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domingo, 19 de janeiro de 2014
Estudos em Ingmar Bergman - Monika e o Desejo
Cada vez mais somos expostos a influências e inspirações que nos absorvem por todos os lados. Ora se pretende seguir o desejo e a emoção com a maior intensidade possível, ora pesa a razão e as convicções sociais como freio para a alma humana. A vida toda de cada um de nós parece ser guiada por tensões entre as várias influências e inspirações que se colocam diante de nossa vista ou do nosso conhecimento; parece que a existência do homem é definida, na verdade, pela tensão e o equilíbrio entre as emoções e a razão. O desejo supremo é inconsequente, alçando a alma humana para o desconhecido, mas também para o infinito; a razão completa parece trazer o espírito para um ponto de calmaria, de segurança, como uma espécie de conformismo. O interessante, entretanto, é que a essência de toda a existência humana é o eterno conflito entre estes dois polos - a maior dificuldade da vida é encontrar o equilíbrio entre ambos.
Uma das figuras de maior destaque no mundo da Literatura do século XX foi Thomas Mann (1875-1955). Ele é famoso tanto por suas obras de ficção como por seu ensaios críticos. Nasceu em Lubeck, na Alemanha, no meio de uma família mercante distinta, mas com uma 'veia' literária; o seu irmão mais velho, Heinrich, também acabou se tornando um romancista e dramaturgo famoso. Mann desenvolveu um forte interesse pelos filósofos alemães, especialmente Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, e as teorias destes influenciaram profundamente seus trabalhos literários. A ficção de Mann é caracterizada pelo exame filosófico sutil das ideias e dos personagens apresentados, resultando em uma voz narrativa individual e frequentemente irônica; suas estórias frequentemente terminam de forma trágica. O tema do conflito entre a arte e a vida aparece ao longo de todo o trabalho do autor; Morte em Veneza (1912) é o ápice deste tema.
Thomas Mann (1875-1955)
Morte em Veneza não é representativo somente das questões de interesse do corpo de trabalho do autor, mas também reflete as ideias vitais mais importantes em discussão no mundo da literatura da época em que foi escrito. Na virada do século XIX para o século XX, muitos escritores europeus expressaram uma consciência gritante da decadência cultural e pessoal, e o declínio moral e social foi tema central de alguns romances importantes, como por exemplo O Retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde. Além disto, estes trabalhos também expressavam como pontos de discussão questões acerca do homoerotismo; como Morte em Veneza, O Retrato de Dorian Gray usa um personagem fictício para servir de máscara para a homossexualidade do autor. Independente dos grandes temas tratados no livro Morte em Veneza, este é amplamente inspirado em eventos reais na vida do autor. Mann esteve numa ilha próxima a Veneza em 1905 durante um surto de cólera, e ele mais tarde viajou para a cidade, em maio de 1911, devido a uma exaustão que resultou numa dificuldade criativa literária, e ele sentiu que era necessário escapar, fugir de seu ambiente de morada; esta premissa é a mesma que ocorre com o personagem principal do livro, Gustav von Aschenbach. Mann leu em maio de 1911 o obituário do compositor alemão Gustav Mahler, que havia falecido aos 50 anos; as feições do personagem principal do livro foram inspiradas nas deste compositor. Como o personagem, Mann também era homossexual; embora ele fosse casado e tivesse seis filhos, sua esposa relatou que ela casou com ele somente para constituir uma família, mas a publicação de diários do autor em anos mais recentes tem trazido à tona suas várias relações homossexuais. Mais ainda, em 1965, veio ao conhecimento do mundo que a estória era muito mais baseada em fatos do que o previamente suspeitado: um barão polonês de nome Wladyslaw Moes identificou-se a si mesmo como o garoto que Mann apresenta no livro como Tadzio. A descrição das vestes deste personagem, das feições, do amigo turbulento de nome Jasio (no livro ecoado como Jashu), todas são inspiradas neste barão polonês, que esteve realmente em Veneza com a família. Moes até mesmo se lembra de ter visto um homem mais velho o observando extasiadamente no elevador do hotel; obviamente, Moes esperou a morte do autor para poder publicar a sua história.
Capa do livro 'Morte em Veneza'
Wladyslaw Moes, à esquerda, o barão polonês que inspirou Tadzio, vivido pelo ator sueco Björn Andrésen, neste mesmo papel no filme homônimo de 1971, à direita.
Em 1929, Mann ganhou o Nobel de Literatura. Pouco depois, em 1933, fugiu da nova Alemanha Nazista para a Suíça. Em 1938, mudou-se para os Estados Unidos, tendo adquirido cidadania americana em 1944; entretanto, confuso com o McCartismo e com saudade da cultura europeia, mudou-se de volta para a Suíça no mesmo ano. Morreu onze anos depois.
No livro, resumidamente temos o seguinte: Gustav von Aschenbach é um escritor alemão mais velho que é o modelo de dignidade solene e de auto-disciplina exigente. Determinadamente 'cerebral' e compelido ao dever, ele acredita que a verdadeira arte é produzida somente como 'ultraje desafiador' às paixões corruptoras e à fraqueza física. Quando Aschenbach sente a necessidade de viajar, ele diz para si mesmo que poderá encontrar uma inspiração artística através da mudança de cena. Ele viaja para Veneza como primeira indulgência que se permitiu em anos; isto assinala o início de seu declínio. Ele permite que a atmosfera lânguida e as gôndolas que balançam suavemente no lugar o acalmem em um estado sem defesa. Em seu hotel, ele nota um garoto polonês de 14 anos extremamente bonito de nome Tadzio, que está viajando pela cidade com sua mãe, irmãs e uma governanta. No princípio, o interesse de Aschenbach no garoto é puramente estético, ou pelo menos é isto que ele diz para si mesmo. Entretanto, ele logo se apaixona profunda e obsessivamente pelo garoto, embora os dois nunca tenham tido contato direto. Aschenbach passa os dias observando Tadzio brincar na praia, até mesmo seguindo sua família pelas ruas de Veneza. A cólera ataca a cidade, e embora as autoridades tentem esconder isto dos turistas, Aschenbach logo descobre a verdade sobre a epidemia letal. Apesar disto, ele não suporta deixar a cidade e Tadzio, e permanece em Veneza. Ele se torna cada vez mais ousado em sua perseguição ao garoto, gradualmente se tornando mais e mais depreciado, até que finalmente morre de cólera, degradado, um escravo de suas paixões, despido de sua dignidade.
Cartaz do filme 'Morte em Veneza', baseado no livro, de 1971
O que é mais interessante em todo o livro é, obviamente, o objeto de que trata. Morte em Veneza é uma estória sobre o artista e a natureza da arte. No começo do romance, Gustav von Aschenbach, enquanto possuindo uma sensualidade latente, existe como um homem que sempre teve suas paixões em xeque, nunca permitindo que elas se expressassem em sua vida e nem em sua arte. Como a cultura burguesa europeia da virada do século que ele representa, Aschenbach é, em termos Freudianos, 'reprimido'; vivia, assim, um estado de desequilíbrio tal que, acreditava-se, não poderia permanecer estável e nem poderia produzir a verdadeira e inspirada arte. Entretanto, tendo mantido suas paixões sob grande controle por tanto tempo, uma vez que ele começa a baixar sua guarda contra elas, as paixões ressurgem com poder redobrado e toma conta de sua vida. Uma vez que Aschenbach admite beleza sensual em sua vida, representada pelo garoto Tadzio, todos os seus padrões morais se quebram, e ele se torna um escravo da beleza, um escravo do desejo; ele se torna depreciado. Assim, Aschenbach se desloca totalmente de um extremo da arte para o outro, da 'cerebral' para a 'física', da forma pura para a pura emoção. O romance de Mann alerta para os perigos - na verdade, os perigos mortais - existentes em cada um dos extremos.
Morte em Veneza é escrito de acordo com um método que Mann chamou de 'mitológico mais psicológico'. Ambos os elementos desempenham papeis importantes no declínio de Aschenbach. Tadzio é descrito em termos míticos e comparado a uma escultura grega, ao deus do amor, a Jacinto e Narciso, ao personagem Fedro, de Platão. O passeio de Aschenbach pela lagoa em Veneza é apresentada em termos que sugerem uma jornada lendária pelo rio Estige dentro do submundo. Figuras de cabelo vermelho consistentemente reaparecem para Aschenbach, sugerindo demônios. Todas essas referências mitológicas servem para universalizar os personagens e suas experiências na estória. Elementos psicológicos também figuram de forma proeminente no romance: no início da trama, Aschenbach firmemente reprime seus impulsos libidinosos. Contudo, como Freud teria previsto, a repressão apenas força os impulsos a emergirem de alguma outra forma, como através dos sonhos - Aschenbach tem devaneios com a mesma intensidade de visões. Seu devaneio de um pântano tropical e seu sonho do culto orgiástico do 'estranho deus' resumem a ânsia freudiana para o abandono erótico final na morte. Thomas Mann era um escritor econômico e oblíquo, do tipo que não desperdiçava uma palavra - cada detalhe que ele inclui é significativo, e cada detalhe atende à sua estratégia de sugerir, de dar dicas, mais do que dizer diretamente. Elementos aparentemente marginais, como um céu tempestuoso, vendedores de lápides em branco, a cor preta das gôndolas, os dentes de uma figura com trejeitos expostos por muito tempo, lembrando um crânio, são todos instrumentos que estabelecem uma atmosfera de mau presságio e prenunciam a morte. O leitor não precisa esperar o final da estória para fazer a conexão entre a arte sensual e a morte; Mann forja a conexão gradualmente através de uma variedade de motivos trabalhando como em um concerto. Espetacular!!!
E cabe uma conexão entre este livro impressionante e um filme de um dos maiores cineastas de todos os tempos, Ernst Ingmar Bergman (1918-2007). Ele foi um diretor, escritor e produtor de filmes, peças de teatro e televisão nascido na Suécia. Dirigiu em torno de 60 filmes e documentários para cinema e televisão, a maioria dos quais também escreveu. Ainda escreveu e dirigiu mais de uma centena de peças de teatro. A maioria de seus filmes era ambientado nas paisagens suecas. Suas obras frequentemente lidam com temas como a morte, doença, fé, traição, tristeza, solidão e insanidade.
No filme de 1953, Monika e o Desejo (Summer with Monika), a inspiração veio de uma pequena estória que mais tarde se transformou num romance do escritor sueco Per Anders Fogelström (1917-1988). A ideia original, nas palavras do próprio Fogelström, era: '... é sobre uma garota e um rapaz, apenas crianças, que deixam seus trabalhos e suas famílias e se mandam para o arquipélago. E depois retornam para a cidade e tentam sobreviver em um tipo de existência burguesa. Mas tudo vira um inferno para eles.' Ao longo do desenvolvimento do filme, entretanto, muitas coisas foram mudando, e o foco da narrativa mudou de Harry para Monika, embora o filme tenha mantido o mesmo título sugerido pelo texto do escritor Fogelström (o título sugere um filme contado sob a perspectiva de um homem). O pequeno elenco era composto de atores relativamente pouco conhecidos dentro da comunidade sueca de cinema à época. Lars Ekborg, que faz o papel de Harry, era mais conhecido como ator de teatro; Harriet Andersson, que faz o papel de Monika, acabou trabalhando também com Bergman em outros filmes: Através de um Espelho (Through a Glass Darkly) e Persona. Segundo o diretor, o papel de Monika foi desenvolvido especificamente com aquela atriz em mente. Houve um breve romance entre o diretor e a atriz, e esta teve a carreira propulsada por ele.
Ingmar Bergman (1918-2007)
Harriet Andersson (1932- )
Lars Ekborg (1926-1969)
Per Anders Fogelström (1917-1988)
Vários críticos comentam que Monika e o Desejo é um filme que, esteticamente, é amplamente inspirado pelo movimento neorealista italiano, mais especificamente pelo diretor e ator Vittorio de Sica (1901-1974), muito conhecido por Ladrões de Bicicleta (de 1948). O neorealismo italiano é um estilo de filme em que as narrativas focam em personagens de classes mais baixa, tendo como pano de fundo os ambientes de trabalho destes personagens e utilizando atores não profissionais. A trama envolve Monika, uma sensual e autoritária jovem vendedora de legumes que é constantemente perseguida sexualmente pelos homens; ela encontra o jovem Harry, que é de uma classe social um pouco mais elevada, talvez até mais burguês do que ela. Independente disto, ambos se apaixonam e fogem da cidade e de todas as suas pressões sociais para perseguirem sua relação romântica. Eles roubam um barco do pai de Harry e navegam para uma ilha sueca planejando passar o verão lá. Ao longo de sua viagem, que em princípio parece idílica, as realidades da cidade voltam a assombrar o casal; Monika engravida e eles ficam sem comida e chegam a roubar de uma casa de família alimentos para subsistência. No entanto, no tempo em que ficaram juntos, Monika acaba trazendo Harry para a fase adulta. Ela o ensina a dançar, a fazer amor e mesmo a roubar legumes. Mas, quando é chegada a hora de voltar para a cidade, percebe-se que Monika é mais uma das personagens muito retratadas em várias grandes obras literárias, como em Madame Bovary, de Flaubert; uma mulher que sofre de profundo tédio, de desilusão romântica perpétua, inquietação. Não importa o que ela tem, onde ela está, ela parece nunca chegar a se sentir feliz; ela sempre irá desejar o que não tem. Ela tem uma espécie de doença de escapismo; nunca fica feliz em sua condição corrente. Harry chega à cidade e tenta integrar Monika dentro do estilo de vida burguês, mas ela rapidamente fica insatisfeita com a vida doméstica e detesta passar o tempo com seu filho. O filme termina com Monika abandonando Harry à própria sorte e também a criança, com os móveis do casal sendo vendidos e Harry se olhando no espelho enquanto se recorda do tempo em que esteve na ilha com Monika, e de como isto mudou, para melhor ou pior, a sua vida para sempre.
Vittorio de Sica (1901-1974)
Apesar das cenas idílicas na ilha, com belíssima fotografia, uma das cenas mais marcantes do cinema tem lugar no bar de jazz próximo ao final do filme, em que Monika está passeando e curtindo, enquanto Harry ainda está no trabalho. Na cena, ela olha diretamente para a câmera e o espectador tem uma forte impressão de sua emoção no momento; este efeito é reforçado pelo fato de que Bergman permite a subjetividade da interpretação da audiência ao não apresentar falas de Monika para explicar seu próprio olhar - em vez disto, apenas a apresenta silenciosa, olhando diretamente para a câmera por dez longos e arrastados segundos... O fascinante, entretanto, é que aqueles dez segundos são feitos para serem sentidos quase que como uma hora, enquanto nós, como espectadores, perdemos-nos na paixão e no mistério que permanecem dormentes nos olhos de Monika. É quase como se estivéssemos assistindo a uma peça de teatro (aliás, esta é uma característica bem marcante do estilo de Bergman - os personagens são enquadrados como se estivéssemos assistindo a uma peça de teatro em seus filmes), e a atriz principal estivesse olhando para a audiência, quebrando a 'quarta' parede, implicitamente clamando por nosso julgamento. Se é ou não este o caso, a técnica de Bergman (em colaboração com o seu cinematografista Gunnar Fischer, 1910-2011), neste filme mais do início de sua carreira, é maravilhosamente impressionante. Há muitos que consideram esta produção profunda em sua cinematografia e inovadora na construção do tema e da narrativa. Obviamente, muitos dos trabalhos de Bergman posteriores são muitos mais impressionantes, mas é sempre gratificante rastrear o crescimento e progressão do artista como uma carreira se desenrolando ao longo dos anos.
Gunnar Fischer (1910-2011)
Capa do filme 'Monika e o Desejo', de 1953
Enfim, no filme há também a temática de que a entrega total ao desejo, à emoção, acaba não gerando o fruto da felicidade tão almejada pelo ser humano, e o fim da entrega a este extremo em um dos polos humanos como anteriormente descrito, e mesmo apresentado no livro de Thomas Mann, não se traduz num final completo em si. A alma humana parece se encontrar eternamente insatisfeita, e esta entrega a Jacinto (estando no outro extremo Apolo), é uma espécie de escapismo imaturo de que toda alma necessita, como que a lembrar que somos também instinto, antes de completamente racionais. Mas, embora o ato de estar naquele extremo do desejo em si seja extremamente prazeroso, no final de tudo, o resultado é, na grande maioria das vezes, realista e incompleto, e saímos por aí, vagando em busca de um sentido... Ingmar Bergman tentou achar este sentido, e não precisa ser nenhum grande entendedor de cinema para perceber que sua redenção era a ARTE. Veremos em novas análises de seus filmes a recorrência desta redenção! Boa semana a todos!
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