domingo, 29 de junho de 2014

Os Invencidos

   Seguindo na análise das obras do grande Faulkner, esta semana teceremos alguns comentários sobre outro romance seu: Os Invencidos (The Unvanquished). Já tendo tecido comentários de sua vida, sabemos que no início da década de 1930 foram publicados seus maiores trabalhos: O Som e a Fúria (na verdade, em 1929) e, a seguir, Enquanto Agonizo, Luz em Agosto e Absalão, Absalão! Os Invencidos, em contraste, não está entre seus melhores trabalhos. Publicado em 1938, o romance exibe pouco da sofisticação, complexidade e inovação técnica na prosa em que se baseia a reputação do autor. Os personagens são menos sutis e bem delimitados - o bravo Coronel Sartoris, a feroz Drusilla e o nobre Bayard não são tão atormentados ou complicados como seus personagens mais famosos. Além disto, os episódios no livro frequentemente não são equilibrados, sem dúvida devido ao fato de terem sido compostos em momentos diferentes. Os episódios menos complexos (Emboscada, Retirada, Incursão e Escaramuça em Sartoris) foram escritos como pequenas estórias em 1934 e 1935 para o jornal The Saturday Evening Post e outras revistas de classe média. Em contraste, Um Cheiro de Verbena não foi escrito até 1937, tendo sido criado para ser o episódio final em um romance proposto. Seu drama intenso e simbolismo formal parece em desacordo com a comédia das aventuras de patifaria de Bayard mais no início do romance. Mas, embora Os Invencidos não seja a melhor ficção de Faulkner, é maravilhosamente divertido e muito bem escrito, e os vôos de fantasia cômica desmentem a seriedade de suas mensagens mais profundas.

William Faulkner (1897-1962)
   Um outra questão abordada no romance é uma memória crítica à Guerra Civil americana. Os Invencidos é único dentre seus trabalhos que se passa durante a guerra, enquanto a maioria dos outros romances seus tratam de temas mais relacionados à identidade do Sul dos EUA, mas geralmente ambientados já no século XX. Em Os Invencidos, vemos Confederados e Yankees, incursões e escaramuças, além de exércitos e batalhas. Faulkner inequivocamente celebra a bravura e o heroísmo dos Sartoris, e os leitores também se identificam com eles. Mas o racismo maléfico subjacente à causa dos Confederados é apenas representado de soslaio; na verdade, parece que a maioria dos escravos no romance não 'querem' ser livres, e aqueles que o querem, como o escravo Loosh dos Sartoris, são apresentados em tons decididamente negativos. Até mesmo quando o Coronel Sartoris assassina dois dos abolicionistas entre os nortistas é algo representado supostamente de forma louvável. Mas a pintura final não é tão unilateral: personagens como Ringo são genuinamente positivos, heroicos e multi-facetados.
   Em Os Invencidos há sete episódios; algumas vezes, uns seguem temporalmente imediatamente ao outros e outras vezes os episódios apresentam eventos separados por meses ou anos - no geral, envolvem o intervalo de tempo de 1862 a 1873. O livro se inicia com a descrição de Bayard Sartoris e seu escravo e amigo Ringo, ambos brincando na plantação dos Sartoris. Um escravo chamado de Loosh presunçosamente interrompe a brincadeira, informando que os exércitos da União entraram pelo nordeste do Mississippi, próximo à cidade deles, Jefferson. Os garotos não entendem completamente, mas o pai de Bayard, o coronel John Sartoris, retorna para casa do front naquele dia informando à avó Millard que Vicksburg foi tomada. Loosh obviamente sabe da derrota, e Bayard decide, junto a Ringo, ficar de olho em Loosh. Após vários dias de vigília, os garotos seguem um soldado Yankee montado a cavalo pela estrada. Os garotos atiram no soldado e depois correm para casa, quando pancadas se ouvem na porta da frente. A avó os esconde sob a sua saia e insiste ao raivoso sargento da União que não há crianças por ali. O Coronel Dick, um oficial Yankee, desiste de buscar pela casa por pena, não por acreditar na avó. Felizmente, os garotos descobrem que eles mataram apenas o cavalo.


   No ano seguinte, seguindo instruções do Coronel Sartoris, a avó decide carregar um baú pesado de prata até Memphis para mantê-lo em segurança. Após escavar o chão onde ele estava enterrado, ela obsessivamente insiste que os escravos o levem para o seu quarto no andar superior, pois assim ela o poderá vigiar durante a noite. A jornada até Memphis os leva através de áreas ocupadas pela União. Uma tarde, homens armados cercam os viajantes e roubam as mulas, apesar das tentativas da avó em expulsá-los. Bayard e Ringo pegam um cavalo de um celeiro próximo e tenta perseguir os atacantes, deixando a avó cuidando de si mesma. Eles são encontrados adormecidos no dia seguinte pelas tropas do Coronel Sartoris. Furioso e preocupado com a avó, o coronel os leva de volta a Jefferson pessoalmente; no caminho, eles acidentalmente encontram os ladrões, um grupo de soldados do norte, capturando os suprimentos deles, embora o coronel tenha permitido que os homens fugissem. Felizmente, a avó chegou a casa em segurança, mas no dia seguinte uma brigada da União cavalga até a casa buscando o Coronel Sartoris. Ele escapa, mas os Yankees queimam a casa e levam o baú de prata.


   A avó decide pessoalmente pedir aos Yankees que devolvam o baú, os escravos e as mulas. Com Bayard e Ringo, ela parte para o Alabama em busca do exército da União. Eles passam por um exército de escravos libertos que também está procurando os Yankees. No caminho, eles param em Hawkhurst, onde a tia Louisa, de Bayard, vive; Ringo se anima em ver a estrada de ferro que passa por perto. Mas esta foi destruída e a casa queimada. Em Hawkhurst, a prima de Bayard, Drusilla, suplica para que este peça ao pai dela para deixar que ela se una ao regimento de soldados. Ela os acompanha até a ponte sobre o rio, onde os Yankees estão acampados, e eles são envolvidos por um mar de escravos inquietos. As tropas do norte dinamitam a ponte e, na confusão, a carroça cai na água. Os Yankees os recupera, entretanto, e ficam tão sobrecarregados com escravos em excesso que o Coronel Dick emite uma ordem para dar mais do que cem escravos e mulas para a avó, bem como vários baús de prata. A avó dispensa a maioria dos escravos, mas ela e Ringo usam a ordem para adquirir doze cavalos extras de uma acampamento da União. O embuste é repetido constantemente, e após um ano, a avó e Ringo construiram um negócio próspero com mulas contrabandeadas com a ajuda de Ab Snopes, um branco pobre local. Então, Ab vende as mulas de volta aos desavisados Yankees. Eles discutem acerca de uma oportunidade particularmente arriscada e decidem continuar, embora a avó se sinta desconfortável. Sua hesitação é justificada: o exército da União emite um memorando que informa acerca de embustes e, pouco tempo após, após eles deixarem um acampamento, os soldados marcham até eles e os confrontam. Felizmente, a avó já havia deixado as mulas com Ab por segurança, e quando Ringo cria uma diversão na floresta, Bayard e a avó simplesmente desaparecem entre as árvores. Mais tarde naquela semana, torna-se claro que a avó não manteve os proventos para si, mas os distribuiu entre outros membros da comunidade.


   No Natal de 1864, Ab diz à avó sobre um grupo de bandidos liderados por um ex-confederado de nome Grumby, que vem aterrorizando o país. Ab convence a avó a tentar a farsa deles uma última vez em Grumby e seus homens. Embora Bayard tente desesperadamente dissuadi-la da ideia, ela insiste em fazê-lo, e acaba sendo morta a tiros por Grumby. Após o funeral, Bayard planeja buscar vingança acompanhado de Ringo e do tio Buck. Percebendo que Ab Snopes se uniu a Grumby e seu bando, eles os perseguem por dois meses pela área. Eles percebem que estão chegando perto de alcançá-los quando um estranho bem vestido acaba se revelando um dos homens de Grumby e atira neles, ferindo o tio Buck; no dia seguinte, eles encontram Ab Snopes preso pela estrada numa espécie de sacrifício. O covarde Ab suplica por piedade e eles decidem não matá-lo; em vez disto, o tio Buck o leva de volta para a cidade. Bayard e Ringo continuam a perseguição e logo os comparsas de Grumby decidem entregar este para os garotos na tentativa de acalmá-los. Grumby e Bayard brigam. Bayard é quase vencido, mas prevalece e acaba matando Grumby. Os garotos pregam o corpo na porta da compressa de algodão onde sua avó foi morta, a seguir cortando sua mão e levando para a lápide da avó.


   Naquela primavera, Drusilla retorna da guerra e está vivendo com os Sartoris em Jefferson. Tia Louisa está escandalizada que Drusilla tem vivido com o Coronel Sartoris e determina que eles devem se casar. Tia Louisa pede para várias mulheres de respeito da cidade convencerem Drusilla. Logo a tia Louisa chega e, ignorando os protestos da filha, faz planos para o casamento. Entretanto, ela planeja o casamento para o mesmo dia em que está havendo uma eleição fortemente contestada em Jefferson, em que o Coronel Sartoris está tentando impedir a vitória de um aventureiro na cidade. No dia do casamento, Drusilla vai para a cidade para se casar mas acaba ajudando o Coronel a enfrentar dois dos aventureiros, contra os quais ele atira e mata. Quando descobre o que aconteceu, tia Louisa fica furiosa com o fato de o casamento não ter acontecido. Drusilla, o Coronel e os cidadãos se dirigem para a plantação dos Sartoris para retomar a eleição; não surpreendentemente, o candidato republicano, um ex-escravo, perde. Oito anos depois, Bayard torna-se um estudante de Direito na Universidade do Mississippi; tendo beijado Drusilla uma vez nos anos anteriores, esta parece estar apaixonada por ele. Uma noite, Ringo vai à universidade para dizer que o Coronel Sartoris foi assassinado por um ex-sócio e rival, Ben Redmond. Espera-se que Bayard busque vingança e atire em Redmond. Ele volta imediatamente para Jefferson, onde Drusilla, com seu vestido amarelo com um raminho de verbena em seu cabelo, parece quase uma sacerdotisa da vingança. Ela lhe entrega um par de pistolas de duelo e então cai numa crise histérica de riso. Após Louvinia ter levado Drusilla para a cama, a tia de Bayard, Jenny, pede para que ele não gere violência. Na manhã seguinte, Bayard vai até a cidade com Ringo. Uma multidão se reúne enquanto ele se prepara para entrar no escritório de Redmond, mas Bayard se recusa a aceitar a assistência de Ringo e uma pistola oferecida por um amigo de seu pai, George Wyatt. Ele entra no escritório; Redmond dispara dois tiros contra Bayard e então pega seu chapéu, atravessa a praça e pega um trem para fora de Jefferson para sempre. Os cidadão pensam que Bayard está morto; de fato, ele decidiu confrontar Redmond desarmado, quebrando o ciclo de violência sem sacrificar sua honra. Quando ele retorna para sua casa naquela noite, Drusilla partiu para sempre. O único sinal dela é um raminho de verbena que ela deixou no travesseiro.


Verbena
   Analisando os principais personagens, inicialmente tecerei alguns comentários sobre o principal deles: Bayard. Os Invencidos é um romance de autodesenvolvimento; neste tipo de romance, o personagem principal é apresentado durante seu crescimento, indo da infância à fase adulta. A preocupação central neste tipo de livro é, geralmente, o que o personagem aprende e como ele muda ao longo do tempo. Isto é certamente verdadeiro neste romance de Faulkner, especialmente enquanto Bayard controla nossa percepção do mundo ao seu redor: nós não somos apresentados a nada que ele não veja ou conheça. Assim, seu desenvolvimento moral e pessoal é de profunda importância. No início da estória, Bayard goza de uma infância idílica a despeito da guerra, como retratado mais claramente em 'Emboscada' e 'Retirada'. Bayard parece feliz e relativamente despreocupado; a primeira cena no romance é a dele brincando bastante contente com seu amigo Ringo. Não há menção de sua mãe (uma omissão infrequente), mas Bayard, no entanto, goza de uma calorosa e protetora família, incluindo sua avó e Louvinia. Podemos perceber claramente os traços do seu caráter, especialmente sua coragem nas explorações iniciais, mas não as consequências prejudiciais de suas ações: seu tiro mata apenas o cavalo, e o Coronel Dick tem pena da avó; ele é resgatado de sua perseguição selvagem aos ladrões das mulas pelo Coronel Sartoris e a avó encontra seu caminho para casa ilesa.
   O evento crucial na vida de Bayard é, obviamente, a morte de sua avó e a perseguição e captura bem sucedida de Grumby. O assassinato dela não importa apenas por causa do papel central que ela representava em sua vida, mas por causa da plausibilidade que ele carrega em ter sido o responsável - em seu coração, ele sabia o que iria acontecer, e podia tê-la mantido em segurança se a tivesse impedido de ir ao local do crime. Nesta passagem, Bayard duas vezes menciona sua idade, como que para enfatizar o enorme abismo em sua vida antes e depois do assassinato. No capítulo seguinte, quando o tio Buck diz a Grumby que ele está lidando com 'crianças', a ironia é palpável, já que Bayard, obviamente, se torna um adulto. Já como um adulto no capítulo 'Um Cheiro de Verbena', Bayard representa a possibilidade de uma nova ordem moral para o Sul dos EUA. O Sul tradicional, como representado pela família Sartoris, está preso em um ciclo destrutivo de violência e retribuição, uma dos quais leva a vida da avó, e, num outro ciclo, a vida do Coronel Sartoris. Ao confrontar Redmond desarmado, Bayard retém a melhor parte daquela tradição: o conceito de honra, e dispensa a necessidade de derramar sangue. É um final de esperança e otimismo para Bayard e seus compatriotas.


   Outro personagem importante no livro é o Coronel Sartoris. Se Bayard representa a possibilidade de uma nova ordem no Sul, o Coronel Sartoris é o epítome do velho, do homem tradicional exagerado ao ponto de estereótipo. A lista de suas qualidades positivas é grande: inteligência, coragem, honra, integridade, devoção à família, orgulho masculino. Na verdade, ele seria muito forte para ser crível se seu caráter fosse testado mais profundamente. Entretanto, nós apenas o vemos através dos olhos de um filho adorador, que, compreensivelmente, enfatiza as qualidades heroicas do pai. O Coronel aparece em cena a intervalos relativamente infrequentes; usualmente está longe, em guerra, e faz uma breve aparição em alguns capítulos, não aparecendo em outros capítulos em nenhum momento. Somente em 'Retirada' e 'Escaramuça em Sartoris' nós o vemos de forma extensiva e mais importante. Como resultado, seu personagem é mais legitimamente envolto em uma aura de lenda. Finalmente, o romance é narrado por um Bayard adulto em um tempo muito depois da guerra, quando as realidades mundanas da memória de seu pai tinham sido suplantadas por uma mitologia que ele havia parcialmente inventado. Se o Coronel fosse o narrador ou o protagonista, suas qualidades muito virtuosas dominariam o livro e o tornariam caricatural; embora sob a óptica de um garoto e em pequenas doses, a presença do Coronel dá à guerra majestade e grandiosidade.
   De grande importância no romance é também a avó Millard. De sua própria maneira, a avó é tão heroica quando o Coronel, mas seu heroísmo parece mais íntimo e humano. A grandeza do Coronel está no sangue, na fumaça e nos sabres, enquanto a avó nunca é mais heroica do que quando Bayard a vê como uma silhueta contra a chuva, uma pequena e velha senhora. A avó é uma presença constante na primeira metade do livro, e seus triunfos são comuns e humanos. Além disto, seu heroísmo emerge gradualmente, de modo que seu caráter se desenvolve e desabrocha, enquanto o do Coronel é estático. No meio de uma guerra dominada por façanhas de homens, a avó representa um ideal imaginário para as mulheres, bravas e engenhosas, em vez de fracas e suaves. A morte da avó é um duro golpe para a ordem moral de sua comunidade, mesmo que Bayard tenha organizado as coisas por um tempo ao vingar a morte. Ela confidencialmente diz a Bayard que nenhum homem, especialmente um ex-soldado confederado como Grumby, poderia prejudicar uma mulher indefesa, mas mesmo este princípio central do código sulista desapareceu com a guerra. Mais indiretamente, ela é traída por Ab Snopes, um incompetente que se preocupa mais com os lucros do que com a honra e a moralidade no que faz. No universo do condado de Yoknapatawpha, os Snopes somente se tornarão mais poderosos e numerosos com o tempo, deixando o mundo menor e mais insignificante para trás.


   Um último personagem que merece destaque é Drusilla. O retrato desta é visivelmente cambaleante. Em 'Retirada' e 'Escaramuça em Sartoris' ela é uma guerreira descompromissada com cabelo curto, que detesta as constrições da feminilidade e não quer nada mais do que poder matar Yankees. Mas em 'Um Cheiro de Verbena' ela é descrita como apaixonada e mesmo lasciva, beijando Bayard no jardim e deixando o cheiro de verbena atrás dela. Suas calças foram trocadas por um vestido de baile amarelo e seu discurso sem adornos passa a ser uma prosa fantasiosa, permitindo a ela descrever um par de pistolas de duelo como 'finas, invencíveis e fatais, como a forma física do amor'. Diferente da avó, cuja transformação é lenta e crível, a quebra no caráter de Drusilla é brusca e difícil de se crer. Em ambas as encarnações, no entanto, Drusilla parece, à primeira vista, inquestionavelmente o personagem feminino mais forte no romance, até que sua força se abre para revelar uma vulnerabilidade infantil. Drusilla é capaz de defender a si mesma com uma pistola e de dormir desprotegida num acampamento confederado, mas se desfaz diante de sua mãe e de um baú cheio de vestidos. Sua volatilidade emocional crua está em desacordo com a feminilidade sulista tradicional e também não sabe como se proteger de sua invasão. Sua derrota em 'Escaramuça em Sartoris' é de forma mais honesta possível, e uma acusação eficaz ao vazio da velha ordem social (diferente da ordem moral).
   Com relação aos temas na obra, podemos destacar alguns deles. A moralidade e o desenvolvimento da moral são evidentes; da mesma forma que a estória do crescimento de Bayard, da infância até a maturidade, o livro é centrado no seu desenvolvimento moral. Enquanto criança, ele é inocente com relação aos conceitos de moralidade e honra; ele atira no soldado da União não sem princípio, mas por excitamento e por que testemunhou adultos fazendo coisas parecidas. O desenvolvimento da moral de Bayard é moldado mais profundamente pela sua avó paterna. Pela primeira vez, ele sente o peso da responsabilidade de um adulto, e ele o faz não apenas porque é o que se espera dele, mas por causa de um envolvimento pessoal e emocional para se obter justiça por sua avó. Sua decisão em não matar Redmond representa o mais alto estágio de moralidade: ele vai contra um forte instinto pessoal e contra os desejos de vários moradores e amigos em nome de uma virtude superior, uma injunção bíblica contra matar. O romance também descreve o código moral do velho Sul e como ele muda ou não muda ao longo da guerra. O aspecto positivo deste código é o cavalheirismo da avó e do Coronel Sartoris (a obrigação de ajudar os menos afortunados, de proteger as crianças e de por a família acima de si mesmo). Mas outros aspectos, igualmente tradicionais, são a ignorância da moralidade que alimenta o código, tendo como preocupação apenas suas qualidades formais vazias. A tia Louisa e os senhor Habersham respeitam apenas a forma, mas não o significado (as regras formais para conduzir um casamentos, mas não a necessidade de compaixão ou perdão). E sulistas como Ab Snopes e Grumby parecem não ter um código, mas somente o desejo de seguir adiante com benefício às custas da perda dos outros.


   Um outro tema que merece discussão é o da raça. As questões raciais que motivaram a Guerra Civil e muitos outros livros de Faulkner são, em sua maior parte, excluídas de Os Invencidos - não se busca analisar a escravidão ou a humanidade dos negros. Mas a raça é necessariamente uma questão central no romance, até mesmo para um leitor mais atual em relação ao leitor da época do autor. A insensibilidade racial que o livro algumas vezes revela (os escravos conformados e mesmo contentes com a escravidão, o retrato de Loosh, cujo desejo de liberdade é retratado como injustificado e ingrato) nos deixa desapontados e desconfortáveis. Mas outras partes do romance desafiam o preconceito racial prevalente à época. A migração dos escravos em busca do rio Jordão é uma imagem assombrosa de injustiça e de desejo frustrado. Em um aspecto bem diferente, o caráter de Ringo, que é inicialmente estereotipado, acaba ultrapassando um tipo racial padrão para se tornar um humano totalmente não questionador. O tratamento benevolente que Ringo recebe dos brancos pode não ser crível, mas sua inteligência, discernimento e amizade leal contribuem para que um personagem negro seja tão admirável quanto qualquer branco no romance. Faulkner foi considerado um liberal em questões acerca do racismo na era pré-direitos civis no Sul dos EUA, e enquanto Os Invencidos não é tão racialmente iluminado como seu melhor trabalho, o romance ocasionalmente lida com discriminação, usando o preconceito da era da Guerra Civil para realçar um problema sulista corrente.
   Quanto aos motivos, podemos também destacar dois. Um deles é a Guerra Civil; esta é mais do que um cenário para o romance. É uma presença ativa, influenciando os valores e as ações dos personagens, além de influenciar a trama. O campo de batalha nunca é representado diretamente, mas podemos perceber a influência das batalhas na diminuição das fortunas dos personagens, na devastação visitada nas fronteiras e na permanência duradoura dos civis. Mas, a despeito desta aparência de realismo, esta não é uma representação realista do que foi uma guerra inimaginavelmente horrível e violenta. Em vez disto, apresenta uma coleção de feitos heroicos do Coronel Sartoris e seus homens, que assediam os Yankees mas escapam sem punição. Ao mesmo tempo, a guerra põe em discussão o sistema de valores do Sul; já que os meios sociais tradicionais de imposição se foram, mesquinhos como Grumby e Ab Snopes podem florescer. Bayard e os outros personagens são responsáveis por garantir que o sistema sulista não desapareça como resultado do trauma em que está envolvida a sociedade. A guerra, assim, cria a crise que testa Bayard e permite que ele se desenvolva e amadureça como adulto.


   Outro motivo é o humor. As passagens cômicas no romance inicialmente contribuem para a atmosfera idílica da infância que Bayard aproveita nos primeiros capítulos. A guerra não é nada mais do que uma aventura divertida para ele, e o tom humorístico de seus arranhões é reconfortante, como que a prometer que nada ocorrerá de seriamente errado. Até mesmo as dificuldades aparentes, como o incêndio da casa, não interrompem seriamente este clima de segurança. Apenas o clímax do romance desaloja as proteções da infância e, com elas, o humor gentil dos primeiros capítulos. A vingança que Bayard executa com relação à sua avó e ao Coronel Sartoris é completamente sem senso de humor (até mesmo a farsa em 'Escaramuça em Sartoris' é apresentado com amargura, diferente da comédia explícita em 'Emboscada').
   Quanto aos símbolos contidos, alguns merecem destaque. Um deles é o baú de prata; toda a jornada que a avó enfrenta para proteger e estar perto dele representa mais do que o valor monetário em si - na verdade, ele simboliza a continuidade com o passado, uma forma física das tradições que ela teimosamente tenta manter. Quando a guerra acabar, o baú poderá ser desenterrado e a vida voltará a ser mais ou menos como antes, pelo menos dentro dos limites confinados da mesa de jantar. A prata, herdada dos ancestrais e transmitida como uma herança, é particularmente um bom emblema da respeitabilidade de uma família, além do orgulho e da linhagem ininterrupta. Quando Loosh o rouba, aos olhos da avó ele está assaltando diretamente a integridade da família Sartoris. A ideia de que um escravo pode possuir a prata da aristocracia resume as condições sociais às avessas criadas pela guerra.
   Outro símbolo é a verbena. Uma flor que tipicamente produz um forte aroma cítrico apenas aparece no último capítulo, mas a referência recorre constantemente. Drusilla a usa no cabelo; Bayard pendura uns raminhos no seu casaco quando vai confrontar Redmond e caminha pela praça da cidade envolvido numa nuvem do aroma; Drusilla coloca suas flores no travesseiro de Bayard como um gesto de adeus. Ela diz a Bayard que a usa porque é o único aroma forte o suficiente para sobrepujar aqueles odores pungentes de cavalos e campos de batalha - o odor da coragem, ela afirma. Mais literalmente, o aroma de verbena se torna um símbolo de Drusilla em si, de modo que quando Bayard o sente enquanto caminha em direção ao escritório de Redmond, tem-se uma continuação sensorial com os incitamentos dela para a violência no dia anterior. Como Drusilla, a flor é incrivelmente forte e impossível de se esquecer - quando Bayard pensa nela, o cheiro incontrolavelmente invade o seu cérebro. Obviamente, um aroma entra mais no campo da emoção do que da racionalidade, tal qual Drusilla. Mais especificamente, esta associa o aroma à coragem e ao heroísmo militar. Aquilo que ela deixa no travesseiro de Bayard é uma prova de que ela admite a bravura da ação dele, mesmo que discorde de sua recusa em usar a violência.


   Um último símbolo interessante é a ferrovia. Ela aparece em dois momentos importantes do romance; em 'Incursão', a ferrovia que passa pela casa da tia Louisa, no Alabama, foi o lugar da locomotiva caçada e condenada, cuja história Drusilla diz a Bayard e Ringo. Quando os garotos vêm para vê-la, suas amarras foram destruídas e os trilhos de ferro envoltos em troncos de árvore. Em 'Um Cheiro de Verbena', a ferrovia é o negócio no qual Redmond e o Coronel Sartoris entram juntos; ela é concluída graças à incrível persistência e personalidade forte do Coronel. Os trilhos perfeitamente retos que atravessam um deserto indisciplinado são um símbolo das conquistas dos seres humanos, de uma ordem imposta sobre a natureza. A completude dos trilhos é um triunfo tangível para o Coronel Sartoris da mesma forma que a sua destruição é um emblema das esperanças esmagadas do Sul. Mas, pelo menos, a memória da locomotiva confederada cruzando os Yankees vive como um gesto de orgulho e desafio, da mesma forma que o assobio insultante do Coronel enquanto fumegando a casa de Redmond.
   Sendo um livro que, com uma bela e consistente trama, reforça os temas e interesses do autor em suas obras, enaltecendo tradição, força familiar e honra, merece muito louvor por parte de quem o lê. Mostra porque os bons autores são os que mantêm uma linha autêntica de interesses, repetindo-os nas suas diversas nuances; além disto, torna universal a realidade que está ao seu redor, executando, com maestria, o verdadeiro papel da Literatura como Arte máxima que deve ser. Perfeito! Uma boa semana a todos!

sábado, 21 de junho de 2014

Enquanto Agonizo

   A segunda obra que merece destaque no universo do grande William Faulkner é este romance primoroso, que nos faz sentir realmente o que é agonizar, no sentido de escalada para a morte... Mas, acima de tudo, lida de forma magistral com os problemas que os indivíduos ao redor apresentam durante o envolvimento com a morte. O mais interessante é que o autor consegue desenvolver a estória sob a óptica de cada personagem envolvido. Um livro seu lançado anteriormente, e que o lançou definitivamente entre os grandes, O Som e a Fúria (The Sound and the Fury), de 1929, marcou o início do uso experimental de técnicas para explorar a complexidade psicológica dos seus personagens e suas interações de uma forma mais profunda do que um estilo tradicional de escrita teria permitido.

William Faulkner (1897-1962)
   Enquanto Agonizo (As I Lay Dying), publicado em 1930, é um dos mais vívidos testamentos do poder desse novo estilo, com os parágrafos usualmente complexos e extensos em conexão com uma economia consciente para formar uma trama clara e unificada. Muito desta clareza pode ser atribuída à intensidade da visão de Faulkner para o trabalho e ao planejamento cuidadoso que ele faz antes de se sentar para começar a escrever. Enquanto o autor concebeu muitos dos seus trabalhos de forma dispersa, ele imaginou completamente os conceitos inovadores em Enquanto Agonizo antes do tempo, furiosamente escrevendo suas revelações nas costas de um carrinho de mão virado de cabeça para baixo. Esta organização reflete as grandes esperanças que Faulkner depositou no romance; ele havia se casado recentemente com sua namorada de escola, Estelle Oldham, e esperava que sua saga da família Bundren pudesse finalmente trazer um bom sustento para a sua família e uma maior reputação literária para si mesmo. O resultado é um romance algo ousado, um romance que vai além da perspectiva unificada de um narrador único e fragmenta o texto em cinquenta e nove segmentos, ditados sob quinze diferentes perspectivas. Ao escrever o romance desta forma, o autor requer que os leitores tomem parte ativa em construir a estória, permitindo múltiplas e algumas vezes conflituosas interpretações, e conseguindo esferas notáveis de introspecção psicológica.
   Em Enquanto Agonizo, Faulkner introduz o condado de Yoknapatawpha, uma versão fictícia de sua terra natal, o condado de Lafayette, no Mississippi, e que se torna o cenário de muitos de seus trabalhos mais conhecidos. Os romances que se passam neste condado podem até mesmo ser lidos como uma única e intrincada estória, em que os mesmos lugares, eventos, famílias e pessoas redundam mais e mais. Antes de Faulkner, o Sul dos Estados Unidos era largamente retratado na Literatura Americana como uma terra incrivelmente estrangeira. A complexidade e sofisticação dos romances em Yoknapatawpha mudaram muito esta percepção, e é graças ao autor que o Sul dos EUA é hoje reconhecido como uma das regiões mais prolíficas do país em boa Literatura. Ele ganhou o Nobel de Literatura em 1949 e um par de Pulitzer seguidos, em 1955 e 1962. Ele continuou a escrever no cenário de Yoknapatawpha até sua morte, em seis de julho de 1962, aos 64 anos de idade.
   Na trama, Addie Bundren, a esposa de Anse Bundren e matriarca de uma pobre família do sul, está muito doente e se espera morrer em breve. Seu filho mais velho, Cash, utiliza-se de toda a sua habilidade em carpintaria para preparar um caixão para ela, que ele constrói em frente à janela do quarto dela. Embora a saúde de Addie esteja ruindo rapidamente, dois de seus outros filhos, Darl e Jewel, deixam a cidade para fazer uma entrega para o vizinho dos Bundren, Vernon Tull, cuja esposa e duas filhas são próximos a Addie. Pouco depois de Darl e Jewel partirem para esta entrega, Addie morre. O mais novo dos irmãos Bundren, Vardaman, associa a morte de sua mãe com a de um peixe que ele capturou e limpou mais cedo pela manhã. Com alguma ajuda, Cash conclui o caixão pouco antes do amanhecer. Vardaman está perturbado pelo fato de sua mãe estar pregada dentro de uma caixa, e enquanto os outros dormem, ele confecciona buracos na tampa, dois dos quais em direção ao rosto de sua mãe. A filha de Addie e Anse, Dewey Dell, cujas atividades sexuais recentes com um fazendeiro local chamado Lafe a deixaram grávida, está tão tomada pela ansiedade sobre sua condição que ela dificilmente chora sob o leito de morte de sua mãe. Um serviço de funeral é solicitado no dia seguinte, e mulheres cantam dentro da casa dos Bundren enquanto os homens ficam fora na varanda conversando uns com os outros.

    
   Darl, que narra a maior parte da primeira seção, retorna com Jewel poucos dias depois, e a preseça de urubus sobre a casa os faz perceber que a mãe deles está morta. Ao ver este sinal, Darl sarcasticamente tranquiliza Jewel, que se mostra amplamente ingrato e indiferente, assegurando que seu amado cavalo não está morto. Addie fez Anse prometer que ela seria enterrada na cidade de Jefferson, e embora esta solicitação seja muito mais complicada do que a enterrar ali mesmo, entre eles, o senso de obrigação de Anse, combinado com o seu desejo de comprar uma dentadura falsa, o impele a realizar o desejo de Addie. O caixão é colocado numa carroça, principalmente sob esforços de Jewel, mas este se recusa a ir na carroça, e segue o grupo em seu cavalo, que ele comprou quando era mais jovem secretamente trabalhando durante as noites nas terras do vizinho. Na primeira noite da jornada, os Bundren ficam na casa de uma família local generosa, que encara a missão dos Bundren com ceticismo. Devido à forte inundação, a ponte principal que cruza o rio local ficou submersa, e a família é forçada a dar a volta em uma margem e tentar a travessia por um caminho improvisado. Quando um graveto irrita os cavalos, o caixão é derrubado da carroça, a perna de Cash, antes já ferida, sofre uma fratura e o grupo de mulas se afoga. Vernon Tull vê o naufrágio e ajuda Jewel a recuperar o caixão do rio. Juntos, os membros da família e Tull procuram as ferramentas de Cash pela beira do rio.
   Cora, a esposa de Tull, lembra das inclinações não cristãs de Addie em respeitar seu filho Jewel mais do que Deus. Addie, ela mesma falando do seu caixão ou de um lapso de tempo no passado no seu leito de morte, relembra eventos de sua vida: seu casamento sem amor com Anse, seu envolvimento com um pastor local, Whitfield, que gerou Jewel, e o nascimento de vários de seus filhos. Whitfield se lembra de ter tentado viajar para a casa dos Bundren para confessar seu relacionamento com Addie para Anse mas acaba desistindo por fim. Um veterinário conserta a perna quebrada de Cash, enquanto este suporta a dor sem jamais reclamar. Anse hipoteca seus equipamentos e adquire um novo grupo de mulas, além de ter usado parte do dinheiro que estava guardando para sua dentadura falsa e o dinheiro que Cash estava guardando para um novo gramofone, além de negociar o cavalo de Jewel. A família segue em seu caminho. Na cidade de Mottson, os moradores reagem com horror ao fedor que vem da carroça dos Bundren. Enquanto a família está na cidade, Dewel Dell tenta comprar um remédio abortivo, mas o farmacêutico se recusa a vendê-la e aconselha que ela se case, em vez de tentar abortamento. Com cimento que a família comprou na cidade, Darl cria um molde improvisado para a perna quebrada de Cash, que fica mal acoplada e só faz piorar a dor. Os Bundren acabam passando a noite numa fazenda local de propriedade de Gillespie. Darl, que esteve cético da missão por um bom tempo, põe fogo no celeiro dos Gillespie com a intenção de incinerar o caixão e o corpo apodrecido de Addie. Jewel resgata os animais no celeiro e depois arrisca a própria vida para retirar o caixão de Addie das chamas. Darl chora sobre o caixão de sua mãe.


   No dia seguinte, a família chega a Jefferson e enterra Addie. Em vez de enfrentar uma ação judicial pelo crime de Darl, os Bundren alegam que Darl é louco, e o entregam a um par de homens que o interna numa instituição mental de Jackson. Dewey Dell tenta novamente comprar um medicamento abortivo na farmácia local; nesta, um jovem trabalhador do balcão afirma ser médico e a engana em troca de serviços sexuais - ela recebe medicamentos que logo percebe não se tratarem de medicamentos para abortamento. Na manhã seguinte, os filhos são cumprimentados pelo seu pai, que apresenta uma nova e falsa dentadura e, com uma mistura de vergonha e orgulho, os apresenta a sua nova noiva, uma mulher local que ele encontrou enquanto pedindo pás emprestadas, com as quais cavou o túmulo no qual foi enterrada Addie.
   Quando da análise dos personagens, três merecem destaque. Embora esteja morta a maior parte do romance, Addie Bundren é um dos personagens mais importantes no sentido de que seu desejo pouco ortodoxo de ser enterrada próximo aos seus parentes de sangue mais do que com sua própria família agora constituída está no cerne da estória. Addie, cuja voz é expressa através das memórias de Cora Tull e através de sua própria breve sessão na narrativa, parece ser uma mulher forte e inteligente mas assombrada por um sentimento de desilusão. Incapaz de amar o impotente e grosseiro Anse ou as crianças que ela carregou, Addie entende o amor matrimonial e maternidade como conceitos vazios, palavras que existem somente para preencher vazios nas vidas das pessoas. Após carregar um segundo filho de Anse, Addie expressa pela primeira vez seu desejo de ser enterrada longe, constatando sua crença de que a 'razão de viver é estar pronta para ficar morta por um longo tempo'. O pequeno valor que ela realmente encontra na vida, do seu pequeno romance com Whitfield e seu amor por seu filho Jewel, termina numa nota mórbida. Jewel trata Addie duramente enquanto ela está viva, e somente quando ela está morta é que 'ele a salva do fogo e da água', como ela sempre acreditou que ele faria. Addie investe sua vida e sua energia em um amor que encontra correspondência e frutifica somente após ela ter morrido. Enquanto cadáver, Addie é igualmente importante no romance, dificultando a situação de sua família e a dividindo da mesma forma que enquanto estava viva. Muitos dos incidentes após a sua morte refletem a sensação de que parte de Addie permanece viva. Vardaman faz buracos no caixão para que Addie possa ter ar para respirar, e quando Darl e Vardaman escutam o barulho do corpo em decomposição, Darl afirma que estes sons são Addie falando. Mesmo o odor do seu corpo em decomposição cativa uma grande quantidade de estranhos. A noção de que há continuidade entre a voz humana articulada da Addie viva e a massa biológica pútrida que é a Addie morta está entre as ideias mais emocionalmente poderosas presentes no romance.

Addie Bundren
   Outro importante personagem é Darl Bundren. Este, que fala em dezenove das cinquenta e nove seções do romance é, de muitas formas, o personagem mais 'cerebral'. O jeito que ele tem para a análise de situações e para descrições poéticas significa que sua voz se torna a coisa mais próxima que a estória poderia oferecer como guia, uma espécie de narrador subjetivo. Entretanto, é esta mesma natureza intelectual que o impede de atingir tanto o heroísmo chamativo de seu irmão Jewel quanto a lealdade no autosacrifício de seu outro irmão, Cash. De fato, impede que Darl acredite de todo o coração na missão da família. Ele registra sua objeção ao 'passeio do enterro' no momento em que aparentemente abandona o caixão de sua mãe durante a travessia do rio e ao iniciar o incêndio no celeiro de Gillespie com o cadáver de oito dias de sua mãe dentro. Outra consequência da natureza filosófica de Darl é sua alienação sob a perspectiva da comunidade ao redor dele. De acordo com Cora Tull, as pessoas o acham estranho e inquieto. Ele também é capaz de compreender informações privadas sobre as pessoas ao seu redor, como por exemplo quando ele adivinha a aventura de sua irmã Dewey Dell com Lafe ou percebe que Anse não é o pai verdadeiro de Jewel. Algumas vezes, Darl é quase um clarividente, como fica evidente pela cena em que ele é capaz de descrever vividamente a morte da mãe mesmo estando com Jewel longe do local em que ela morre. Outros personagens alienam Darl por medo de que ele se aproxime muito deles e de seus segredos. É talvez este medo, mais do que o ato do incêndio criminoso de Darl, que leva sua família a interná-lo num asilo de insanidade ao final do romance - depois de tudo, Dewey Dell, que percebe que Darl sabe de seu segredo, é a primeira a contê-lo quando os funcionários do asilo chegam a eles.

Darl Bundren
   Um último personagem que merece destaque é Jewel Bundren. Este fala muito pouco ao longo do romance, sendo mais definido por suas ações, enquanto descrito sob os olhos dos outros personagens. A natureza pouco comunicativa de Jewel cria uma grande distância entre ele e o interlocutor, e grandes discussões existem para debater o significado das suas ações. As frequentes descrições de Jewel como 'madeira' por parte de Darl reforça a imagem daquele como impenetrável aos outros, e também estabelece uma relação entre Jewel e o caixão de madeira que vem para simbolizar sua mãe. Se Jewel corresponde ou não às devoções de sua mãe também é outro grande ponto de discussão; seu comportamento em relação a ela enquanto está viva parece insensível. Até mesmo quando Addie está no seu leito de morte, Jewel se recusa a dar adeus a ela, e desde o início duramente assegura sua independência com a compra de um cavalo. As ações de Jewel após a morte de Addie, entretanto, mostram que ele é bastante cuidadoso com ela, já que acaba fazendo grandes sacrifícios para assegurar a segurança no caminho do cadáver dela em direção ao lugar desejado para ser enterrado, até mesmo concordando em vender seu adorado cavalo. De forma semelhante, a frieza e os hábitos ásperos em relação aos demais membros da família contrastam fortemente com a devoção heroica que ele demonstra em suas ações, como quando procura valentemente pelas ferramentas de Cash após a travessia do rio e como quando quase chega às vias de fato com um estranho que ele acredita ter insultado a família (quando estão chegando em uma das outras cidades). Em geral, Jewel é um homem de ações solitário e independente, e estas características o colocam em relação antagonista com o introspectivo Darl.

Anse Bundren (à esquerda) e Jewel Bundren (à direita)
   Quanto aos temas, podem-se destacar alguns deles. A impermanência da existência e da identidade seria um deles; a morte de Addie Bundren inspira muitos personagens a lutarem com perguntas sobre a existência e identidade. Vardaman está perplexo e horrorizado com a transformação de um peixe que ele capturou, limpou e preparou, dividindo o peixe em 'pedaços de não-peixe' e associa esta imagem com a transformação de Addie de uma pessoa em uma 'não pessoa' indefinida. Jewel nunca fala por si mesmo, mas sua dor é resumida por Darl, que afirma que a mãe de Jewel é um cavalo. Da sua parte, Darl acredita que, desde a morte, Addie é agora melhor descrita como 'era' em vez de 'é'; assim, deve ser o caso de que ela não mais existe. Se sua mãe não mais existe, Darl não tem mãe e, por implicação, não mais existe. Estas especulações não são meros jogos de linguagem e lógica; mais do que isto, elas têm consequências tangíveis e mesmo terríveis para os personagens do romance. Vardaman e Darl, os personagens para quem estas questões são mais urgentes, acham sua crença na realidade mais enfraquecida, já que possuem tais inquirições. Vardaman balbucia sem sentido no início do romance, enquanto Darl é declarado insano ao longo do tempo. A fragilidade e incerteza da existência humana é posteriormente ilustrada ao fim do romance, quando Anse apresenta sua nova esposa como senhora Bundren, um nome que, até recentemente, pertencia a Addie. Se a identidade da senhora Bundren pode ser usurpada tão rapidamente, a conclusão inevitável é que qualquer identidade é igualmente instável.
   Outro tema é o da tensão entre as palavras e os pensamentos. A assertiva de Addie de que 'palavras são apenas palavras', perpetuamente inferindo algo que está aquém das ideias e emoções que expressam, reflete a desconfiança com que o romance como um todo trata a comunicação verbal. Enquanto os monólogos interiores que compõem o romance demonstram que os personagens apresentam vidas interiores mais ricas, muito pouco do conteúdo destes monólogos são, alguma vez, transmitidos em comunicação entre os indivíduos. Na verdade, os diálogos tendem a ser concisos, hesitantes e irrelevantes em relação ao que os personagens estão pensando naquele momento. Quando, por exemplo, Tull e alguns outros indivíduos locais estão conversando com Cash sobre sua perna quebrada durante o funeral de Addie, nós somos apresentados a duas conversas inteiramente separadas; uma, escrita normalmente, é vaga e simples e, provavelmente, a conversa que realmente está acontecendo; a outra, escrita em itálico, é muito mais rica em conteúdo e presumidamente a conversa que os personagens teriam se realmente falassem com suas mentes. Todos os personagens protegem ferozmente seus pensamentos, de modo que o conteúdo rico destes pensamentos é transmitido apenas pobremente ou vagamente no diálogo, o que, por sua vez, leva a uma série de mal-entendidos e falhas de comunicação.


   Um último tema que merece destaque é o da relação entre a gravidez e a morte. O livro se trata visivelmente de um romance cínico, e ele rouba mesmo do nascimento os seus poderes reabilitativos usuais. Em vez de funcionar como um antídoto à morte, o nascimento parece ser uma introdução a ela, tanto para Addie quanto Dewey Dell, e dar à luz parece ser um fenômeno que mata as pessoas mais próximas a ele, até mesmo se elas estão fisicamente ainda vivas. Para Addie, o nascimento de seu primeiro filho parece ser um truque cruel, uma infração à sua preciosa solidão, e é o nascimento de Cash que primeiro leva Addie a tratar com Anse da morte. O nascimento se torna, para Addie, uma obrigação final, e ela encara os nascimentos de Dewey Dell e Vandarman como reparações ao romance que levou à concepção de Jewel, como os últimos débitos que precisa pagar em vida antes de se preparar para a morte. Os sentimentos de Dewey Dell com relação à gravidez não são mais positivos: sua condição se torna uma preocupação constante, fazendo com que ela veja todos os homens como predadores sexuais em potencial. O nascimento parece prescrever uma morte para as mulheres e, por conseguinte, a morte metafórica de todos os seus lares.
   Quanto aos motivos, também podemos destacar três. Os atos de heroísmo sem sentido podem ser encarados como o primeiro deles. O romance é preenchido por momentos de grande heroísmo e de lutas quase épicas, mas a abordagem que o romance apresenta nestas batalhas é no máximo irônica, e algumas vezes os faz parecer absurdos e mundanos. O esforço dos Bundren para atravessar o rio com o caixão é uma luta que poderia muito bem estar presente em algum romance de aventura mais convencional, mas se torna prejudicada pelo fato de ocorrer por um propósito questionável. Poder-se-ia argumentar, por exemplo, que a missão de enterrar Addie em Jefferson se trata tanto de se conseguir a dentadura falsa de Anse como dos desejos de Addie. O martírio de Cash parece nobre, mas sua tolerância sem reclamações com relação à dor de seus ferimentos acaba se tornando mais ridícula que heroica. O resgate do rebanho por parte de Jewel é ousado, mas também acaba anulando a queimada do celeiro por parte de Darl, o que, enquanto criminoso, poderia ser visto como o ato mais ousado e nobre de todos. Cada ato de heroismo, se não ridículo em si mesmo, neutraliza um ato igualmente épico, um ciclo vicioso que dá um caráter de absurdo que é tanto cômico quanto trágico ao romance.
   Um segundo motivo seriam os monólogos interiores. Faulkner estava embarcando em técnicas narrativas experimentais da mesma forma que muitos escritores modernistas do início do século XX, explorando mais a consciência individual do que a trama e desencadeamento dos eventos para criar uma estória. Dois outros gigantes da Literatura Universal tiveram sucesso neste tipo de experimentação: James Joyce, em Ulysses, e Marcel Proust, na sua obra Em Busca do Tempo Perdido; mas Faulkner também contribuiu sobremaneira neste movimento. Enquanto Agonizo é escrito como uma série de monólogos de fluxo de consciência, em que os pensamentos dos personagens são apresentados em todo o caos sem censura do pensamento, sem a presença organizadora de um narrador objetivo. Esta técnica transforma a parte psicológica do personagem numa preocupação dominante e isto torna possível apresentar esta psicologia como algo muito mais complexo e com mais autoridade do que um estilo narrativo mais tradicional. Ao mesmo tempo, força o interlocutor a ter também trabalho na leitura do texto no sentido de absorver toda a compreensão do que está escrito; assim, o leitor de Faulkner é alguém que trabalha também na busca do entendimento da leitura, e não alguém que somente espera que a estória seja absorvida facilmente. É, portanto, alguém ativo, e não passivo. Em vez de ser apresentado um quadro objetivo de eventos, em algum lugar na confusão de imagens, memórias e alusões inexplicadas, o interlocutor é forçado a pegar cada pedaço que um personagem dá e criar algo disto por si.


   Um último motivo é a questão das classes sociais. No Sul dos EUA, onde Faulkner viveu e escreveu, as classes sociais eram uma questão mais hierárquica e de maior preocupação do que em qualquer outro lugar do país, e é claramente enraizado na construção do texto de Enquanto Agonizo. O autor provou ser incomum com sua habilidade retratar o povo rural pobre com graça, dignidade e grandeza poética sem esvaecer ou ignorar suas circunstâncias. Os Bundren encontram pessoas dispostas e mesmo graciosas na vizinhança rural, mas sua recepção em cidades maiores é fria na melhor das hipóteses: um xerife diz que o cadáver cheira muito mal para que eles permaneçam na cidade, um cidadão puxa uma faca para Jewel e o balconista toma vantagem inescrupulosa com relação a Dewey Dell. Por outro lado, a despeito de sua pobreza gramatical e vocabulário limitado, os personagens de Faulkner expressam seus pensamentos com uma espécie de rebuscamento poético. Exatamente que intenções teve o autor para a sua família de personagens sulistas não é clara - Enquanto Agonizo pode ser lido tanto como um tributo comovente aos valores rurais como um análise mordaz dos sulistas, mas a atmosfera em que se inserem os Bundren sem dúvida molda a jornada deles e as interações que apresentam ao longo do caminho.
   Com relação aos símbolos, também podemos destacar três. Os animais são claramente um deles. Pouco depois da morte de Addie, os filhos Bundren fazem analogia de animais com sua falecida mãe. Vardaman declara que sua mãe é o peixe que ele capturou. Darl assegura que a mãe de Jewel é o cavalo deste. Dewey Dell chama a vaca da família de mulher enquanto ela pondera sobre sua gravidez alguns minutos após perder sua mãe, sua única parente feminina. Por diferentes razões, os personagens angustiados apreendem em animais emblemas de suas próprias situações. VardamanAddie em seu peixe porque, como este, ela foi transformada em algo diferente do que ela era quando estava viva. A vaca, inchada com bastante leite, significa a Dewey Dell o desprazer de carregar algum fardo não desejado. Jewel e seu cavalo adicionam um novo significado ao uso dos animais como símbolo. Para nós, baseado nas palavras de Darl, o cavalo é um símbolo do amor de Jewel por sua mãe. Para Jewel, entretanto, o cavalo, baseado nas suas andanças nele, aparentemente simboliza uma liberdade conquistada com bastante esforço em relação à família Bundren. Isto que podemos desenhar como tão diferentes conclusões dos personagens do romance faz do cavalo, de muitas maneiras, representativo da natureza imprevisível e subjetiva dos símbolos em Enquanto Agonizo.
   Outro símbolo seria o caixão de Addie. Este representa, literalmente, o enorme fardo de disfunção que a morte de Addie, e as circunstâncias em geral, coloca na família Bundren. Cash, sempre calmo e equilibrado, fabrica o caixão com grande esmero e cuidado, mas os absurdos advêm quase imediatamente - Addie é colocada no caixão de cabeça para baixo, e Vardaman faz buracos na região do caixão em que está seu rosto. Como a vida dos Bundren, o caixão é jogado para fora do equilíbrio pelo cadáver de Addie. O caixão se torna o ponto de encontro para toda a disfunção da família, e colocá-lo para repousar é também crucial para que a família retorne para um pouco de normalidade.
   Um último símbolo são as ferramentas, na forma do material de carpintaria de Cash e dos equipamentos da fazenda de Anse; elas se tornam símbolos de uma vida respeitável e de estabilidade colocadas em perigo pela imprudência da jornada dos Bundren. As ferramentas de Cash parecem ter algum significado para ele somente, mas quando estas ferramentas são espalhadas pelo rio corrente, toda a família, e mesmo Tull, se unem para recuperá-las. Os equipamentos de Anse são dificilmente mencionados, mas acabam desempenhando um papel importante na jornada dos Bundren quando Anse acaba hipotecando as partes mais caras deles para comprar um novo grupo de mulas. Esta transação é significativa, já que o dinheiro guardado para a compra de um gramofone furtado de Cash por Anse e a venda do cavalo de Jewel representam um sacrifício dos maiores sonhos destes personagens. Mas o fato de Anse depositar importância nos seus equipamentos de fazenda não deve ser negligenciado, já que estes garantem o sustento da família. Em um esforço para salvar a viagem do enterro, Anse põe em perigo os equipamentos de que a família se utiliza para trabalhar a terra e sobreviver.


 
   Em 2013, o ator e diretor James Franco fez uma adaptação do livro para o cinema. Homônimo no inglês, As I Lay Daying (em português traduzido como Último Desejo) é magistralmente adaptado. Se for consultado o IMDb, a nota média do filme é 5,5. Não se deixe enganar, pois o filme não é bem uma adaptação do livro, mas o livro em si. Ao se fazer a leitura do livro, o filme é quase que um breve resumo da leitura para a fixação e contemplação dos fluxos de consciência e dos monólogos no livro. O problema é que, a exemplo da leitura, que necessita de um leitor ativo, o filme tem essa mesma exigência... Assistir ao filme pensando em um lazer sem compromisso talvez não funcione, por isto, talvez não agrade ao grande público. Mas é, sem dúvida alguma, um filme consistente para os que admiram o trabalho de Faulkner. Vale muito a audiência.



   Por fim, ao mostrar a importância da morte na vida de todos nós, e as repercussões ainda em vida do término da existência, tem-se plena consciência do poder do livro, como que a fazer a consciência martelar todo o tempo que a vida não acaba com a morte. Parece haver uma consciência que transcende mesmo após o fim de tudo, fazendo uma bela conexão com a vida que continua - e isto, Faulkner executou com maestria ao escrever este romance. Obra prima sem dúvida!!!

domingo, 15 de junho de 2014

Luz em Agosto

  Tenho tentado descobrir o que me levou a ter um interesse tão consistente pelo premiado autor William Faulkner. Os cenários contrastantes e na maioria das vezes interioranos, com discussões importantes sobre a vida, sobre os limites humanos, além de uma linguagem que exige muito trabalho do interlocutor, mesmo em relação à trama, me lançaram uma espécie de desafio, como se fosse uma nova esfera de compreensão. Chamou-me a atenção imediatamente um conto apresentado pelo meu mentor, Francisco Escorsim, intitulado 'Uma Rosa para Emily'; a atmosfera gótica me absorveu completamente. Desde então, é uma questão de respeito às letras dedicar-me ao estudo de sua obra. E vou fundo...
   Ao longo de uma carreira de quase quatro décadas, William Faulkner gozou de uma das reputações mais estimadas entre os romancistas do século XX. Nascido em Nova Albânia, Mississippi, em 1897, ele é mais conhecido por uma série de romances que explora o legado histórico do Sul dos Estados Unidos da América, a tensão e muitas vezes violência presentes no meio e seu futuro incerto. Grandes obras suas com esta temática são O Som e a Fúria (1929), Enquanto Agonizo (1930), Luz em Agosto (1932) e Absalão, Absalão! (1936), todas ambientadas no condado ficcional criado pelo autor, Yoknapatawpha, no Mississippi. Ao criar um ambiente imaginado, Faulkner permite que seus personagens habitem um mundo que serve de espelho para um microcosmo do Sul daquele país. O condado lendário funciona como uma lente segura e distante, ainda que magnificando, através da qual ele examina as práticas, costumes e atitudes que dividiram e reuniram os povos do Sul desde o início da nação. Enquanto as estórias de Faulkner se desdobram, seus personagens tentam suprir uma existência emocional, mas a pobreza, o racismo, a violência, a falta de educação, entre outros fatores, conspiram para entrelaçar suas vidas com tragédia. Faulkner estava interessado, particularmente, nas implicações morais da estória, descrevendo um tempo no qual o Sul estava emergindo da Guerra Civil e da Reconstrução e tentava se livrar do estigma da escravidão. Ele retrata os habitantes do Sul como envolvidos em modos que competem e evoluem, divididos entre uma ordem mundial mais nova e outra mais velha mais tenazmente enraizada. Religião e Política frequentemente estão aquém de seus objetivos implícitos de promover ordem e guia, e servem apenas para complicar e dividir. Enquanto isto, a sociedade, uma entidade repressiva se não asfixiante, com suas fofocas, julgamentos e duros pronunciamentos, conspira para frustrar os desejos e ambições de indivíduos lutando para descobrir e abraçar suas identidades. Através dos cenários ficcionais do autor, os indivíduos frequentemente vivenciam batalhas épicas, impedidos de realizar seus potenciais ou estabelecer um senso firme de afirmação de seu lugar no mundo.

William Faulkner (1897-1962)
   Como faz em muitos de seus romances, Faulkner desenvolve uma abordagem modernista decidida em 'Luz em Agosto', abandonando uma estória linear convencional e contando o interior e motivação dos personagens.  Durante um breve e fatídico período de tempo no mês do título do livro, as vidas de vários personagens se sobrepõem e sofrem uma intersecção na cidade de Jefferson, Mississippi. Ao longo do caminho, o tempo é fraturado, contraído, alongado e manipulado enquanto eventos são recontados sob uma nova perspectiva, e então revisitados sob um ângulo inteiramente novo, integrando-se à complexidade do ponto de vista de um outro personagem, com frequência aparentemente não relacionado. Em última análise, a abordagem de nenhum dos personagens emerge como a confiável ou completa; em vez disto, uma multiplicidade de vozes subjetivas emergem, dissecando e relacionando eventos algumas vezes erroneamente ou de forma enviesada. De forma similar, Faulkner se abstém de usar uma voz narrativa singular e unificada. Suas sentenças longas e sinuosas tentam reproduzir os saltos erráticos de seus personagens, frequentemente por meio de padrões de fluxo de consciência. Ele emprega coloquialismos, dialetos regionais, palavras compostas de sua própria invenção, monólogos, pensamento inconsciente, entre outros, para criar um mundo complexo e ricamente texturizado, tão variado e incontrolável como o mundo em si. 
   'Luz em Agosto' está mergulhado em violência, preocupado com as distorções e distrações da religião e do racismo, talvez influenciado pelo fato de que Faulkner tenha iniciado o romance logo após sua esposa, Estelle, ter dado à luz uma filha que faleceu alguns dias após o nascimento em janeiro de 1931. Usando o título de 'Dark House' (Casa Escura), Faulkner explorou e sondou os espaços interiores frequentemente escurecidos de seus personagens, feridos de várias formas por suas incursões no mundo. Perseguidos pela culpa, vergonha e humilhação, eles se esforçam (alguns sem sucesso, outros com sucesso, e ainda outros para nada) para alcançar o perdão, a salvação e um lugar para chamar de seu.


   Na trama, Lena Grove, uma gestante adolescente, segue rumo ao Mississippi em busca do pai de seu filho. Ela pega carona até a pequena cidade de Jefferson, lugar onde se localiza uma serralheria. Um dos trabalhadores da fábrica, Joe Christmas, é um homem taciturno, racialmente ambíguo, e que aparece de repente na fábrica um dia em busca de trabalho. Após ganhar o emprego, logo ele se junta a outro empregado da fábrica, Joe Brown. Os dois formam uma parceria, fabricando e vendendo bebidas alcoólicas ilegalmente, e acabam, com o tempo, deixando o emprego na fábrica. Outro dos trabalhadores, Byron Bunch, fica intrigado e inquieto quando Lena Grove repentinamente aparece na fábrica um dia. Ele conta ao antigo e desonrado reverendo da cidade, Gail Hightower, dos seus esforços para cuidar da menina. Logo, Lena percebe que o homem que ela procura, o pai de seu filho (Lucas Burch), é, na verdade Joe Brown. À época da chegada de Lena à cidade, Brown é detido na cadeia após o assassinato de uma mulher local, Joanna Burden, e o incêndio de sua casa. Joe Christmas, o amante ocasional da senhora Burden, é o principal suspeito.
   A narrativa, então, toma vários caminhos, explorando o passado de vários dos personagens. Como um jovem reverendo, Gail Hightower, assegura uma igreja em Jefferson para alimentar sua obsessão por seu avô, um confederado da cavalaria que foi morto na cidade durante a Guerra Civil. A jovem esposa de Hightower é infiel e apresenta problemas mentais. Ele acaba falecendo em uma queda da janela de um hotel de Memphis, onde se encontrava com outro homem. Um escândalo se instala, e os paroquianos o associam ao reverendo, que é forçado a demitir-se do cargo.
   Enquanto criança, Joe Christmas é deixado na escada de um orfanato. Quando uma nutricionista do lugar acredita, erroneamente, que Joe a ouviu realizando atividade sexual com um jovem médico no quarto dela, ela teme perder o emprego. Para eliminar este risco, ela ameaça expôr a origem birracial de Joe e, assim, que seja transferido para um orfanato só para crianças negras. Ela discute o plano com o zelador do orfanato, que sequestra Joe e o leva para Little Rock, onde ele é encontrado e devolvido, conseguindo ser adotado duas semanas depois por um severo homem religioso, o senhor McEachern, e por sua esposa. O novo pai adotivo de Joe o submete a espancamentos regulares. Na medida em que Joe cresce e entra na puberdade, ele acaba cruzando o caminho de Bobbie, uma prostitua que trabalha como garçonete numa cidade próxima. Quando o senhor McEachern encontra seu filho dançando com Bobbie, uma luta se inicia, e Joe acaba matando seu pai adotivo golpeado sua cabeça com uma cadeira. Abandonado por Bobbie e pelos próximos a ela, Joe abraça uma vida de fuga e segue vagando por mais de quinze anos, acabando, por fim, se instalando em Jefferson. Nesta cidade, Joe fica numa cabana na propriedade de Joanna Burden, e os dois, rapidamente, tornam-se amantes. A relação deles é marcada por paixão, violência e longos períodos em que ambos se ignoram. A senhora Burden quer um filho e deseja engravidar, mas Joe é fortemente contra esta ideia. Depois de um tempo, Joe Brown vem viver com Joe Christmas na cabana. A senhora Burden tenta ajudar Joe Christmas financeiramente, mas sua intromissão apenas provoca a ira neste. Uma noite, ele selvagemente a ataca e a mata com uma lâmina depois de ela tentar atirar com uma pistola contra ele numa aparente tentativa de assassinato seguido de suicídio. O sobrinho da senhora Burden, em New Hampshire, oferece uma recompensa de mil dólares pela captura do assassino de sua tia. Grupos de busca saem à caça de Joe Christmas, que evita a captura por dias, fugindo ao ponto de passar fome e atingir a exaustão. Lena, nesse ínterim, muda-se para o interior da cabana em que os dois Joes vivem na tentativa de se preparar para o nascimento do seu filho; Byron Bunch fica numa tenda por perto.
   Joe Christmas é apreendido nas ruas da vizinha Mottstown. Seu avô materno biológico, o tio Doc Hines, passa pela multidão e amaldiçoa Joe, pedindo pela sua morte. Quando os oficiais de Jefferson chegam para pegar o prisioneiro, a senhora Hines também atravessa a multidão esperando ver o rosto do neto que o marido disse ter morrido enquanto criança. Os Hines, então, tomam o trem para Jefferson juntos. Byron e os Hines chegam à casa de Hightower e é revelado que o pai de Joe Christmas era um trabalhador de circo que tentou fugir com a filha dos Hines antes de o tio Doc atirar e matá-lo. O tio Doc acabou colocando o bebê no orfanato em Memphis onde ele trabalhou como um zelador. Byron quer que Hightower minta e afirme que Joe Christmas esteve com ele, em sua casa, na noite em que Joanna Burden foi assassinada. Hightower fica com raiva e pede que todos saiam. Lena entra em trabalho de parto, mas no momento em que Byron chega com o médico, Hightower já fez o parto. Assistindo ao parto está a senhora Hines, que erroneamente acredita que Lena é a sua filha morta há tempos, Milly, e que o recém-nascido é seu neto, Joe Christmas. Byron faz com que Joe Brown esteja na cabana com Lena; ao chegar lá, ele fica chocado ao ver Lena segurando o seu filho recém-nascido, pula uma janela dos fundos e foge. ByronBrown fugir e tenta impedi-lo, mas este, sendo bem mais forte que aquele, o espanca e foge num trem. Joe Christmas, neste ínterim, escapa de seus captores enquanto está sendo levado através da praça da cidade. Em pouco tempo, ele é perseguido, baleado e castrado na cozinha de Hightower por um caçador de recompensas: Percy Grimm. Depois, o envelhecido Hightower reflete em seu passado e se prepara para a própria morte. Depois de uma viagem pela estrada, um trabalhador local perto de Jefferson conta à sua esposa como ele deu carona a um curioso casal - uma mulher com um recém-nascido acompanhado por um homem que não era o pai da criança. O casal, Lena e Byron, não se entusiasmavam enquanto buscavam o pai biológico do bebê, e o trabalhador os levava ao longo do Tennessee.


   Como disse uma vez Faulkner em uma entrevista, o que mais o fazia se lembrar das obras dos grandes autores eram os personagens, e não os títulos ou tramas; assim, algo que sempre merece bastante discussão e análise são os personagens principais em suas obras. O protagonista de Luz em Agosto, Joe Christmas, é, também, um dos mais enigmáticos em todos os romances do autor. Um homem irritado, ele é uma sombra que caminha à margem de dois mundos, não pisando suavemente e nem confortavelmente o mundo dos negros e nem dos brancos. Em sua primeira aparição, ele provoca a curiosidade de parte dos trabalhadores da fábrica, acompanhada do desprezo pela sua indiferença presunçosa. Embora Faulkner apresente muitos detalhes da vida e do caráter de Joe ao longo do romance, este permanece distante, fechado e indescritível. Na fábrica, ele é uma espécie de lousa em branco, em que os outros trabalhadores projetam seus preconceitos tentando definir quem verdadeiramente seria o homem misterioso; muitos acreditam que ele vem de uma país distante e desconhecido. Várias correlações soltas conectam a vida de Joe Christmas à de Jesus Cristo. Os dois compartilham as mesmas iniciais; Joe foi deixado nos degraus do orfanato no natal e foi assassinado quando tinha trinta e poucos anos. Estas sugestões de similaridade, entretanto, são soltas, permitindo a Faulkner complicar e escurecer a natureza moral do protagonista. A caracterização que o autor dá à Joe desafia e definitivamente subverte qualquer comparação cristã. Qualquer tentativa de visualizar Joe como um mártir é complicada por sua vida de violência e seu desprezo geral pela humanidade. Ele surge como um anti-herói moderno classicamente falho e conflituoso. Um indivíduo sem identidade, sem ter consciência do seu nome de nascimento, muito menos de sua herança racial, ele vaga numa busca fútil por lugares aos quais possa pertencer. Enquanto a vida de Cristo inspira louvor, a de Joe gera pouca simpatia por parte daqueles ao seu redor. As condições sombrias que envolvem sua formação explicam pouco sua necessidade compulsiva de infligir dano a outros (em dois casos, a ponto de causar a morte). A tentativa de Joe de recuperar e estabelecer sua identidade no mundo é marcada por um desdém pelas pessoas que poderiam possivelmente provê-lo o conforto que procura.
   Superficialmente, à luz das referências suaves às imagens bíblicas que Faulkner utiliza no romance, Lena Grove sugere Maria se dirigindo a Belém - mas Maria como uma adolescente perdida e com 'olhos arregalados'. Em vez de um estábulo, ela dá à luz um filho numa cabana rústica, eventualmente seguindo junto com o seu José substituto, Byron Bunch. Mas, é aí que a comparação termina: mais do que tudo, Lena pode ser vista como uma simples personificação da força vital do romance. Enquanto Joe traz violência e morte a Jefferson, Lena traz o seu filho em gestação e uma forte determinação em encontrar o pai de seu filho. Ela substitui Joe e suplanta a sua presença no romance, dando à luz seu filho num berço dentro de um abrigo simples que antes havia sido o lar dos dois Joes criminosos. Enquanto Joe Christmas é a figura trágica clássica de Faulkner, condenada a lutar e falhar, Lena Grove representa um outro tipo do autor, frequentemente reservado a figuras femininas em seus mundos fictícios. Ela é 'o andarilho', a jovem inocente, que crê na sua determinação para legitimar seu bebê. Lena é uma sobrevivente, ainda que ela não lute contra os desafios e privações que ela enfrenta. Ao mesmo tempo, ela não permite que a sua pobreza, inocência e falta de instrução conspirem contra ela. Ela aceita o sofrimento com pouca resistência, enfrentando-o de frente, suportando-o e, depois, seguindo em frente. Suas andanças enquadram a narrativa: no começo, ela entra em Jefferson sozinha; a seguir, em sua breve e simbólica escalada, o nascimento de seu filho oferece um breve vislumbre de esperança para uma cidade marcada por assassinatos e discórdia racial. Lena então ganha a estrada de novo, acompanhada por seu filho e um protetor e admirador mais velho, abraçando a liberdade que uma vez marcou os anos de andanças de Joe Christmas.


   Outro personagem importante no romance é o Reverendo Gail Hightower. Muito de sua caracterização envolve sua peculiar e obsessiva fixação na unidade de cavalaria Confederada de seu avô. Embora a poeira e os trovões que a unidade despendeu tenham passado há muito tempo, o barulho dos cascos dos cavalos e o clamor ainda ecoam na memória de Hightower. Eles servem como um poderoso lembrete das relações difíceis que os humanos têm com o passado - sua carga e onipresença. Através de Hightower, o passado se torna uma entidade viva e que nunca é esquecida ou deixada para trás. Suas lições duras também nem sempre são aprendidas, como a violência e a divisão racial que assola Jefferson e seus arredores quase tão profundamente como na época da Guerra Civil. A vida de Hightower se torna um lembrete desagradável de que, para muitos, não há recomeço, não há esperança para uma nova direção ou mudança. O comportamento errático de sua esposa, com o consequente suicídio, dispara um processo de declínio gradual, enquanto Hightower carrega a culpa e o estigma do escândalo. Ele se pune, e a comunidade em sua maioria também o pune, por se recusar a admitir a derrota completa em deixar a cidade após ter sido afastado de suas atividades. À luz do revés pessoal e da decepção inesperada, a sua vida representa um testamento da reafirmação da dignidade e orgulho humanos. O orgulho assume um duplo significado nas reflexões de Hightower; ele tenta recuperar o orgulho de si mesmo, seu auto-respeito e autoestima, enquanto resistindo à vaidade, uma resistência orgulhosa contra as fofocas e rumores que correm pela comunidade. Em suas reflexões e ruminações, ele surge como um centro moral e filosófico do romance. Em meio às tragédias e circunstâncias que marcaram sua vida, ele é capaz de salvar a maior força: o autoconhecimento e a sabedoria. Ao longo do curso de sua vida, ele também é capaz de confrontar e fazer descansar os fantasmas da família e o legado de seu passado doloroso, que ainda o assola.
   O último personagem que merece menção é Byron Bunch. Inerte, desgastado por anos de maçante rotina e por trabalhar seis dias por semana, ele vive em um mundo ilhado projetado no sentido de evitar qualquer emaranhamento pessoal, emocional ou de outra natureza. Quando Lena chega à fábrica em Jefferson, sua situação desencadeia uma espécie de instinto em Byron para alcançar e, finalmente, se envolver com outra pessoa. Não há dúvida de que Byron é um homem bom: ele vive honestamente, de forma íntegra e dirige um coral numa igreja rural aos domingos, retornando ao início de suas atividades de trabalho na manhã do dia seguinte. Mas sua boa vida, regrada, é conseguida através de uma vida sob regime de liberdade de qualquer tentação ou desafio. Ele viveu moralmente evitando qualquer engajamento com o mundo ao seu redor. Seu envolvimento crescente com Lena tem paralelo com um despertar gradual nele enquanto ele tenta se transformar a partir do homem que ele era - o homem que protegeu a si mesmo tão rigorosamente de experimentar a dor, o sofrimento ou o conflito. A amizade de Byron com Hightower não apenas provê uma fonte de inspiração e desafio muito necessários como também adiciona uma nova camada de complexidade moral e filosófica em sua vida. Byron procura o seu amigo para aconselhamento e sabedoria e, por sua vez, acaba revelando seus desejos e intenções através de seus diálogos com o ministro destituído. Hightower lança dúvida na pureza dos sentimentos de Byron em se lançar desinteressadamente para ajudar Lena e questiona sua suposta falta de motivo em melhorar a sua situação posteriormente. Byron é forçado a resolver seus sentimentos por Lena, confrontando tanto a opinião pública como seu próprio egoísmo, concluindo, no final, que ele é um homem honrado que escolheu viver de modo mais engajado e presente. O desejo de Byron de enfrentar Joe Brown, de apanhar de um homem mais forte, é uma espécie de despertar visceral de que ele necessita. Isto revela, em última análise, sua constatação em se envolver na vida de outra pessoa e seu desejo de arriscar sofrer danos pessoais. Byron está determinado a permanecer ao lado de Lena e lida com as emoções conflituosas e vulnerabilidades que experimenta ao amar outra pessoa. No fim, ele pode ainda ter muito a aprender quando se trata de cortejar e cuidar de Lena, mas ele conseguiu encontrar, finalmente, uma liberdade e um propósito para a sua vida, até então ignorada e evitada.


   Tratando dos temas do romance, tecerei comentários sobre alguns deles. O primeiro que merece destaque é a questão do peso do passado. A história, no sentido amplo do termo e também no sentido da história pessoal, toma grandes proporções em Luz em Agosto. A senhora Burden e o reverendo Hightower herdam um legado complexo de orgulho familiar, conflito e vergonha. A senhora Burden vive sua vida como um sacrifício pessoal a uma causa, sentindo uma obrigação de honrar o compromisso de sua família com a abolição e com a igualdade com os negros. É irônico que sua caridade em si cause sua ruína, já que o homem que ela tenta ajudar, Joe Christmas, brutalmente a assassina quando ele se ressente e se sente ameaçado pelo impulso paternalista dela em controlá-lo e melhorá-lo. O reverendo, enquanto isto, está preso no passado, dividido entre a imagem romântica de seu avô, o heroico cavaleiro morto enquanto roubava galinhas, e de seu pai pacifista. Sua relação não resolvida com sua história pessoal compromete sua efetividade como líder espiritual e como marido, e desempenha um papel na sua excomunhão. Joe Christmas está no lado contrário: ele é um homem sem história, além da reserva pessoal de memórias que formam um padrão doloroso de violência, abuso e negligência, tanto autoinfligidos como chegam a ele por meio daqueles envolvidos em cuidar dele. O passado, do qual ele pessoalmente não tem consciência, prova ser uma força muito poderosa de se escapar ou resistir. A natureza misantropa e homicida dele é parcialmente explicada quando sua origem começa a se tornar clara. O avô que ele conhecia apenas como o zelador do orfanato prova ter muito em comum com o neto. Ambos são violentos e propensos a comportamento antissocial e de assassinato. Lena emerge como a única figura capaz de contornar o peso opressivo do passado. Ela é uma criança livre de estigma pessoal ou vergonha. Como Joe, ela é órfã, mas em vez de fugir do passado, ou ficar simbolicamente aprisionada por ele, no final, ela caminha de forma otimista para um futuro ainda sem roteiro.
   Observa-se também, como tema, a luta por um sentido coerente de identidade. Embora o romance explore questões de gênero e raça especificamente, estas correntes temáticas se cruzam para se tornar parte de uma pesquisa mais extensa do autor acerca da natureza da identidade e de como ela é influenciada pela história, natureza, sociedade e vidas individuais. Os habitantes de Jefferson aceitaram tacitamente o reverendo, Joanna e Joe, mas cada um destes personagens deliberadamente resiste ou abandona a influência distorcida de uma ordem moral e social rígida. A sociedade, representada na voz coletiva da comunidade, tenta sobrepor noções restritivas e simplistas de identidade baseadas em categorias mais gerais, tais como raça e gênero. Enquanto alguns indivíduos necessitam desses estímulos externos para fornecer a si mesmos um senso de clareza, ordem e definição, outros lutam sob o peso do que são frequentes tentativas de restringir e classificar. Para Joe, a ausência de uma autoconsciência estável e identificável assume trágicas dimensões. Sua andanças se tornam uma jornada simbólica da tentativa de auto-descoberta, uma busca por completude, mas elas acabam se tornando tragicamente jornadas ilusórias e elusivas.
   Outro tema é o do isolamento do indivíduo; o romance é preenchido com figuras solitárias que escolhem ou são forçadas a habitar as margens da sociedade. Byron se protege do mundo exterior com sua estratégia inconsciente de desapego. Lena é uma adolescente prestes a ser mãe que, buscando o apoio de Joe Brown, descobre que ela pode ficar sozinha e que, na verdade, seria o melhor. Ela é o catalisador que facilita a entrada gradual e final de Byron no mundo das interações humanas e contato. Embora sua família não tradicional ainda esteja se formando ao final do romance, eles são os únicos personagens capazes de resolver o enigma de sua própria estranheza e solidão. Hightower e Joe Christmas são descritos como vivendo fora do tempo, habitando a própria ordem temporal e um mundo deles mesmos. Após a traição que Joe experimenta por parte de Bobbie Allen, reativando o abandono e a negligência que marcou a infância dele, Christmas passa a viver uma existência sem rumo e sem restrições, deliberadamente sabotando qualquer oportunidade de estabelecer um laço emocional ou conexão com outra pessoa. Sua única chance potencial de contato humano, com a senhora Burden, termina não com grande intimidade e conexão, mas em assassinato e ira.
   Entre os motivos, alguns merecem destaque. O primeiro, o uso de palavras compostas, é algo emblemático para o autor, que demonstra sua habilidade em ultrapassar os limites da articulação sob o propósito de atender às suas necessidades estéticas. O uso deste mecanismo sugere que a reserva de palavras existentes em língua inglesa, além dos meios tradicionais de combinação, composição e emprego, são insuficientes para explorar o complexo estado de consciência e conhecimento dos personagens. Exemplos abundam no romance. Faulkner emprega estes neologismos longos, palavras de sua própria invenção, como um meio de acessar ou enaltecer os estados indescritíveis, complexos e contraditórios que não são fáceis de se explicar ou mesmo serem traduzidos no reino das palavras escritas. As combinações tentam aproximar o grande abismo entre a aparência e a realidade, pensamento consciente e inconsciente, os estados externo e interno do ser. Outro motivo é a fluidez do tempo. No romance, há uma mistura complexa de eventos contados em uma dinâmica de flashbacks e narração em tempo presente. A natureza cíclica das andanças de Lena, primeiro para dentro e depois para fora da cidade, serve como escopo para a ampla rede narrativa contida na obra. Ao longo da narrativa, Faulkner move sua história para a frente e para trás no tempo. Vários eventos se sobrepõem e se cruzam; ações tomam lugar simultaneamente em diferentes partes de Jefferson e são, então, relatadas ou contadas por um coro de vozes que competem entre si, cada uma sob a sua própria óptica. Por exemplo: o assassinato de Joanna Burden já aconteceu quando Lena chega à fábrica no primeiro capítulo, mas não somos apresentados aos motivos e detalhes deste evento até o fim do capítulo 12. Esta estrutura e abordagem ressaltam a noção de Faulkner de que nada acontece isoladamente. Em vez disto, os diversos eventos que compõem o romance, se passados ou presentes, são parte de uma cadeia de longo alcance de causalidade que remontam à Guerra Civil e vai além. Justapondo vários períodos de tempo e pontos de vista, o autor adquire uma complexidade e ressonância em sintonia com o mundo multidimensional que ele cria.
   Um último e interessante motivo é o dos nomes. Faulkner seleciona deliberadamente os nomes dos personagens de modo a dar sutil ressonância ao rico retrato das vidas cruzadas que eles representam. O reverendo isolado da sociedade e auto-exilado tem isto assinalado em seu nome - Hightower ('torre alta'). A família da senhora Burden sofreu tragédias pessoais e dificuldades em estabelecer sua presença em Jefferson (Burden significa fardo). Lena Grove é uma criança da natureza, estando mais em casa entre as árvores e espaços amplos do que nos confinamentos da civilização tradicional (Grove significa bosque). Para Joe Christmas, um nome, e a história e senso pessoais que ele carrega, é um luxo que a ele nunca foi concedido. Sua ausência de nome ao nascimento, e a ausência de identidade que isto implica, pode ser visto como a tragédia primordial de sua vida e a força motriz que sua busca constante e incansável representa. Ao final do romance, o filho que nasce de Lena permanece sem nome, livre das expectativas que o ato de nomear pode gerar.
   Quanto aos símbolos, podemos discutir sobre alguns deles. O primeiro seria o da ovelha morta; num romance recheado de imaginário religioso, Joe Christmas ter matado uma ovelha é uma breve mas evidente adição ao conjunto de símbolos cristãos. Como muitos adolescentes, Christmas vivencia o início de seus impulsos sexuais e a curiosidade e a busca por conhecimento aumentam incessantemente. Quando ele primeiro entra em contato com o ciclo menstrual de uma mulher, ele tem nojo e repulsa pelo conhecimento. A única catarse que ele encontra é no sangue das ovelhas que ele mata de um fazendeiro no campo. O ato irracional e impulsivo, e quase ritualístico, antecipa as duas mortes adicionais que o virão assolar e, finalmente, selar o seu destino. Além disto, a ovelha pode ser vista como um análogo ao próprio Christmas: uma ovelha que será sacrificada ao se dirigir voluntariamente para os caminhos que o levarão à morte e destruição. A morte brutal da ovelha também antecipa o tiroteio e castração que esperam Joe na cozinha do reverendo Hightower.
   Outro símbolo é o da fumaça subindo da casa da senhora Burden. O dia fatídico em que Lena chega a Jefferson é marcado também pela morte da senhora Burden e pelo incêndio à sua casa. Até aquele ponto, Byron Bunch tinha seguido de forma simples e ritualizada sua existência descomplicada. Ao encontrar Lena na fábrica, entretanto, ele fica tão distraído e perturbado pela sua presença que nunca percebe conscientemente a fumaça subindo no horizonte, disposta de forma clara como se 'tivesse sido colocada lá para avisá-lo'. Mais tarde, o narrador onisciente constata que, quando Byron percebe que Lucas Burch e Joe Brown são a mesma pessoa, parecia a ele que o destino e as circunstâncias tinham colocado um aviso em direção ao céu (a fumaça), mas ele foi 'muito tolo' para conseguir compreendê-lo. Mas a impressão de Byron de que a fumaça representaria um mau presságio é outro exemplo de má interpretação do romance. A fumaça serve não como um prenúncio de maus tempos que se aproximam, mas como o fim e a passagem de uma ordem vigente. O fogo na casa de Burden serve como uma limpeza ritualística, libertando Jefferson da tragédia e da violência que a marcaram naquele agosto e pavimentando o caminho para a presença de Lena, enquanto gestante, e para o novo senso de comprometimento e obrigação que se desenvolve em Byron.
   Um último símbolo é o da estrada. A noção genérica da estrada emerge como uma poderosa metáfora da busca por auto-aceitação e encaixe que Lena e Joe empreendem no romance. A imagem primeiramente aparece quando Christmas mata seu pai adotivo e é abandonado por Bobbie Allen e seus companheiros. Pisando fora da varanda da casa abandonada, Joe entrou na estrada pela qual correria e fugiria por quinze anos. Nas andanças infrutíferas que se iniciam, a estrada tipifica a busca incansável e autodestrutiva de Joe por um significado. A estrada também toma dimensões de uma libertação tentadora da sua consciência aprisionadora. Mas acaba funcionando como uma miragem e um engodo que não fornecem resolução e nem as respostas que Joe procura. A estrada de Lena leva a novas esperanças e possibilidades, enquanto a de Joe o afoga em mais sofrimento, amargura e, finalmente, morte.


   Percebendo a complexidade que é esta obra deste grande gigante da Literatura Universal, sigo numa jornada de descoberta e enriquecimento pessoal. É muito gratificante para a alma encontrar autores que escrevem com o coração e de forma tão magistral, e de saber que sua obra é reconhecida mundialmente em virtude de importantes ensinamentos e constatações para o ser humano. Procurando conhecer mais sobre os motivos humanos e sobre o sentido de tudo, seguirei na obra deste importante autor; ajuda, por fim, a viver melhor. Sem dúvida que sim! Boa semana a todos!