De volta ao tratamento das peças do bardo inglês, nesta postagem tecerei alguns comentários sobre a peça A Tragédia do Rei Ricardo II. É uma peça que faz parte dos chamados dramas históricos na obra do poeta, sendo a primeira parte de uma tetralogia que lida com a queda da dinastia dos Plantagenet (ou Plantageneta) do trono inglês e a ascensão dos Lancaster (ou Lencastre) ao mesmo, embora a queda de uma família e ascensão da outra não queira dizer que não apresentem ligação hereditária, ou seja, que represente uma quebra dinástica. Nesta tetralogia, as outras três partes são Henrique IV - Parte 1, Henrique IV - Parte 2 e Henrique V. A peça sobre o rei Ricardo II foi provavelmente escrita por volta de 1595, e certamente não depois de 1597; tem fascinado críticos ao longo dos séculos, embora tenha sido geralmente considerada inferior a outras peças históricas de Shakespeare. O que mais causa comoção ao ler a peça é a observação de reflexões profundamente poéticas e ´metafísicas´ sobre a natureza da realeza e da identidade, e isto marca uma nova direção nos trabalhos do poeta - na verdade, muito do que se lê na peça serve como uma espécie de preparação para uma outra, mais intelectualmente desenvolvida: Hamlet. As qualidades formais de A Tragédia do Rei Ricardo II são também muito interessantes: observa-se com frequência uma alta estilização e, em nítido contraste com a peça que a sucede, Henrique IV, não contém virtualmente nenhuma prosa. O poeta faz bom uso de grandes metáforas - como a famosa comparação da Inglaterra com um jardim e da comparação do rei com um leão ou o sol; estas referências acabam levando a exposições ricas e complexas de temas como a natureza da soberania, do reinado e da identidade.
Digno de nota na discussão acerca dos dramas históricos do poeta é compreender que os considerados mais importantes foram escritos em duas séries de quatro peças, ou seja, em duas tetralogias. A primeira delas foi escrita próximo ao início de sua carreira (entre 1589 e 1593) e consiste das peças Henrique VI - Partes 1, 2 e 3 - e Ricardo III, sendo que estas cobrem a fase da queda da Casa dos Lancaster, que seria o período histórico que vai de 1422 até 1485. A segunda tetralogia foi escrita no auge da carreira do bardo (entre 1595 e 1599) e volta no tempo para examinar a ascensão dos Lancaster, cobrindo o período histórico que vai de aproximadamente 1398 a 1420; esta última série, como descrito acima, cobre a peça de que trata esta postagem, Henrique IV - Partes 1 e 2, e Henrique V. Embora os eventos relatados em A Tragédia do Rei Ricardo II tenham ocorrido aproximadamente dois séculos anteriormente ao momento histórico em que viveu Shakespeare, este esperava que sua audiência fosse familiar com os personagens e eventos descritos. As batalhas entre as casas e a ascensão e queda dos reis rechearam a construção da cultura inglesa e formaram uma parte fundamental das lendas patrióticas do país e da mitologia nacional. Isto pode ser comparado com a forma com que os cidadãos norte-americanos ainda tratam e se recordam dos eventos ocorridos e dos personagens que fizeram parte da Revolução Americana, que ocorreu mais de dois séculos atrás. Um fato interessante é que, a exemplo do povo inglês da época de Shakespeare, muitos norte-americanos não conhecem esta história em detalhes; desta forma, a história como apresentada pelo poeta inglês é frequentemente menos acurada em detalhes reais, mas refletindo as concepções populares da história.
Ricardo II (1367-1400) |
É sabido que a grande fonte de Shakespeare para boa parte dos dramas históricos é a obra colossal de Rapahel Holinshed: The Chronicles of England, Scotland and Ireland, publicado em 1586-7. Mas o bardo inglês também se utilizou de muitos outros materiais nestes seus dramas; em A Tragédia do Rei Ricardo II, por exemplo, mais de sete fontes são cotadas como tendo contribuído na sua construção. É importante lembrar, quando lendo e analisando estas obras históricas, o significado para este gênero do que se poderia chamar de ´as sombras da história´. Uma das questões que preocupa os personagens neste gênero é se o rei da Inglaterra é ou não divinamente apontado por Deus; se o é, então a deposição ou assassinato de um rei seria uma blasfêmia, e poderia lançar uma grande sombra sobre o reinado do rei que assumiu o trono por meios nefastos. Esta sombra, que é representada por fantasmas literais em peças como Hamlet, Macbeth, Júlio César e Ricardo III, também paira sobre A Tragédia do Rei Ricardo II; o assassinato do rei Ricardo II no final desta peça irá amaldiçoar o rei Henrique IV pelo resto de sua vida, e esta maldição só pode ser redimida pelo filho deste, Henrique V. De forma semelhante, o próprio rei Ricardo II, na peça, é assolado por um assassinato politicamente motivado: não de um rei, mas de seu tio, Thomas de Woodstock, Duque de Gloucester; esta morte aconteceu antes dos eventos do início da peça, mas, como se vê ao longo desta, ela assola o rei Ricardo II, da mesma forma que sua própria morte irá assolar o usurpador responsável por esta morte.
De importância fundamental para a compreensão desta peça e de toda a tetralogia de que ela faz parte é o conhecimento das vertentes genealógicas que envolvem os personagens, principalmente os reis. Ricardo II, no caso desta tetralogia o último da linhagem dos Plantagenet (embora o último rei desta linhagem tenha sido, de fato, Ricardo III, cuja morte, em 1485, acabou pondo fim ao período da Idade Média na Inglaterra do ponto de vista histórico; um detalhe digno de nota é que embora este rei tenha sido da Casa de York, a linhagem é Plantagenet, e, de fato, a queda desta na figura de Ricardo II não quer dizer que tenha havido um fim da dinastia, como descrito anteriormente, haja vista, por exemplo, que o próprio Henrique IV era primo de Ricardo II - pode-se compreender esta espécie de queda dinástica como uma dicotomização dentro da própria família, dando início à ascensão dos Lancaster), foi lançado ao trono da Inglaterra com 10 anos; isto ocorreu quando seu avô, o grandemente reverenciado rei Eduardo III, morreu em 1377. O pai de Ricardo II também tinha por nome Eduardo e ficou conhecido para a História como o Príncipe Negro - era um herdeiro promissor, adorado e bastante dotado para a guerra; acontece que este morreu um ano antes do pai, Eduardo III, deixando o trono para um jovem Ricardo II. Esta ascensão numa idade jovem significou o crescimento ´estragado´ pelo poder, o que permitiu que se tornasse dependente de conselheiros influentes; em vários momentos da peça, ele é comparado desfavoravelmente tanto com seu avô como o próprio pai, que não chegou a ser rei. Como o Príncipe Negro era o filho mais velho do rei Eduardo III, e as rígidas leis de sucessão do trono inglês determinavam que o filho mais velho do filho mais velho do rei deveria herdar a coroa, o jovem Ricardo II torna-se rei. No entanto, o Príncipe Negro tinha seis irmãos mais novos, muitos dos quais são importantes na peça tema desta postagem; um deles é João de Gaunt, Duque de Lencastre. Este é, obviamente, o tio de Ricardo II; o filho daquele, Henrique de Bolingbroke, que acaba usurpando o trono, é, portanto, primo do rei e também um neto de Eduardo III. Um irmão mais novo do Príncipe Negro é Edmundo de Langley, Duque de York; este é, assim, irmão de Gaunt e também tio do rei, e o filho de Langley, o Duque de Aumerle, é um primo tanto do rei como de Henrique de Bolingbroke.
Brasão de Armas da Casa dos Plantagenet |
Árvore Genealógica da Casa dos Plantagenet a partir de Henrique III |
Reis da Casa dos Plantagenet (o último na foto é Ricardo II) |
Símbolo da Casa dos Lancaster |
Símbolo da Casa dos York |
Símbolo da Casa dos Tudor |
Eduardo, o Príncipe Negro (1330-1376) |
Henrique IV (1367-1413) |
Em Conventry, uma grande plateia se reúne para assistir ao duelo entre Mowbray e Bolingbroke. No último instante, porém, o rei cancela o conflito sob o pretexto de que o solo inglês não deve ser manchado por sangue de ninguém, e decide banir Bolingbroke da Inglaterra por 10 anos e Mowbray para sempre (o que se depreende do fato é que o rei tenta encobrir o fato de que ele ordenou Mowbray a matar Gloucester). Por insistência de João de Gaunt, o banimento de Bolingbroke cai de 10 para 6 anos; Gaunt afirma que o tempo acaba não importando muito, pois ele provavelmente estará morto na época em que Bolingbroke puder retornar à ilha britânica. Gaunt realmente acaba morrendo na cena seguinte, mas antes de isto acontecer ele faz um dos mais famosos discursos da peça, querendo dizer o quanto a Inglaterra era magnífica até que Ricardo II apareceu e a arruinou ao gastar todo o seu dinheiro e arrendar as terras reais; este grandioso discurso é recitado como um último suspiro de Gaunt. Após a morte deste, em vez de ficar triste ou se sentir culpado de alguma forma por ter acelerado tal morte ao banir Bolingbroke, o rei toma todas as propriedades e terras de Gaunt sob o pretexto de custear sua guerra na Irlanda; o Duque de York acredita que esta é uma péssima ideia, afirmando que confiscar tais terras é ilegal, já que o herdeiro legal a estas é Henrique de Bolingbroke. Começa a se perceber o descontentamento dos nobres diante desta decisão do rei (ora, o poder dos nobres reside justamente nas terras e propriedades que lhes é de direito, e quando alguém as toma, da forma que o rei faz, os nobres jamais ficam contentes).
Enquanto isto, Bolingbroke ainda está banido, mas em vez de esperar o tempo passar passivamente, ele reúne um exército para cruzar o canal que separa o norte da França e a Inglaterra; ele acaba conquistado alguns dos nobres ingleses para o seu lado, e estes parecem adorá-lo. Enquanto o rei se encontra na Irlanda em guerra contra aquele país, Henrique chega à Inglaterra com suas tropas para exigir sua herança por direito (e um desejo que já fica subentendido de tomar a coroa para si). O rei retorna para a Inglaterra, mas a ela chegando percebe que não tem chance contra o exército de Bolingbroke, e este pode tomar para si o território inglês. Os verdadeiros desejos de Henrique se apresentam quando o rei é encurralado no território do Castelo de Flint - a coroa é requerida por Bolingbroke. Ricardo II não tem saída, a não ser entregar a coroa, e isto se faz com um rei discursando de forma altamente poética em outro show linguístico do bardo inglês. Após perder a coroa, Ricardo II é aprisionado no Castelo de Pomfret. Enquanto o rei discursa sempre poeticamente acerca de seus sentimentos com relação à perda do trono, Henrique Bolingbroke, agora Henrique IV, pragmaticamente cuida do reino. Enquanto isto, Exton, um dos personagens a serviço de Henrique IV, acredita por frases ditas por este que é desejada a morte de Ricardo II e o acaba matando no Castelo de Pomfret. Antes de morrer, o rei deposto mata dois dos criados que foram juntamente com Exton. Ao saber do fato, Henrique IV se enraivece e acusa, hipocritamente, Exton de cometer tal delito sem estar em coerência com ordens diretas do rei e acaba banindo este, além de declarar luto oficial pelo morte de Ricardo II e de anunciar pretensão de perergrinar à Terra Santa (Jerusalém) para se redimir de seus pecados.
Alguns dos personagens mais importantes são o rei Ricardo II, Henrique de Bolingbroke, João de Gaunt, Edmund de Langley, o Duque de Aumerle e Tomás Mowbray. O rei Ricardo II é um rei jovem que não amadureceu muito desde sua adolescência. Tem um talento extraordinário para o discurso poético e goza a pompa da realeza; no entanto, é desconectado de sua terra e de seu povo. Uma das cenas em que se apresenta a inconstância da mente do rei é quando ele subitamente suspende o duelo entre Bolingbroke e Mowbray e os bane do reino. Henrique Bolingbroke, o Duque de Hereford, primo do rei e que acaba ususrpando o poder deste, é menos poético e muito mais pragmático e capaz que Ricardo II. Retorna do banimento jurando lealdade tanto à nobreza inglesa quanto às pessoas comuns ao seu lado, e acaba depondo Ricardo II. João de Gaunt, Duque de Lencastre, tio do rei, é um nobre importante que começa a peça já com idade avançada, morrendo na cena I do segundo ato - antes de morrer, lança uma maldição sobre o rei. Edmund de Langley, Duque de York, também tio do rei, é feito governador do reino enquanto o rei está fora em guerra com a Irlanda, mas acaba sendo convencido por Bolingbroke a trair aquele e se juntar ao exército rebelde deste; um tradicionalista que é lealmente devoto à coroa, ele fica altamente chateado com qualquer tipo de traição contra o trono. O Duque de Aumerle, também chamado de Rutland mais adiante na peça, já que é o Conde de Rutland, é o filho de Edmund, Duque de York, e, portanto, primo tanto de Ricardo II como de Bolingbroke; ele permanece leal ao rei ao longo da guerra e, após a deposição deste, é envolvido num atentado sem sucesso contra a vida do novo rei, Henrique IV. Tomás Mowbray, Duque de Norfolk é um nobre acusado por Bolingbroke, entre outras coisas, de estar envolvido na morte de Thomas de Woodstock, Duque de Gloucester, tio do rei; Mowbray é banido ao mesmo tempo que Bolingbroke, mas morre no exílio. O sentido desta repetição acerca dos personagens da peça é facilitar a compreensão da trama da peça no momento em que se reforça o entendimento da genealogia dos personagens, o que é de importância fundamental na peça, e, como já dito, reforça o apreço por A Tragédia do Rei Ricardo II.
Numa discussão acerca dos temas da peça, alguns saltam aos olhos. Um dos grandes interesses de Shakespeare em suas peças históricas é o poder da realeza. Em Ricardo II, o poeta dramatiza duas muito diferentes atitudes com relação ao reinado: de acordo com o rei e seus seguidores, os reis deveriam herdar suas coroas de seus pais, e eles têm direito de governar porque são representantes escolhidos por Deus na Terra; de acordo com Henrique Bolingbroke e seus seguidores, o direito de um rei para governar é um privilégio garantido a este por seus súditos, o que significa que o direito para governar depende do fato de o rei ser ou não realmente um bom líder. Críticos e historiadores apontam que, quando Shakespeare estava escrevendo Ricardo II, as ideias europeias sobre poder e monarquia estavam começando a mudar de um ponto de vista religioso, como o de Ricardo II, para um mais secular (no sentido de não estar ligado a religião), como o de Henrique IV; a peça é um reflexo desta mudança.
Ricardo II |
João de Gaunt, Duque de Lencastre |
Tomás Mowbray |
Outro tema é o da família. Nesta peça são apresentados muitos conflitos familiares; por exemplo, muitos personagens estão tentando descobrir como agir quando seus primos, filhos e pais acabam se tornando politicamente opostos. Não ajuda na resolução do conflito travado entre os dois pretendentes à coroa o fato de serem primos; ainda que Ricardo II seja politicamente o herdeiro legal ao trono, Bolingbroke parece ter mais coisas em comum com seu admirado avô, Eduardo III, e muitas das qualidades que são necessárias para um bom líder. A peça nos incita a pensar sobre se os laços familiares seriam mais fortes ou mais importantes que as alianças políticas; as mulheres na peça escolhem a lealdade familiar todo o tempo, enquanto a maioria dos homens não. A família é obviamente uma categoria poderosa com consequências políticas maiores.
Um outro tema é o da linguagem e da comunicação. Quanto poder as palavras realmente têm? Nesta peça, o poeta opõe o poder da linguagem com o poder da ação; por um lado, Ricardo II de certa forma acredita que suas palavras são poderosas, e isto tem certo sentido (ora, ele pode acabar com a vida de alguém ao bani-lo ou ordenando que seja executado; então, linguagem tem poder no sentido político). Mais adiante na peça, uma vez que Ricardo II não mais é o rei e suas palavras não são revestidas de poder político algum, ele articula sua linguagem para se tornar poderosa de outra forma: suas palavras são frequentemente tocantes e poéticas. Henrique Bolingbroke, por outro lado, deixa claro que não se importa muito com a linguagem; ao contrário de Ricardo, que descreva sua queda de forma tão poética que nós quase esquecemos que ele era um mau rei. Henrique não é um bom ´contador de histórias´; este considera a ação muito mais importante do que a linguagem, e aquela ação é o que o faz criar oportunidades e situações que irão trazer-lhe poder.
Um grande tema é o da identidade. Muitos dos personagens da peça relacionam suas identidades com os seus títulos, o que justifica a grande obsessão deles por seus nomes. Isto é bem verdade, por exemplo, para Ricardo II, que herda seu título de rei da Inglaterra de seu antecessor; quando Ricardo perde seu título, ele vive uma grande crise de identidade, e é neste momento que brilha o poder da obra shakespeareana, e o rei deposto se torna um dos personagens mais interessantes (e talvez até um dos mais simpáticos) da peça. Outro grande tema é o da lealdade; um dos pontos básicos que a peça investiga é como se faz para determinar quem ou o que merece lealdade: deve-se ser leal ao rei? Ao país? Aos parentes? À lei? À justiça? A Deus? Quando diferentes sistemas (como o governo, a religião e a família) competem uns com os outros pela aliança de alguém, como este alguém faz para escolher lados? Quando Ricardo II começa a pensar em si mesmo como estando acima da lei, ele coloca todos aqueles sistemas em conflito uns com os outros. Diferentes personagens oferecem diferentes respostas e esta questão: Aumerle é leal a Ricardo II; York é leal ao ofício de rei, não importa quem ocupe o trono; Gaunt é leal ao reinado; a duquesa de York é leal ao filho dela; a rainha é leal ao seu marido. Então, quem está certo? Shakespeare deixa que nós decidamos...
Muito interessante ainda de se notar na peça é o tema acerca do gênero. Observa-se quão fracos são os personagens femininos, independente do status social ou idade, especialmente quando se trata de política (inclusive, é bastante interessante perceber que isto acaba sendo um tanto estranho, já que entre sua audiência à época em que foi escrita estava nada menos que a rainha Elizabeth I). Na peça, o gênero feminino tende a estar associado com a família, e as mulheres que são apresentadas sempre parecem colocar os laços de parentesco em primeiro lugar. Apresentando mulheres sempre alheias à política em A Tragédia do Rei Ricardo II, Shakespeare acaba levantando uma grande questão: será que a lealdade política é mais importante que a lealdade familiar? Percebamos também quão importante é o papel que as aparências acabam desenvolvendo na peça. Muitos dos fracassos de Ricardo II, por exemplo, podem ser atribuídos ao fato de ele ser muito facilmente enganado pelas aparências; observe-se que se alguém o elogia e diz que ele é magnífico, ele acredita facilmente, e não chega a questionar se tal elogio, por exemplo, tem algum motivo subjacente - ele acaba sofrendo bastante para aprender a olhar a superfície e perceber a verdade que está por baixo desta. Vários outros elementos também se mostram uma e outra vez como algo a ser interpretado: a natureza, por exemplo. Será que as árvores murchas significam que o rei está morto? Ou que um novo rei de repente está chegando? Ou que Deus apresenta sua ira? Ou não significa nada? Sem um rei forte, o reino se encontra em terreno movediço; portanto, todos estão tentando encontrar um sentido, um jeito de conciliar a forma como as coisas parecem ser com a forma como as coisas realmente são.
É válido também perceber como o sofrimento é apresentado por Shakespeare na peça. Uma vez que Ricardo II perde a coroa, ele se torna incrível ao interpretar um verdadeiro mártir que sofre; ele pode ter assassinado seu tio, quase ter levado o reino à falência, sofrer demais com relação à auto-estima, mas tudo isto não importa - ele representa tão bem a auto-piedade que é quase impossível não ter um pouco de pena dele. É muito envolvente o que se desenvolve com o rei ao longo da peça; veja, a viagem de todo rei poderoso a pobre prisioneiro é sempre longa. Desafiado pela primeira vez em sua vida, Ricardo II tem que pensar muito sobre o que tudo aquilo significa; seu sofrimento acaba permitindo-lhe ver as coisas mais claramente, algumas vezes até mais claramente que Henrique Bolingbroke. E, no fim de tudo, o seu sofrimento também acaba lhe dando a oportunidade de fazer o que ele faz melhor: tornar-se uma lenda e transformar sua vida em história.
Como já exposto anteriormente, há uma grande confrontação entre ação e passividade na peça; assim, um erro muito grave e dos piores que Ricardo II apresenta é ser passivo. A peça retrata basicamente a relutância do rei em tomar realmente alguma providência quando ele é diretamente desafiado: ora, em vez de sair e lutar contra a França, conquistar dinheiro, ele fica em seu reino a gastá-lo e aluga terras reais; em vez de reagir prontamente quando Henrique Bolingbroke volta à Inglaterra, o rei retorna calmamente da Irlanda; quando Ricardo II percebe como são ruins as notícias que recebe, ele passa rapidamente de um excesso de confiança ao desespero; em vez de lutar ou chegar com um plano, ser pragmático, o rei pede a Aumerle e outros aliados que contem tristes histórias. Por tudo isto, o rei não é o que se pode considerar um homem de ação; já Henrique Bolingbroke, por outro lado, é pura ação. Quando este percebe que tem chance de obter vantagem ou levar a melhor, ele faz por onde conseguir tal vantagem. Shakespeare parece estar nos pedindo para pensar se a vontade de agir é o que faz de alguém um bom rei.
É interessante observar também como o rei utiliza a palavra ´orgulho´ mais do que qualquer outro personagem da peça. Ele a utiliza para descrever Henrique Bolingbroke, o solo da Inglaterra e sua própria majestade. Pode-se argumentar, por exemplo, que a obsessão de Ricardo II pelo orgulho é o que finalmente lhe custa o reino. Mesmo que ele acabe humilhado, nunca lhe escapa a sensação de que ele merece mais, que como governante escolhido por Deus na Terra, ele realmente não precisa fazer nada para se sentir orgulhoso. Dito de outra forma, o rei acha que ele é um presente de Deus para o mundo. Infelizmente, isto o impede de ouvir conselhos que podem contradizê-lo ou criticá-lo e o leva a gerir mal o reino, tão mal que ele acaba perdendo o mesmo.
Um útlimo grande tema da peça é o do exílio. Este tema é mais universal na medida em que representa justamente o que a perda ou a ameaça de perda de algo é capaz de gerar em alguém, que passa a valorizar mais aquilo que não mais possuirá. O que é interessante é a forma como o tema do exílio está intimamente ligado ao patriotismo. Para Mowbray, e mais ainda para Bolingbroke, deixar a Inglaterra faz com que a aprecie mais. Mesmo Ricardo II começa a apreciar a Inglaterra quando está trancado na cadeia. Com a mudança de conceitos na Inglaterra da época de Elizabeth I, quando as pessoas estavam começando a pensar em si mais como leais ao seu país, a peça, que foi escrita na época desta rainha, parece antecipar o patriotismo inglês que marcaria toda aquela época.
Concluo esta discussão acerca da excepcional e sublime peça A Tragédia do Rei Ricardo II com um dos mais belos trechos já escritos pelo bardo. Trata-se de um discurso de João de Gaunt no seu leito de morte no Ato II - Cena I. Se não acredita no poder do trecho, leia, recite e viva estas grandes palavras do maior de todos os poetas. Até a próxima!
This royal throne of kings, this sceptred isle,
This earth of majesty, this seat of Mars,
This other Eden, demi-paradise,
This fortress built by Nature for herself
Against infection and the hand of war,
This happy breed of men, this little world,
This precious stone set in the silver sea,
Which serves it in the office of a wall
Or as a moat defensive to a house,
Against the envy of less happier lands,
This blessed plot, this earth, this realm, this England...
Este real trono, esta ilha coroada,
Este solo de altiva majestade, esta sede de Marte,
Este novo Éden, este meio paraíso,
Fortaleza que a Natureza para si construiu
Contra as doenças e os braços invasores;
Esta raça feliz, mundo pequeno,
Esta pedra preciosa, colocada num mar de prata,
Que lhe faz as vezes de muro intransponível
Ou de fosso que lhe defende a casa
Contra a inveja das terras menos fartas,
Este solo bendito, este torrão, esta Inglaterra...
Um outro tema é o da linguagem e da comunicação. Quanto poder as palavras realmente têm? Nesta peça, o poeta opõe o poder da linguagem com o poder da ação; por um lado, Ricardo II de certa forma acredita que suas palavras são poderosas, e isto tem certo sentido (ora, ele pode acabar com a vida de alguém ao bani-lo ou ordenando que seja executado; então, linguagem tem poder no sentido político). Mais adiante na peça, uma vez que Ricardo II não mais é o rei e suas palavras não são revestidas de poder político algum, ele articula sua linguagem para se tornar poderosa de outra forma: suas palavras são frequentemente tocantes e poéticas. Henrique Bolingbroke, por outro lado, deixa claro que não se importa muito com a linguagem; ao contrário de Ricardo, que descreva sua queda de forma tão poética que nós quase esquecemos que ele era um mau rei. Henrique não é um bom ´contador de histórias´; este considera a ação muito mais importante do que a linguagem, e aquela ação é o que o faz criar oportunidades e situações que irão trazer-lhe poder.
Um grande tema é o da identidade. Muitos dos personagens da peça relacionam suas identidades com os seus títulos, o que justifica a grande obsessão deles por seus nomes. Isto é bem verdade, por exemplo, para Ricardo II, que herda seu título de rei da Inglaterra de seu antecessor; quando Ricardo perde seu título, ele vive uma grande crise de identidade, e é neste momento que brilha o poder da obra shakespeareana, e o rei deposto se torna um dos personagens mais interessantes (e talvez até um dos mais simpáticos) da peça. Outro grande tema é o da lealdade; um dos pontos básicos que a peça investiga é como se faz para determinar quem ou o que merece lealdade: deve-se ser leal ao rei? Ao país? Aos parentes? À lei? À justiça? A Deus? Quando diferentes sistemas (como o governo, a religião e a família) competem uns com os outros pela aliança de alguém, como este alguém faz para escolher lados? Quando Ricardo II começa a pensar em si mesmo como estando acima da lei, ele coloca todos aqueles sistemas em conflito uns com os outros. Diferentes personagens oferecem diferentes respostas e esta questão: Aumerle é leal a Ricardo II; York é leal ao ofício de rei, não importa quem ocupe o trono; Gaunt é leal ao reinado; a duquesa de York é leal ao filho dela; a rainha é leal ao seu marido. Então, quem está certo? Shakespeare deixa que nós decidamos...
Muito interessante ainda de se notar na peça é o tema acerca do gênero. Observa-se quão fracos são os personagens femininos, independente do status social ou idade, especialmente quando se trata de política (inclusive, é bastante interessante perceber que isto acaba sendo um tanto estranho, já que entre sua audiência à época em que foi escrita estava nada menos que a rainha Elizabeth I). Na peça, o gênero feminino tende a estar associado com a família, e as mulheres que são apresentadas sempre parecem colocar os laços de parentesco em primeiro lugar. Apresentando mulheres sempre alheias à política em A Tragédia do Rei Ricardo II, Shakespeare acaba levantando uma grande questão: será que a lealdade política é mais importante que a lealdade familiar? Percebamos também quão importante é o papel que as aparências acabam desenvolvendo na peça. Muitos dos fracassos de Ricardo II, por exemplo, podem ser atribuídos ao fato de ele ser muito facilmente enganado pelas aparências; observe-se que se alguém o elogia e diz que ele é magnífico, ele acredita facilmente, e não chega a questionar se tal elogio, por exemplo, tem algum motivo subjacente - ele acaba sofrendo bastante para aprender a olhar a superfície e perceber a verdade que está por baixo desta. Vários outros elementos também se mostram uma e outra vez como algo a ser interpretado: a natureza, por exemplo. Será que as árvores murchas significam que o rei está morto? Ou que um novo rei de repente está chegando? Ou que Deus apresenta sua ira? Ou não significa nada? Sem um rei forte, o reino se encontra em terreno movediço; portanto, todos estão tentando encontrar um sentido, um jeito de conciliar a forma como as coisas parecem ser com a forma como as coisas realmente são.
É válido também perceber como o sofrimento é apresentado por Shakespeare na peça. Uma vez que Ricardo II perde a coroa, ele se torna incrível ao interpretar um verdadeiro mártir que sofre; ele pode ter assassinado seu tio, quase ter levado o reino à falência, sofrer demais com relação à auto-estima, mas tudo isto não importa - ele representa tão bem a auto-piedade que é quase impossível não ter um pouco de pena dele. É muito envolvente o que se desenvolve com o rei ao longo da peça; veja, a viagem de todo rei poderoso a pobre prisioneiro é sempre longa. Desafiado pela primeira vez em sua vida, Ricardo II tem que pensar muito sobre o que tudo aquilo significa; seu sofrimento acaba permitindo-lhe ver as coisas mais claramente, algumas vezes até mais claramente que Henrique Bolingbroke. E, no fim de tudo, o seu sofrimento também acaba lhe dando a oportunidade de fazer o que ele faz melhor: tornar-se uma lenda e transformar sua vida em história.
Como já exposto anteriormente, há uma grande confrontação entre ação e passividade na peça; assim, um erro muito grave e dos piores que Ricardo II apresenta é ser passivo. A peça retrata basicamente a relutância do rei em tomar realmente alguma providência quando ele é diretamente desafiado: ora, em vez de sair e lutar contra a França, conquistar dinheiro, ele fica em seu reino a gastá-lo e aluga terras reais; em vez de reagir prontamente quando Henrique Bolingbroke volta à Inglaterra, o rei retorna calmamente da Irlanda; quando Ricardo II percebe como são ruins as notícias que recebe, ele passa rapidamente de um excesso de confiança ao desespero; em vez de lutar ou chegar com um plano, ser pragmático, o rei pede a Aumerle e outros aliados que contem tristes histórias. Por tudo isto, o rei não é o que se pode considerar um homem de ação; já Henrique Bolingbroke, por outro lado, é pura ação. Quando este percebe que tem chance de obter vantagem ou levar a melhor, ele faz por onde conseguir tal vantagem. Shakespeare parece estar nos pedindo para pensar se a vontade de agir é o que faz de alguém um bom rei.
É interessante observar também como o rei utiliza a palavra ´orgulho´ mais do que qualquer outro personagem da peça. Ele a utiliza para descrever Henrique Bolingbroke, o solo da Inglaterra e sua própria majestade. Pode-se argumentar, por exemplo, que a obsessão de Ricardo II pelo orgulho é o que finalmente lhe custa o reino. Mesmo que ele acabe humilhado, nunca lhe escapa a sensação de que ele merece mais, que como governante escolhido por Deus na Terra, ele realmente não precisa fazer nada para se sentir orgulhoso. Dito de outra forma, o rei acha que ele é um presente de Deus para o mundo. Infelizmente, isto o impede de ouvir conselhos que podem contradizê-lo ou criticá-lo e o leva a gerir mal o reino, tão mal que ele acaba perdendo o mesmo.
Um útlimo grande tema da peça é o do exílio. Este tema é mais universal na medida em que representa justamente o que a perda ou a ameaça de perda de algo é capaz de gerar em alguém, que passa a valorizar mais aquilo que não mais possuirá. O que é interessante é a forma como o tema do exílio está intimamente ligado ao patriotismo. Para Mowbray, e mais ainda para Bolingbroke, deixar a Inglaterra faz com que a aprecie mais. Mesmo Ricardo II começa a apreciar a Inglaterra quando está trancado na cadeia. Com a mudança de conceitos na Inglaterra da época de Elizabeth I, quando as pessoas estavam começando a pensar em si mais como leais ao seu país, a peça, que foi escrita na época desta rainha, parece antecipar o patriotismo inglês que marcaria toda aquela época.
Concluo esta discussão acerca da excepcional e sublime peça A Tragédia do Rei Ricardo II com um dos mais belos trechos já escritos pelo bardo. Trata-se de um discurso de João de Gaunt no seu leito de morte no Ato II - Cena I. Se não acredita no poder do trecho, leia, recite e viva estas grandes palavras do maior de todos os poetas. Até a próxima!
This royal throne of kings, this sceptred isle,
This earth of majesty, this seat of Mars,
This other Eden, demi-paradise,
This fortress built by Nature for herself
Against infection and the hand of war,
This happy breed of men, this little world,
This precious stone set in the silver sea,
Which serves it in the office of a wall
Or as a moat defensive to a house,
Against the envy of less happier lands,
This blessed plot, this earth, this realm, this England...
Este real trono, esta ilha coroada,
Este solo de altiva majestade, esta sede de Marte,
Este novo Éden, este meio paraíso,
Fortaleza que a Natureza para si construiu
Contra as doenças e os braços invasores;
Esta raça feliz, mundo pequeno,
Esta pedra preciosa, colocada num mar de prata,
Que lhe faz as vezes de muro intransponível
Ou de fosso que lhe defende a casa
Contra a inveja das terras menos fartas,
Este solo bendito, este torrão, esta Inglaterra...
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