglaterra.
   O príncipe Henrique, filho do rei João, torna-se o rei Henrique III após a morte do seu pai, e os nobres todos juram lealdade a ele sob o corpo de seu pai morto.
   Ao contrário das peças históricas mais iniciais de Shakespeare, Vida e Morte do Rei João não retrata um movimento providencial da história, em que tudo acontece por um razão em um caminho predestinado a uma conclusão moral. Enquanto a peça mantém o foco em alguns eventos históricos do reinado do rei João, ela nos apresenta menos curso narrativo em relação a peças como Henrique V. Os eventos na trama interrompem a conexão entre a intenção e os resultados ao longo de toda a peça; os personagens são frustrados por acidentes históricos e adversidades, de modo que esta peça é mais uma representação pragmática de eventos políticos do que uma história moldada de acordo com fins estéticos. O principal conflito gira em torno dos esforços de João para manter a coroa contra as alegações de que ele não é o herdeiro legítimo do trono. A cena de abertura mostra uma luta sobre a herança entre o Bastardo e seu irmão mais novo, mas o fim da disputa é surpreendente ao mostrar que ser um filho bastardo não é barreira para a herança; porém, o Bastardo renuncia à sua herança, escolhendo ser um cavaleiro sem terras.
   Há algo muito interessante a se notar na peça: a realeza é intensamente volúvel. Acordos vêm e vão ao longo de toda a peça. Os reinos francês e inglês disputam a lealdade de Angers, mas logo em seguida se unem para destrui-la; depois, acabam terminando o conflito e poupam a cidade sob a negociação do casamento entre herdeiros da França e da Inglaterra. Porém, esta resolução é transitória, pois o representante do papa, Pandolfo, excomunga João e insiste que o rei Filipe, da França, que acabara de se unir à família real inglesa pelo casamento de seu filho, Luís, guerreie contra os ingleses.
   Filipe apóia Arthur como o herdeiro legal do trono inglês; baseando-se nisto, João conclui que manterá seu lugar no trono seguro desde que Arthur morra, e ordena o assassinato deste. Entretanto, este ato faz com que seus nobres se virem contra ele e unam-se aos franceses na invasão à Inglaterra. Sabendo que o carrasco de Arthur, Hubert, na verdade poupara o garoto, o rei João tenta reverter a situação com relação aos nobres. Mas Arthur morre acidentalmente; com a interpretação de assassinato para esta morte por parte dos nobres ingleses, estes se afastam do rei João. Este tenta postergar a batalha com os franceses tentando se redimir com o papa, mas isto acaba não surtindo efeito. Os nobres ingleses acabam retornando para o rei João somente após saber do plano francês para executá-los logo que houvesse uma vitória contra os ingleses.
  Batalhas importantes têm lugar fora dos palcos de guerra em si, embora nem todas, como descarrilhamentos por traições de última hora ou uma sucessão de grupos de exército perdidos no mar. João morre fora dos campos de batalha, envenenado por um monge indignado com os seus roubos contra os mosteiros; este final do rei é pouco dramático, baseando-se em circunstâncias mal retratadas dentro do escopo da peça. O filho do rei aparece convenientemente no leito de morte de João, anunciando o acordo de paz com a França. O final da peça parece um tanto ortodoxo: um rei morto sucedido por seu filho e herdeiro; mas, na verdade, acaba se mostrando um tanto instável, já que as perspectivas de paz pareciam tão flutuantes antes da morte de João, além do que este nunca foi, reconhecidamente, o herdeiro verdadeiro do trono.
   A peça dramatiza vários pontos que suscitariam interesse por parte da audiência de Shakespeare à época deste: um conflito com o papado, o perigo de invasão e o debate sobre a regra de legitimidade. Estes mesmos temas foram debatidos durante o reinado da rainha Elizabeth I. Entretanto, esta peça difere de outros dramas históricos do bardo inglês: ele retrata o século XIII, em vez do XIV ou XV; além disto, é uma peça única, ou seja, não faz parte de uma série. Outras de suas peças históricas mantêm o foco no equilíbrio do poder entre a nobreza e o rei, dando conta da agitação popular; esta peça, em contraste, marginaliza completamente a população no sentido em que não atribui muito poder aos nobres.
   Com tudo isto, o foco real da peça se torna a questão da legitimidade do trono e da aptidão para governar, que se dá apresentando a relação entre João e Arthur. Como já dito, Arthur, sendo o filho do irmão mais velho de João, era o legítimo herdeiro do trono inglês; mas João é escolhido para governar pelo rei anterior. Entretanto, interessantemente, no caso do Bastardo, o rei João determina que a vontade não pode se antepor à lei, e a vontade do pai que sua herança passasse para o seu filho mais novo foi sobrepujada pela lei, que determina que a herança deve ir para o filho mais velho, bastardo ou não. Agindo desta forma, João involuntariamente prova seu direito ilegítimo ao trono, pois é baseado em vontade, e não em direito legal à sucessão. Embora Shakespeare tenha provado que João não é o herdeiro legítimo do trono, a questão é bastante complicada na medida em que se discute a clara diferença que existe entre a ideia de ´legitimidade´ e ´aptidão´. Ora, Arthur é o herdeiro legítimo, mas é retratado como uma criança fraca que vive sob a ´saia de sua mãe´, e isto o apresenta como alguém inapto ao poder, de modo que haveria uma grande probabilidade de se tornar um rei fraco e ineficaz. Por que João é um homem mais forte, sua reivindicação ao trono começa a parecer muito mais atraente.
   Com esta situação toda, parece surgir uma espécie de defesa da ilegitimidade. Para este fim, o Bastardo se desenvolve como o personagem mais convincente na peça. Ele surge menos como um personagem do que como um conjunto de funções teatrais, encarnando a figura perniciosa de peças de moralidade inglesa anteriores; ele fala com a audiência e faz observações acerca dos eventos. No mais, ao longo da segunda metade da peça, ele se torna inabalavelmente leal ao rei, denunciando acordos feitos entre João e Filipe e entre João e Pandolfo, e critica o desejo da realeza por comodidade e auto-interesse. O Bastardo parece acreditar que Arthur morreu acidentalmente e retorna para junto do rei para defender a coroa e o reinado; neste ponto, ele se torna o centro retórico e ético da peça.
   Ao apoiar João, o heróico e honroso Bastardo faz parecer que aquele deve ser a escolha certa para ser o rei. Entretanto, ao ordenar a morte de Arthur e mostrar uma crueldade desnecessária, o rei parece fazer tremer o equilíbrio entre o legalmente certo e a legitimidade hereditária no reinado; como o argumento central se enfraquece, também se enfraquece o herói da peça: o Bastardo perde parte de seu exército em outra sepultura aquosa, e, além disto, planeja lutar uma guerra irrelevante com a França mesmo após outros terem negociado paz. Mesmo com tudo isto, ele não é totalmente colocado de lado (ele faz o discurso final da peça); porém, enquanto ele elogia a força inconquistável de sua nação, sua resolução tem menos a ver com a vitória do que com o colapso simultâneo dos exércitos de ambas as nações. E enquanto ele se deleita com o poder da Inglaterra, ele também observa que os conflitos internos poderiam desgraçar a nação.
   Com toda esta discussão sobre a peça, o poder da mesma insiste em permanecer nas palavras, nos discursos. Por isto Shakespeare emociona a todos, fazendo os corações se aquecerem e as mentes se iluminarem à emanação de conjuntos de palavras que geram imagens que, na verdade, não estão lá. Deixo trechos de dois discursos do personagem mais cativante de toda a peça: o Bastardo.

   Discurso 1:
   E esse mesmo pendor, esse Interesse,
   esse alcaiote tecedor de intrigas,
   palavra que transforma tudo a todos
   os momentos, lançado contra os olhos
   da França tão volúvel, fez que logo
   desistisse do auxílio que ela própria
   decidira prestar e de uma guerra
   principiada com honra, para, agora,
   concluir uma paz vil e infamante.
   Por que cubro de injúrias o Interesse?
   Tão-somente por não me ter ainda
   conquistado. É certeza: eu não teria
   coragem de fechar a mão, se, acaso,
   se dispusessem seus bonitos anjos
   a me cumprimentar. Não tendo sido
   tentada ainda, ela é como a dos pobres
   mendigos que os ricaços vitupera.
   Pois o mesmo farei, enquanto pobre:
   não há pecado como o da riqueza,
   direi então; mas quando ficar rico,
   direi ser a miséria o único vício.
   Se a ambição, entre os reis, é quase uma arte,
   Interesse, és meu deus: quero adorar-te.

   No original, em inglês:
   And this same bias, this Commodity,
   This bawd, this broker, this all-changing word,
   Clapp´d on the outward eye of fickle France,
   Hath drawn him from his own determin´d aid,
   From a resolv´d and honourable war,
   To a most base and vile-concluded peace.
   And why rail I on this Commodity?
   But for because he hath not woo´d me yet.
   Not that I have the power to clutch my hand
   When his fair angels would salute my palm;
   But for my hand, as unattempted yet,
   Like a poor beggar, raileth on the rich.
   Well, whiles I am a beggar, I will rail,
   And say there is no sin but to be rich;
   And being rich, my virtue then shall be
   To say there is no vice but beggary.
   Since kings break faith upon Commodity,
   Gain, be my lord, for I will worship thee!  


   Discurso 2:
   Só paguemos ao tempo a indispensável
   tristeza, por se ter antecipado
   demais à nossa dor. Esta Inglaterra
   nunca jamais caiu sob o orgulhoso
   pé de inimigo algum, senão no instante
   em que ela quis ferir o próprio seio.
   Mas agora que os príncipes voltaram,
   ainda que contra nós armados venham
   os três cantos do mundo, saberemos
   defender-nos. Jamais teremos causa
   de pesar, se, na paz como na guerra,
   fiel a si mesmo for, sempre, a Inglaterra.

   No original em inglês:
   O! let us pay the time but needful woe
   Since it hath been beforehand with our griefs.
   This England never did, nor never shall,
   Lie at the proud foot of a conqueror,
   But when it first did help to wound itself.
   Now these her princes are come home again,
   Come the three corners of the world in arms,
   And we shall shock them. Nought shall make us rue,
   If England to itself do rest but true.


   Inalcançável Shakespeare! Uma boa semana a todos!

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