domingo, 26 de janeiro de 2014

Estudos em Ingmar Bergman - O Sétimo Selo

   O oitavo capítulo do livro do Apocalipse, na Bíblia, se inicia da seguinte forma:
   'O sétimo selo - Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve no céu um silêncio durante cerca de meia hora... Vi então os sete Anjos que estão diante de Deus: deram-lhe sete trombetas.'
   Segundo esta escritura, Deus possui em sua mão um livro selado com sete selos, e a abertura de cada um destes selos implica em um malefício sobre a humanidade, mas é a abertura do sétimo selo que leva efetivamente ao fim dos tempos. O filme de que tratarei nesta postagem, O Sétimo Selo, foi lançado em 1957, período em que ainda marcavam a vida dos habitantes europeus os traumas da Segunda Grande Guerra e da bomba atômica. As décadas de 50 e 60 encerram o período de maior temor pela derrocada de uma guerra nuclear que destruísse o mundo instantaneamente. Além disto, os traumas relacionados à grande mortandade e ao holocausto desencadeados na guerra não haviam sido esquecidos; muito pelo contrário, as pessoas pressentiam que tudo fora um presságio de que o homem seria o grande responsável pelo apocalipse último. É nesta atmosfera altamente pessimista que muito se desenvolveram as teorias e os grandes filósofos e escritores do existencialismo; lembremo-nos, por exemplo, do grande livro A Peste, do vencedor do Nobel de Literatura Albert Camus (1913-1960) - neste livro, uma cidade argelina é assolada pela peste bubônica, e isto serve como metáfora para os horrores relacionados à Segunda Guerra Mundial.

Apocalipse e Solidão
Albert Camus (1913-1960)
   O Sétimo Selo é um filme que, na carreira de Ingmar Bergman, ocupa um período intermediário. Em várias entrevistas relacionadas a esta época, o diretor descreve ter sido doutrinado rigidamente como uma criança na religião e moralidade repressiva da fé luterana de seu país, a Suécia; descreve o seu desejo de comunicação com Deus, mas não com Jesus; sua sensação de que 'o olho de Deus' o estava sempre observando de longe em congruência com o afastamento de seu pai eclesiástico; sua consciência do amor de sua mãe, mas que não era representado por muito contato com ela, e o pouco de emoção que ela expressava era para sustentar a fraqueza neurótica de seu pai; o sentido debilitante de inutilidade que se manteve ao longo de sua juventude e do início de sua maturidade; e sua experiência com o medo resultante do apego humano e os impulsos naturais relacionados a este, assim como um profundo medo da morte, que (segundo sua crença à época) somente poderia levar à punição eterna se houvesse má conduta como criatura carnal. Com este panorama de sua sensibilidade, Bergman afirma que usou o seu trabalho cinematográfico como um meio de buscar respostas tanto afetivas quanto intelectuais para todos estes problemas sérios em sua vida. Sua preocupação com questões religiosas com este filme data de um tempo em que ele estava amedrontado com relação à morte, com sua própria morte representando uma culminação irreversível de sua vida. Assim, ao completar a organização de O Sétimo Selo, Bergman deu um grande passo na sua busca pela emancipação dos horrores que sentia com relação à mortalidade.

Capa do filme
Ingmar Bergman (1918-2007)
   O Sétimo Selo foi filmado logo após o sucesso financeiro e de crítica do seu filme anterior, Sorrisos de Uma Noite de Amor (Smiles of a Summer Night, de 1955); este sucesso permitiu a Bergman produzir trabalhos de sua própria escolha com muito mais liberdade do que anteriormente. Esta liberdade fez com que ele desenvolvesse um filme com uma estrutura ambígua, que tem sido vista por muitos críticos como uma forma de amenizar adeptos às visões radicalmente opostas com relação à religiosidade que são confrontadas na narrativa. É digno de nota que a grandeza do filme aparece na autenticidade e na clareza das atitudes conflituosas que são representadas, além da grande beleza visual com que estas atitudes vão se articulando cena após cena.
   Resumidamente, o filme apresenta a seguinte narrativa: um cavaleiro desiludido, Antonius Block (Max von Sydow) e seu escudeiro niilista Jöns (Gunnar Björnstrand) retornam de uma das Cruzadas na época medieval e encontram a Suécia assolada pela peste. Na praia, logo após a chegada deles, Block encontra a morte (Bengt Ekerot), personificado como uma figura pálida, com uma manta preta assemelhando-se a um monge. Block, no meio de um jogo de xadrez que ele jogava sozinho, desafia a morte para uma partida, acreditando poder evitar sua morte enquanto o jogo continua. A morte aceita e eles iniciam uma nova partida. Block e Jöns se dirigem ao castelo do cavaleiro. Ao longo do caminho, eles passam por alguns artistas (atores itinerantes), quais sejam Jof (Nils Poppe), sua esposa Mia (Bibi Andersson), o filho deles Mikael e outro ator, Skat. Jof tem visões, mas Mia é cética. O cavaleiro e o escudeiro entram numa igreja onde um afresco da Dança da Morte (uma alegoria medieval que reúne imagens que personificam o conceito da universalidade da morte, ou seja, não importa quem você é em vida, sua posição social, seu poder econômico, a dança da morte reúne todos) está sendo pintado. Jöns desenha uma pequena figura representando ele mesmo. Block vai ao confessionário, onde se encontra com a morte disfarçada de padre, para quem ele admite que sua vida foi fútil e sem sentido, mas que deseja realizar um ato significativo. Ao revelar, para o padre, a estratégia no jogo de xadrez que iria salvar sua vida, Block descobre que o sacerdote, na verdade, é a morte, que promete se lembrar das táticas. Ao deixar a igreja, Block fala com uma jovem que foi condenada à fogueira por suposta congregação com o diabo. Pouco depois, Jöns procura por água numa vila abandonada e salva uma garota (Gunnel Lindblom) de ser violada por um homem que rouba de um cadáver. Ele reconhece este homem como sendo Raval (Bertil Anderberg), um teólogo que, dez anos atrás, convenceu Block a deixar sua esposa e se juntar à Cruzada em direção à Terra Santa. Jöns promete marcar Raval na face se ambos se encontrarem de novo, e a garota se une a Jöns. O trio caminha pela cidade, onde está havendo uma pequena performance da trupe de atores. Skat apresenta Jof e Mia ao público e, logo a seguir, é atraído por Lisa (Inga Gill), a esposa do ferreiro, para um lugar em que irão se encontrar. Eles fogem juntos. A performance de Jof e Mia é interrompida pela chegada de uma procissão de flagelantes.

Max von Sydow (1929-      )
Gunnar Björnstrad (1909-1986)
Bengt Ekerot (1920-1971)
Bibi Andersson (1935-     )
Gunnel Lindblom (1931-     )
Nils Poppe (1908-2000)
   Num bar, Jof cruza com Raval. Este força aquele a dançar sobre as mesas como um urso. Jöns aparece e, conforme havia prometido, corta a face de Raval. Block desfruta um piquenique com leite e morangos silvestres proporcionado por Mia. Block diz: 'Eu carregarei esta lembrança entre minhas mãos como se ela fosse uma tigela preenchida até a borda com leite fresco... E será um sinal adequado; será suficiente para mim.' Ele convida os atores para o seu castelo, onde eles estarão mais seguros da peste. Ao longo do caminho, eles cruzam com Skat e Lisa na floresta. Esta, insatisfeita com Skat, retorna para o seu marido. Após todos partirem, Skat sobe numa árvore pensando em passar a noite. A morte aparece e derruba a árvore, informando ao ator que sua hora chegara. Eles cruzam com a jovem condenada novamente pelo caminho. Block pede à jovem novamente para invocar o satanás para que ele possa questioná-lo sobre Deus. A jovem alega já o ter feito, mas Block não consegue vê-lo; somente enxerga o terror da jovem. Ele dá a ela ervas para lhe tirar a dor. Raval reaparece. Morrendo em decorrência da peste, ele suplica por água. A garota tenta dar-lhe um pouco, mas é interrompida por Jöns. Jof diz a Mia que ele pode enxergar o cavaleiro jogando xadrez com a morte, e decide fugir com sua família enquanto a morte está distraída. Após ouvir a declaração da morte ('Ninguém escapa de mim'), Block derruba as peças do jogo, distraindo a morte enquanto a família foge. A morte reposiciona as peças no tabuleiro e então vence a partida na próxima jogada. Ela avisa que, quando se encontrarem de novo, o tempo de Block estará terminado. Antes de partir, a morte pergunta se Block atingiu seu objetivo de realizar algo significativo - o cavaleiro responde que sim. O cavaleiro reencontra sua mulher solitária no castelo (todos os serventes fugiram). O grupo compartilha uma 'última ceia' antes de a morte vir até eles. Block reza a Deus: 'tenha piedade de nós, pois somos pequenos, amedrontados e ignorantes'. Enquanto isto, a família de atores está fora do castelo e surge uma tempestade, que Jof  interpreta como sendo 'o anjo da morte e ele é bem grande'. Na manhã seguinte, Jof, tendo outra visão, vê o cavaleiro e seus seguidores sendo levados embora sobre as montanhas em uma dança da morte solene.
   Este filme de Ingmar Bergman tem paralelo em um outro grande filme seu: Morangos Silvestres (Wild Strawberries, também de 1957), filme este de que tratarei em outra postagem. Ambos contam uma jornada final de seu personagem central; é uma viagem de um lugar para outro durante um longo dia. De fato, o que parece ser linear, na realidade, é parte de uma jornada mais complicada que, em essência, começa em casa, vai até muito longe, e finalmente retorna para onde tudo começou - é este último estágio que visualizamos. Para Bergman, isto representa uma incumbência central da vida adulta: retornar ao passado e, de alguma forma, recuperar algo essencial para a vida que foi perdido - é neste retorno ao começo que encontramos nossa segunda chance. Para o cavaleiro Block esta segunda chance seria restaurar seu casamento, mas seu tempo chegou ao fim, e ele pode apenas se reunir à sua esposa para esperar o final juntos. Mas, ele pode salvar outra pessoa (o artista Jof, além de sua esposa, Mia) e, assim, substituir sua própria salvação pela de outro, um cumprimento parcial do seu projeto essencial de retorno e reapropriação. Entrelaçada nestas estórias de partida e retorno está o tema de duas mortes - a primeira é a do espírito, ocorrendo após o abandono e a destruição do que é transcendental, e é a mais terrível; a segunda, obviamente, é a do corpo. Block procura em Deus o tipo de relação que ele poderia ter tido com Karin, sua esposa, e é o silêncio de Deus que ele toma como abandono e traição. O próprio nome do cavaleiro, Block, remete a uma espécie de fortaleza, de alguém impenetrável, uma barreira a invasores. É apropriado, por exemplo, que o xadrez apareça no filme, pois é um jogo sobre a tentativa de assegurar que as barreiras de um dos jogadores não sejam destruídas pelo outro jogador, o invasor. Mas, dentro deste reduto que impede a entrada de outros, algo de vida sobrevive; é esta profunda consciência de que algo está faltando que impele Block a atrasar o papel da morte até que ele tenha alcançado Deus e ouvido a sua voz.




   O Sétimo Selo é extremamente rico em imagens memoráveis e excepcionais: a morte em si mesma, o jogo de xadrez, Mia e Mikael, a visão da Virgem, peregrinos flagelantes, a ceia de morangos silvestres e leite, a bruxa sendo queimada, a dança da morte ao final, o semblante radiante de Jof. O poder do filme talvez esteja em sua memorabilidade, na sua capacidade de permanecer em nossa imaginação e não mais pertencer à estória do filme em si. O vazio da morte permanece lado a lado com a serenidade de uma refeição ao entardecer com morangos silvestres. Tudo persiste como imagens de realidades sempre possíveis para qualquer um. Porém, o filme também tem um caráter discursivo que convida tanto à reflexão como à análise; o filme é emoldurado por duas formas litúrgicas cristãs - o Requiem (do início) e a Glória (do final). O primeiro é uma espécie de missa ou oração dedicada aos mortos; a segunda é uma forma de louvor a Deus por ser um criador misericordioso. Esta mudança de ameaça de iminente julgamento para a celebração da glória de Deus e do mundo que Ele nos deu já é englobada na missa em si, que se inicia e termina com um apelo a Cristo por misericórdia e paz, e que as almas dos mortos sejam entregues e passem da morte para a vida que Ele assim prometera. Esta estrutura de renascimento, de uma salvação que vai de uma morte terrena para uma vida espiritual, é ecoada nas várias referências do filme ao Apocalipse de São João, que em si termina num casamento sagrado na nova Jerusalém. Tudo isto sugere que a narrativa de O Sétimo Selo pretende traçar este progresso e mostrar em que a misericórdia de Deus realmente consiste.
   Mas citei anteriormente sobre a ambiguidade do filme; esta nos é apresentada já nas cenas contrastantes do início do filme. Após o otimismo inicial da música pomposa, o coral (essencialmente feminino) entoa brevemente um ritmo firme, mas sinistro. Os sons emanam de um grupo de nuvens clareadas pelo sol envolto por nuvens escuras que parecem estar se fechando sobre o primeiro grupo. O pássaro que paira em silêncio com suas asas estendidas é, no entanto, uma imagem que conforta, e também o é a voz do homem que declama a passagem do livro do Apocalipse. Nunca nos é dito quem é que declama este trecho da escritura, ou de que local a voz é emanada. Podemos supor, entretanto, que talvez se trate de parte de um sermão que um pregador pode estar apresentando como mensagem de Deus. De igual importância é o fato de que não podemos saber de que pássaro se trata e o que a passagem da música de abertura significa; será que essa música inicial tem um sentido teatral, como a chamar a atenção do público para o início do espetáculo (sabemos que Bergman tem grande inspiração e representação teatral)? Será o presságio de um evento cósmico como a grande explosão que anuncia o milagre de Deus na origem do mundo, como no oratório A Criação, de Joseph Haydn? Ou será que os acordes estridentes são uma declaração da terrível e perniciosa condição humana retratada no ambiente medieval, mas também presente nos tempos modernos? Da mesma forma, o pássaro pode ser visto tanto como um predador como uma prova do amor divino eterno. O fato de o pássaro se apresentar planando no alto, com as asas abertas, e não atacando nenhuma presa ou se dirigindo para nenhum lugar, nos sugere a pomba mitológica que se diz descer dos céus em compaixão a este mundo de pecado. Isto, por sua vez, delineia a aparição da morte pouco depois, quando ela abre os braços como se quisesse abraçar dentro de seu manto aberto o cavaleiro que perdeu o apetite pela vida; tomando-lhe, a morte poderia ser vista como um ato de amor ou misericórdia.




   A diferença, portanto, entre as duas formas de interpretação nesta atmosfera ambígua é tão grande quanto a diferença entre o preto e o branco, que são as cores de captação do filme. Bergman dizia que os filmes em preto e branco forçam a imaginação da audiência a participar intensivamente na comunicação com o diretor e suas imagens, o que define a natureza da arte do cinema. Ao mesmo tempo, pode-se entender que o preto e o branco estão em máximo contraste um com o outro, e são, portanto, mais dramaticamente confrontados do que qualquer outra combinação. Daí, por exemplo, o rosto muito branco da morte, que se veste toda de preto - aliás, a morte é o único personagem no filme que é puramente mítico, e não de todo realista. Bergman dizia que tinha em mente a face branca dos palhaços num circo quando imaginou esta caracterização para a morte. Ao contrário da imagem da morte em outros de seus filmes, em O Sétimo Selo, a morte não é inteiramente assustadora; pelo contrário, ela é frequentemente divertida e perspicaz. Por exemplo, ela aceita a proposta do cavaleiro para a partida de xadrez com a responsabilidade de alguém que realmente gosta do jogo e se orgulha de ser um mestre nele. Quando, ao acaso, a morte tem que jogar com as pretas, brinca-se com o fato de que isto é bastante adequado para alguém na posição dela. Mas este aspecto não tão assustador da morte não diminui a sua implacável devoção à sua missão. Quando a morte trapaceia e se disfarça de padre ao ouvir a confissão do cavaleiro na igreja, e descobre a tática que este usará para vencer aquela na partida de xadrez, ela está simplesmente executando o seu trabalho como alguém que pertence ao lado sombrio, a despeito de sua brancura complementar em sua apresentação humanóide. Apresentando o tempo todo uma caracterização ambígua da morte, Bergman manteve a fidelidade dela em dizer sempre a verdade, o que o diretor considerava fundamental numa vida digna. Quando o cavaleiro pergunta se a morte irá divulgar seus segredos no final de tudo, ela responde que não tem nenhum segredo, que não tem nada a dizer. E, obviamente, ela não tem, já que é meramente o arauto do nosso 'nada' que está por vir, e isto era o que Bergman temia à época. Mesmo na penúltima cena, quando a morte consegue reunir todos no castelo do cavaleiro indiscriminadamente, como aconteceria com a peste, ela não se faz ver ou ouvir. Em estar ao mesmo tempo presente e ausente neste sentido, ela emula o silêncio que é a doença espiritual, a doença até a morte, de que o cavaleiro tem sofrido desde o início e que o diretor tenta superar ao fielmente retratar isto.
   Na iconologia de Bergman, a morte não é o mesmo que o demônio. Tyan, a garota acusada de bruxaria, é queimada porque se acredita ter conspirado com o demônio. Ela afirma para si mesma e para o cavaleiro que os soldados não lhe causarão mal porque o demônio habita nela. Ainda, afirma que o cavaleiro pode encontrar o diabo olhando nos olhos dela. Em uma aproximação da câmera no rosto dela, nem o espectador e nem o cavaleiro percebem qualquer coisa que lembre o demônio. O que vemos, em vez disto, numa cena subsequente, é a morte serenamente fingindo ser um monge enquanto aguardo o seu prêmio. Quando a imolação começa, há um semblante de terror que marca a compreensão de Tyan de que o demônio a abandonou à morte, que é dolorosa, a despeito da poção que o cavaleiro coloca em sua boca no último instante.





   O cunho filosófico do filme de Bergman é muito contundente; no filme, o diretor tenta combinar um racionalismo rigoroso com uma fé perene na santidade da raça humana. Na estrutura dialética de O Sétimo Selo, pode-se identificar prontamente a mente e o comportamento de Jöns, o escudeiro, com o racionalismo, e o cavaleiro com a fé perene. Como em muitas obras em que se apresentam dois companheiros em jornada, como em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, as observações perspicazes e desilusões do escudeiro emanam de uma perspectiva racional que é verdadeira para a realidade e é inabalável em sua profissão de simples honestidade; mas também, decorrem da simpatia que o escudeiro sente em relação àqueles que são vítimas de terríveis circunstâncias em que são forçadas a viver. Nada que o cavaleiro faz é de perto comparável aos atos do escudeiro, exceto na única situação em que ele, maliciosamente, distrai a morte derrubando as peças no tabuleiro de xadrez e, assim, permitindo à 'família sagrada' fugir pela floresta; fazendo isto, ele cumpre sua missão como um cavaleiro de fé. No começo do filme, vemos o cavaleiro vestido com uma túnica que contém uma grande cruz, que identifica a causa para a qual ele se entregou. Suas orações e tudo o que ele diz são expressões verbais da religião em que acredita. Neste mundo de sofrimento e tristeza, cujas delícias corporais o escudeiro ainda deseja aproveitar, a despeito do reconhecimento de toda a sua ilusão, o cavaleiro procura somente uma resposta para o quebra-cabeça do silêncio de Deus. Ele deseja um sinal da existência de Deus e do seu amor escondido mas contínuo como promulgado pela visão ortodoxa do Cristianismo. Mas, por esta atitude, e pelo fato de o cavaleiro morrer sem receber qualquer resposta, como pode seu trabalho corroborar qualquer noção sobre a alegada santidade pela raça humana? Interessantemente, num dos momentos de maior comunhão com a natureza, quando o cavaleiro se apresenta numa das grandes situações que poderiam representar a resposta aos seus questionamentos religiosos, ele não vislumbra a possibilidade de que este momento, sozinho, poderia representar um sinal da presença amorosa de Deus no mundo; pode-se argumentar que esta natureza do sagrado se revela na cena em que Jöns e o cavaleiro participam de um piquenique com leite e morangos silvestres oferecidos por Mia quando eles em conjunto experimentam a beleza do por do sol de verão numa colina num momento de grande paz. Jof canta uma canção e Mia conforta o cavaleiro em seu desapego solitário dos prazeres rudimentares da existência comum. Eles todos se tornaram, naquele momento, uma comunidade estendida cuja aceitação um do outro os transforma numa espécie de congregação secular, como meros seres humanos e sem a interposição da supervisão clerical ou tradição teológica. É um momento de epifania que o cavaleiro promete sempre estimar. Ainda assim, os pressupostos doutrinários do cavaleiro maculam a bondade pura da ocasião, que Mia decreta espontaneamente e sem qualquer convicção formal.
   Quando O Sétimo Selo foi lançado, na segunda metade dos anos 1950s, os críticos frequentemente se referiam a ele como uma expressão do existencialismo moderno. Mas, nem este filme e nem qualquer outro dos que se seguiram dirigidos por Bergman podem ser explicados em termos das versões religiosa ou ateística do existencialismo. A visão religiosa, como representada por Gabriel Marcel (1889-1973) e Martin Buber (1878-1965), e com origem até certo ponto nos escritos de Sören Kierkegaard (1813-1855), pressupõe a veracidade da fé judaico-cristã em um Ser Supremo, infinitamente amoroso. A abordagem ateística, como nos escritos de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Martin Heidegger (1889-1976), sustenta uma ontologia totalmente diferente e relacionada a pensadores como Ludwig Feuerbach (1804-1872) e Friedrich Nietzsche (1844-1900), estes que tratam todas as referências ao 'sagrado' como projeções da imaginação humana e do desejo de realização. O que Bergman incorpora na filosofização visual e literária em O Sétimo Selo não é redutível a nenhuma das duas abordagens. Os dogmas sobrenaturais de sua juventude tinham criado nele sentimentos de culpa por fazer e desejar tudo o que ele, como outras pessoas, naturalmente desejavam ou com o que se preocupavam. Para ele, estes dogmas o preencheram não somente de auto-aversão mas também de ira e agressividade contra os seus semelhantes humanos. O seu medo da morte, como concluíra à época do filme, era um medo de punição ainda maior que ele poderia sofrer após ter morrido. Em contraste a este sentimento patológico, a situação de 'não-existência' como o término de ter vivido o deixa tranquilamente contente. É, para ele, como um alívio. Em sendo assim, uma vez que se percebe que a preocupação com a existência ou a não existência de Deus é patológica, ele diz, ser-se-á capaz de enxergar que todas as pessoas têm uma espécie de santidade dentro delas. Enquanto enfatizando que ninguém sabe a sua verdadeira origem, Bergman afirma que esta origem vem da natureza humana em si - 'Minha sensação de que Deus não existe não é uma sensação apavorante; é uma sensação de segurança. Esta é a Terra, nós estamos aqui, e a santidade que existe - porque ela realmente existe - está dentro de nós. É uma criação de gerações e mais gerações de esperança, medo, desejo, mentes criativas, orações - que ainda existem, em mim, e eu estou feliz por tê-los em mim... Eu, portanto, tento ser tão bom quanto possível... ser um humano na terra suja e sob o céu vazio. Este é meu objetivo.' 
Gabriel Marcel (1889-1973)
Martin Buber (1878-1965)
Sören Kierkegaard (1813-1855)
Jean-Paul Sartre (1905-1980)
Martin Heidegger (1889-1976)
Ludwig Feuerbach (1804-1872)
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
   Em termos de seu desenvolvimento como um artista visual e literário, manifesta-se a substância intelectual dos filmes que se inicia com O Sétimo Selo e segue por Através de um Espelho (Through a Glass Darkly), Luz de Inverno (Winter Light) e O Silêncio (The Silence), bem como alguns filmes subsequentes que pressupõem estes pensamentos, mesmo que possam não se concentrar neles. Ao longo de meados dos anos 1980s, Bergman alterou alguns dos seus pontos de vista, mas seguiu uma crença que poderia ser melhor encaixada no agnosticismo. Embora eu não compartilhe de sua crença maior ao final da vida, o que é muito interessante de se notar é que a grandeza de seu trabalho foi permitir grandes e profundas discussões acerca dos questionamentos da vida de cada um de nós, com formas brilhantes e autênticas, e que muitas vezes trouxeram respostas para o próprio diretor, e são, indiscutivelmente, filmes espetaculares, porque absorvem o espectador em suas próprias indagações, além de que oferecem uma saída e várias respostas essenciais para a existência. Ao colocar na película de forma perfeita grandes angústias de sua alma, Bergman prova que as grandes obras de arte não são aquelas que servem a um propósito exterior, mas as que surgem para atender a uma necessidade do próprio artista; como num livro, em que o autor escreve não pensando em vender, mas pensando que aquela estória precisa ser contada de alguma forma, porque há uma inquietação no seu espírito que necessita ser passada para o papel. A mesma coisa acontece, no meu caso, com relação ao grande Albert Camus; não compartilho de sua crença, mas a sua obra alimenta o espírito de qualquer pessoa, e seus escritos são de um poder de absorção e apresentam uma angústia da alma que não encontra outros paralelos, sendo magistrais e muito tocantes, verdadeiras obras primas.
   Então, poderíamos reunir alguns temas apresentados no filme, ainda que sempre haja a referência ambígua a eles. Por exemplo, um dos temas seria o silêncio de Deus; a misericórdia de Deus e a transformação da morte em vida é o que Antonius Block procura, mas para este, Deus é silencioso e ausente; ele não pode ser visto e nem fala. As pessoas o imaginam, mas isto não é a mesma coisa de ele realmente existir. As pessoas o temem, por isto o imaginam. Ao longo do filme, percebemos que talvez ele não aceite qualquer posição intermediária entre a pura fé e o conhecimento absoluto - Block vive entre estas posições, repelida por uma e desesperada pela outra. Um mundo em que estas são as únicas alternativas possíveis é, certamente, inumano e inabitável (ou seja, ímpio); então, Block persegue suas respostas, jogando xadrez para ganhar mais tempo e encontrá-las. Estas respostas são dadas a ele? Sim, embora ele talvez nunca realmente acredite nelas. Estas repostas acontecem em duas formas, a negativa (quando ele não encontra o diabo nos olhos da garota que está para ser queimada viva acusada de bruxaria, ela que tinha uma fé cega e pura na existência do diabo, e quando a morte o diz que não tem nada a dizer, exprimindo o que existe após a morte - nada; mas, o silêncio e o nada após a morte não é o silêncio de Deus, e esta é a primeira, negativa, resposta de Block) e a positiva (ora, quando a garota está para ser queimada viva, o conforto que Block dedica a ela, libertando-a um pouco da dor e do terror, já que lhe dá veneno, é tudo o que ela tem, embora não seja muito; no piquenique em que está com seu escudeiro e com Mia e Jof, ele está, naquele momento, contente, e tudo o mais não parece importante. Ao ver Mia e Mikael, ele é absorvido pela beleza deles e reconhece o amor e a afeição que abençoam o casamento de Jof e Mia - sua única ação significativa é salvar-lhes a vida. Apesar deste momento, ele parece não ter achado a paz que procura). De fato, Deus e o Diabo estão em todo lugar e de forma tão real quanto as outras pessoas. O Diabo é a maldade presente no sofrimento e tortura de Tyan, o mal no roubo e na luxúria por violação do ex-padre Raval, a humilhação dedicada a Jof na taberna, a vergonha e o desespero sentido pelo ferreiro Plog quando é traído, a solidão de Block; Deus está na proteção dedicada de Jöns a Jof e à garota, no alívio dado a Tyan, na alegria e no amor da família de Jof e Mia, no compartilhamento dos morangos silvestres, no ato significativo do cavaleiro, até mesmo na calma de Karin no final. Estas são as únicas respostas que podem ser encontradas, as únicas evidências de Deus ou do divino que nos podem ser dadas. Outro tema é o da imanência de Deus; no filme, de uma forma mais profunda, Bergman apresenta Deus de forma imanente e idêntico ao espírito humano. Isto não é uma questão de religião institucional e nem de doutrina, mas de verdade inerente em ambos. Block quer que Deus o toque através dos sentidos daquele, mas não percebe que isto aconteceu. Como uma interpretação e posição teológica da natureza de Deus, tal imanentismo não está em desacordo com a visão de Jöns de que Deus é uma imagem projetada por humanos para permitir que eles vivam tementes. Como figuras de pensamento, Deus, o Diabo e Jesus são, na verdade, representações de verdades humanas e um tipo de espelho em que podemos nos ver e enxergar o que mais precisamos saber através de suas imagens e narrativas. Religião, neste sentido, torna-se arte. E é através deste ponto de vista, da arte, que as verdades da religião e da vida são transmitidas no filme. Em O Sétimo Selo, esta representação do real em gravuras e palavras é uma forma primária de conhecimento. Entretanto, é também necessário que estas imagens não mal interpretem a realidade em que se fundamentam. Para Bergman, esta é uma questão de ter imagens mais completas e reconhecer quais representações são primárias; assim, Cristo aparece três vezes no filme como uma estátua de madeira (na igreja, entre os penitentes flagelantes e no castelo do cavaleiro) - todas são representações da paixão e do sofrimento humano. Talvez sejam estas imagens e o eterno suplício a Deus que mantêm Block procurando nos mesmos lugares; na sua busca, ele está imitando Cristo na cruz, sozinho, esperando por algum resposta transcendente - mas, ao ver o abandono e o sofrimento de Cristo como aqueles das pessoas, também vemos que a resposta de que cada um deles necessita é a ajuda e o conforto de uma outra pessoa. Após a cruz, vem a ternura de Maria e as três mulheres na tumba, não uma voz dos céus. Vendo Cristo na cruz sozinho, separado de outras imagens, somos levados a perceber que a falha representada por tal figura em dor e sofrimento não é de Deus, mas de nós mesmos. Em tais situações, respondemos aos outros de acordo com suas necessidades, não conforme nossos desejos, e damos gratuitamente o que temos - somos tocados e compartilhamos alguma coisa em comunhão com outras pessoas. Isto ocorre no entardecer quando do compartilhamento dos morangos silvestres e do leite (simbolismo para o sangue e corpo de Cristo), como já exposto, e é também o que está simbolizado pela visão que Jof tem de Maria e do menino Jesus, tornada imanente em Jof, Mia e Mikael; eles são a verdadeira sagrada família e têm toda a divindade que Maria e Jesus têm. É esta graça - que é tanto a generosidade da natureza como do coração humano, bem como a sorte de encontrar ambos - que a Glória final celebra. Um último grande tema é o do julgamento final; O Sétimo Selo é um filme moral, e suas figuras servem como exemplos dos tipos e possibilidades humanos. É uma estória sobre o que acontece a pessoas do tipo de Block quando elas necessitam de conhecimento, não de fé e suposições, e também sobre como por causa disto elas se tornam, em última instância, afastadas de Deus, mesmo que Ele esteja em todo lugar, não como uma questão de fé, mas como um objeto de uma diferente forma de observação. O fundamento do filme é ter Block não como um homem que muda, mas em tê-lo sempre o mesmo, intransigente em sua demanda, e, portanto, condenado à sua vida vazia, preenchida com medo e desgosto, e a uma morte impiedosa. Mas o medo e o desgosto está presente em todo lugar ao redor do cavaleiro no filme; este medo se instala logo no início do filme, que é o início do julgamento da humanidade diante de Deus. Mas qual a punição ou recompensa para os tipos do filme? Eles já as tiveram; o que vemos no fim do filme não é a morte levando suas vítimas para outra vida no Paraíso ou no Inferno, mas simplesmente os leva para seu próprio mundo escuro da não-existência. A morte verdadeiramente não tem segredos; sua paz é aquela do esquecimento. O único lugar de luz (e de irradiação espiritual) é aquele associado com Jof e Mia, e este é nesta vida. Mas, no final, a vida escapa da morte, pois ao salvar Jof e sua família da morte, a distraindo e se sacrificando, Block salva a vida em si, e a vida irá sempre escapar da morte, pois é algo sempre possível nela mesma.

Alegoria à 'Dança da Morte'
   O fato é que, após assistir a esta obra prima, minha visão da arte nunca mais foi a mesma. O grande poder de filmes como este é o de absorver a atenção e gerar grandes e prolíficos frutos por nos fazer cada vez mais desejosos de tocantes e consistentes expressões artísticas. O brilhantismo da fotografia em preto e branco, o simbolismo de cada personagem como referência para cada aspecto da alma humana, a compreensão das angústias da solidão e discussões importantes acerca do papel da morte e do papel da fé em nossas vidas, fazem de O Sétimo Selo um filme eterno e distante de muitos outros grandes filmes. Muito importante para reflexões nas vidas de todos nós. Apesar de todo essa explosão de gratidão com relação ao filme por todos estes motivos, o poder maior dele é compreender que, para Bergman, a redenção está, indiscutivelmente, na ARTE. Ora, a conclusão cabal em que a morte leva grande parte dos personagens mas não consegue levar os ARTISTAS, que sobrevivem, é uma prova indiscutível de que a ARTE suplanta toda e qualquer discussão acerca da existência, como que expressando que a ARTE é a verdadeira eternidade, e, ao se colocar Jof, Mia e Mikael como a sagrada família em si, outra inferência é a de que a ARTE talvez seja uma das coisas verdadeiramente mais sagradas na vida de todos nós. Uma ótima semana a todos!!!

Sem comentários:

Enviar um comentário