sábado, 21 de junho de 2014

Enquanto Agonizo

   A segunda obra que merece destaque no universo do grande William Faulkner é este romance primoroso, que nos faz sentir realmente o que é agonizar, no sentido de escalada para a morte... Mas, acima de tudo, lida de forma magistral com os problemas que os indivíduos ao redor apresentam durante o envolvimento com a morte. O mais interessante é que o autor consegue desenvolver a estória sob a óptica de cada personagem envolvido. Um livro seu lançado anteriormente, e que o lançou definitivamente entre os grandes, O Som e a Fúria (The Sound and the Fury), de 1929, marcou o início do uso experimental de técnicas para explorar a complexidade psicológica dos seus personagens e suas interações de uma forma mais profunda do que um estilo tradicional de escrita teria permitido.

William Faulkner (1897-1962)
   Enquanto Agonizo (As I Lay Dying), publicado em 1930, é um dos mais vívidos testamentos do poder desse novo estilo, com os parágrafos usualmente complexos e extensos em conexão com uma economia consciente para formar uma trama clara e unificada. Muito desta clareza pode ser atribuída à intensidade da visão de Faulkner para o trabalho e ao planejamento cuidadoso que ele faz antes de se sentar para começar a escrever. Enquanto o autor concebeu muitos dos seus trabalhos de forma dispersa, ele imaginou completamente os conceitos inovadores em Enquanto Agonizo antes do tempo, furiosamente escrevendo suas revelações nas costas de um carrinho de mão virado de cabeça para baixo. Esta organização reflete as grandes esperanças que Faulkner depositou no romance; ele havia se casado recentemente com sua namorada de escola, Estelle Oldham, e esperava que sua saga da família Bundren pudesse finalmente trazer um bom sustento para a sua família e uma maior reputação literária para si mesmo. O resultado é um romance algo ousado, um romance que vai além da perspectiva unificada de um narrador único e fragmenta o texto em cinquenta e nove segmentos, ditados sob quinze diferentes perspectivas. Ao escrever o romance desta forma, o autor requer que os leitores tomem parte ativa em construir a estória, permitindo múltiplas e algumas vezes conflituosas interpretações, e conseguindo esferas notáveis de introspecção psicológica.
   Em Enquanto Agonizo, Faulkner introduz o condado de Yoknapatawpha, uma versão fictícia de sua terra natal, o condado de Lafayette, no Mississippi, e que se torna o cenário de muitos de seus trabalhos mais conhecidos. Os romances que se passam neste condado podem até mesmo ser lidos como uma única e intrincada estória, em que os mesmos lugares, eventos, famílias e pessoas redundam mais e mais. Antes de Faulkner, o Sul dos Estados Unidos era largamente retratado na Literatura Americana como uma terra incrivelmente estrangeira. A complexidade e sofisticação dos romances em Yoknapatawpha mudaram muito esta percepção, e é graças ao autor que o Sul dos EUA é hoje reconhecido como uma das regiões mais prolíficas do país em boa Literatura. Ele ganhou o Nobel de Literatura em 1949 e um par de Pulitzer seguidos, em 1955 e 1962. Ele continuou a escrever no cenário de Yoknapatawpha até sua morte, em seis de julho de 1962, aos 64 anos de idade.
   Na trama, Addie Bundren, a esposa de Anse Bundren e matriarca de uma pobre família do sul, está muito doente e se espera morrer em breve. Seu filho mais velho, Cash, utiliza-se de toda a sua habilidade em carpintaria para preparar um caixão para ela, que ele constrói em frente à janela do quarto dela. Embora a saúde de Addie esteja ruindo rapidamente, dois de seus outros filhos, Darl e Jewel, deixam a cidade para fazer uma entrega para o vizinho dos Bundren, Vernon Tull, cuja esposa e duas filhas são próximos a Addie. Pouco depois de Darl e Jewel partirem para esta entrega, Addie morre. O mais novo dos irmãos Bundren, Vardaman, associa a morte de sua mãe com a de um peixe que ele capturou e limpou mais cedo pela manhã. Com alguma ajuda, Cash conclui o caixão pouco antes do amanhecer. Vardaman está perturbado pelo fato de sua mãe estar pregada dentro de uma caixa, e enquanto os outros dormem, ele confecciona buracos na tampa, dois dos quais em direção ao rosto de sua mãe. A filha de Addie e Anse, Dewey Dell, cujas atividades sexuais recentes com um fazendeiro local chamado Lafe a deixaram grávida, está tão tomada pela ansiedade sobre sua condição que ela dificilmente chora sob o leito de morte de sua mãe. Um serviço de funeral é solicitado no dia seguinte, e mulheres cantam dentro da casa dos Bundren enquanto os homens ficam fora na varanda conversando uns com os outros.

    
   Darl, que narra a maior parte da primeira seção, retorna com Jewel poucos dias depois, e a preseça de urubus sobre a casa os faz perceber que a mãe deles está morta. Ao ver este sinal, Darl sarcasticamente tranquiliza Jewel, que se mostra amplamente ingrato e indiferente, assegurando que seu amado cavalo não está morto. Addie fez Anse prometer que ela seria enterrada na cidade de Jefferson, e embora esta solicitação seja muito mais complicada do que a enterrar ali mesmo, entre eles, o senso de obrigação de Anse, combinado com o seu desejo de comprar uma dentadura falsa, o impele a realizar o desejo de Addie. O caixão é colocado numa carroça, principalmente sob esforços de Jewel, mas este se recusa a ir na carroça, e segue o grupo em seu cavalo, que ele comprou quando era mais jovem secretamente trabalhando durante as noites nas terras do vizinho. Na primeira noite da jornada, os Bundren ficam na casa de uma família local generosa, que encara a missão dos Bundren com ceticismo. Devido à forte inundação, a ponte principal que cruza o rio local ficou submersa, e a família é forçada a dar a volta em uma margem e tentar a travessia por um caminho improvisado. Quando um graveto irrita os cavalos, o caixão é derrubado da carroça, a perna de Cash, antes já ferida, sofre uma fratura e o grupo de mulas se afoga. Vernon Tull vê o naufrágio e ajuda Jewel a recuperar o caixão do rio. Juntos, os membros da família e Tull procuram as ferramentas de Cash pela beira do rio.
   Cora, a esposa de Tull, lembra das inclinações não cristãs de Addie em respeitar seu filho Jewel mais do que Deus. Addie, ela mesma falando do seu caixão ou de um lapso de tempo no passado no seu leito de morte, relembra eventos de sua vida: seu casamento sem amor com Anse, seu envolvimento com um pastor local, Whitfield, que gerou Jewel, e o nascimento de vários de seus filhos. Whitfield se lembra de ter tentado viajar para a casa dos Bundren para confessar seu relacionamento com Addie para Anse mas acaba desistindo por fim. Um veterinário conserta a perna quebrada de Cash, enquanto este suporta a dor sem jamais reclamar. Anse hipoteca seus equipamentos e adquire um novo grupo de mulas, além de ter usado parte do dinheiro que estava guardando para sua dentadura falsa e o dinheiro que Cash estava guardando para um novo gramofone, além de negociar o cavalo de Jewel. A família segue em seu caminho. Na cidade de Mottson, os moradores reagem com horror ao fedor que vem da carroça dos Bundren. Enquanto a família está na cidade, Dewel Dell tenta comprar um remédio abortivo, mas o farmacêutico se recusa a vendê-la e aconselha que ela se case, em vez de tentar abortamento. Com cimento que a família comprou na cidade, Darl cria um molde improvisado para a perna quebrada de Cash, que fica mal acoplada e só faz piorar a dor. Os Bundren acabam passando a noite numa fazenda local de propriedade de Gillespie. Darl, que esteve cético da missão por um bom tempo, põe fogo no celeiro dos Gillespie com a intenção de incinerar o caixão e o corpo apodrecido de Addie. Jewel resgata os animais no celeiro e depois arrisca a própria vida para retirar o caixão de Addie das chamas. Darl chora sobre o caixão de sua mãe.


   No dia seguinte, a família chega a Jefferson e enterra Addie. Em vez de enfrentar uma ação judicial pelo crime de Darl, os Bundren alegam que Darl é louco, e o entregam a um par de homens que o interna numa instituição mental de Jackson. Dewey Dell tenta novamente comprar um medicamento abortivo na farmácia local; nesta, um jovem trabalhador do balcão afirma ser médico e a engana em troca de serviços sexuais - ela recebe medicamentos que logo percebe não se tratarem de medicamentos para abortamento. Na manhã seguinte, os filhos são cumprimentados pelo seu pai, que apresenta uma nova e falsa dentadura e, com uma mistura de vergonha e orgulho, os apresenta a sua nova noiva, uma mulher local que ele encontrou enquanto pedindo pás emprestadas, com as quais cavou o túmulo no qual foi enterrada Addie.
   Quando da análise dos personagens, três merecem destaque. Embora esteja morta a maior parte do romance, Addie Bundren é um dos personagens mais importantes no sentido de que seu desejo pouco ortodoxo de ser enterrada próximo aos seus parentes de sangue mais do que com sua própria família agora constituída está no cerne da estória. Addie, cuja voz é expressa através das memórias de Cora Tull e através de sua própria breve sessão na narrativa, parece ser uma mulher forte e inteligente mas assombrada por um sentimento de desilusão. Incapaz de amar o impotente e grosseiro Anse ou as crianças que ela carregou, Addie entende o amor matrimonial e maternidade como conceitos vazios, palavras que existem somente para preencher vazios nas vidas das pessoas. Após carregar um segundo filho de Anse, Addie expressa pela primeira vez seu desejo de ser enterrada longe, constatando sua crença de que a 'razão de viver é estar pronta para ficar morta por um longo tempo'. O pequeno valor que ela realmente encontra na vida, do seu pequeno romance com Whitfield e seu amor por seu filho Jewel, termina numa nota mórbida. Jewel trata Addie duramente enquanto ela está viva, e somente quando ela está morta é que 'ele a salva do fogo e da água', como ela sempre acreditou que ele faria. Addie investe sua vida e sua energia em um amor que encontra correspondência e frutifica somente após ela ter morrido. Enquanto cadáver, Addie é igualmente importante no romance, dificultando a situação de sua família e a dividindo da mesma forma que enquanto estava viva. Muitos dos incidentes após a sua morte refletem a sensação de que parte de Addie permanece viva. Vardaman faz buracos no caixão para que Addie possa ter ar para respirar, e quando Darl e Vardaman escutam o barulho do corpo em decomposição, Darl afirma que estes sons são Addie falando. Mesmo o odor do seu corpo em decomposição cativa uma grande quantidade de estranhos. A noção de que há continuidade entre a voz humana articulada da Addie viva e a massa biológica pútrida que é a Addie morta está entre as ideias mais emocionalmente poderosas presentes no romance.

Addie Bundren
   Outro importante personagem é Darl Bundren. Este, que fala em dezenove das cinquenta e nove seções do romance é, de muitas formas, o personagem mais 'cerebral'. O jeito que ele tem para a análise de situações e para descrições poéticas significa que sua voz se torna a coisa mais próxima que a estória poderia oferecer como guia, uma espécie de narrador subjetivo. Entretanto, é esta mesma natureza intelectual que o impede de atingir tanto o heroísmo chamativo de seu irmão Jewel quanto a lealdade no autosacrifício de seu outro irmão, Cash. De fato, impede que Darl acredite de todo o coração na missão da família. Ele registra sua objeção ao 'passeio do enterro' no momento em que aparentemente abandona o caixão de sua mãe durante a travessia do rio e ao iniciar o incêndio no celeiro de Gillespie com o cadáver de oito dias de sua mãe dentro. Outra consequência da natureza filosófica de Darl é sua alienação sob a perspectiva da comunidade ao redor dele. De acordo com Cora Tull, as pessoas o acham estranho e inquieto. Ele também é capaz de compreender informações privadas sobre as pessoas ao seu redor, como por exemplo quando ele adivinha a aventura de sua irmã Dewey Dell com Lafe ou percebe que Anse não é o pai verdadeiro de Jewel. Algumas vezes, Darl é quase um clarividente, como fica evidente pela cena em que ele é capaz de descrever vividamente a morte da mãe mesmo estando com Jewel longe do local em que ela morre. Outros personagens alienam Darl por medo de que ele se aproxime muito deles e de seus segredos. É talvez este medo, mais do que o ato do incêndio criminoso de Darl, que leva sua família a interná-lo num asilo de insanidade ao final do romance - depois de tudo, Dewey Dell, que percebe que Darl sabe de seu segredo, é a primeira a contê-lo quando os funcionários do asilo chegam a eles.

Darl Bundren
   Um último personagem que merece destaque é Jewel Bundren. Este fala muito pouco ao longo do romance, sendo mais definido por suas ações, enquanto descrito sob os olhos dos outros personagens. A natureza pouco comunicativa de Jewel cria uma grande distância entre ele e o interlocutor, e grandes discussões existem para debater o significado das suas ações. As frequentes descrições de Jewel como 'madeira' por parte de Darl reforça a imagem daquele como impenetrável aos outros, e também estabelece uma relação entre Jewel e o caixão de madeira que vem para simbolizar sua mãe. Se Jewel corresponde ou não às devoções de sua mãe também é outro grande ponto de discussão; seu comportamento em relação a ela enquanto está viva parece insensível. Até mesmo quando Addie está no seu leito de morte, Jewel se recusa a dar adeus a ela, e desde o início duramente assegura sua independência com a compra de um cavalo. As ações de Jewel após a morte de Addie, entretanto, mostram que ele é bastante cuidadoso com ela, já que acaba fazendo grandes sacrifícios para assegurar a segurança no caminho do cadáver dela em direção ao lugar desejado para ser enterrado, até mesmo concordando em vender seu adorado cavalo. De forma semelhante, a frieza e os hábitos ásperos em relação aos demais membros da família contrastam fortemente com a devoção heroica que ele demonstra em suas ações, como quando procura valentemente pelas ferramentas de Cash após a travessia do rio e como quando quase chega às vias de fato com um estranho que ele acredita ter insultado a família (quando estão chegando em uma das outras cidades). Em geral, Jewel é um homem de ações solitário e independente, e estas características o colocam em relação antagonista com o introspectivo Darl.

Anse Bundren (à esquerda) e Jewel Bundren (à direita)
   Quanto aos temas, podem-se destacar alguns deles. A impermanência da existência e da identidade seria um deles; a morte de Addie Bundren inspira muitos personagens a lutarem com perguntas sobre a existência e identidade. Vardaman está perplexo e horrorizado com a transformação de um peixe que ele capturou, limpou e preparou, dividindo o peixe em 'pedaços de não-peixe' e associa esta imagem com a transformação de Addie de uma pessoa em uma 'não pessoa' indefinida. Jewel nunca fala por si mesmo, mas sua dor é resumida por Darl, que afirma que a mãe de Jewel é um cavalo. Da sua parte, Darl acredita que, desde a morte, Addie é agora melhor descrita como 'era' em vez de 'é'; assim, deve ser o caso de que ela não mais existe. Se sua mãe não mais existe, Darl não tem mãe e, por implicação, não mais existe. Estas especulações não são meros jogos de linguagem e lógica; mais do que isto, elas têm consequências tangíveis e mesmo terríveis para os personagens do romance. Vardaman e Darl, os personagens para quem estas questões são mais urgentes, acham sua crença na realidade mais enfraquecida, já que possuem tais inquirições. Vardaman balbucia sem sentido no início do romance, enquanto Darl é declarado insano ao longo do tempo. A fragilidade e incerteza da existência humana é posteriormente ilustrada ao fim do romance, quando Anse apresenta sua nova esposa como senhora Bundren, um nome que, até recentemente, pertencia a Addie. Se a identidade da senhora Bundren pode ser usurpada tão rapidamente, a conclusão inevitável é que qualquer identidade é igualmente instável.
   Outro tema é o da tensão entre as palavras e os pensamentos. A assertiva de Addie de que 'palavras são apenas palavras', perpetuamente inferindo algo que está aquém das ideias e emoções que expressam, reflete a desconfiança com que o romance como um todo trata a comunicação verbal. Enquanto os monólogos interiores que compõem o romance demonstram que os personagens apresentam vidas interiores mais ricas, muito pouco do conteúdo destes monólogos são, alguma vez, transmitidos em comunicação entre os indivíduos. Na verdade, os diálogos tendem a ser concisos, hesitantes e irrelevantes em relação ao que os personagens estão pensando naquele momento. Quando, por exemplo, Tull e alguns outros indivíduos locais estão conversando com Cash sobre sua perna quebrada durante o funeral de Addie, nós somos apresentados a duas conversas inteiramente separadas; uma, escrita normalmente, é vaga e simples e, provavelmente, a conversa que realmente está acontecendo; a outra, escrita em itálico, é muito mais rica em conteúdo e presumidamente a conversa que os personagens teriam se realmente falassem com suas mentes. Todos os personagens protegem ferozmente seus pensamentos, de modo que o conteúdo rico destes pensamentos é transmitido apenas pobremente ou vagamente no diálogo, o que, por sua vez, leva a uma série de mal-entendidos e falhas de comunicação.


   Um último tema que merece destaque é o da relação entre a gravidez e a morte. O livro se trata visivelmente de um romance cínico, e ele rouba mesmo do nascimento os seus poderes reabilitativos usuais. Em vez de funcionar como um antídoto à morte, o nascimento parece ser uma introdução a ela, tanto para Addie quanto Dewey Dell, e dar à luz parece ser um fenômeno que mata as pessoas mais próximas a ele, até mesmo se elas estão fisicamente ainda vivas. Para Addie, o nascimento de seu primeiro filho parece ser um truque cruel, uma infração à sua preciosa solidão, e é o nascimento de Cash que primeiro leva Addie a tratar com Anse da morte. O nascimento se torna, para Addie, uma obrigação final, e ela encara os nascimentos de Dewey Dell e Vandarman como reparações ao romance que levou à concepção de Jewel, como os últimos débitos que precisa pagar em vida antes de se preparar para a morte. Os sentimentos de Dewey Dell com relação à gravidez não são mais positivos: sua condição se torna uma preocupação constante, fazendo com que ela veja todos os homens como predadores sexuais em potencial. O nascimento parece prescrever uma morte para as mulheres e, por conseguinte, a morte metafórica de todos os seus lares.
   Quanto aos motivos, também podemos destacar três. Os atos de heroísmo sem sentido podem ser encarados como o primeiro deles. O romance é preenchido por momentos de grande heroísmo e de lutas quase épicas, mas a abordagem que o romance apresenta nestas batalhas é no máximo irônica, e algumas vezes os faz parecer absurdos e mundanos. O esforço dos Bundren para atravessar o rio com o caixão é uma luta que poderia muito bem estar presente em algum romance de aventura mais convencional, mas se torna prejudicada pelo fato de ocorrer por um propósito questionável. Poder-se-ia argumentar, por exemplo, que a missão de enterrar Addie em Jefferson se trata tanto de se conseguir a dentadura falsa de Anse como dos desejos de Addie. O martírio de Cash parece nobre, mas sua tolerância sem reclamações com relação à dor de seus ferimentos acaba se tornando mais ridícula que heroica. O resgate do rebanho por parte de Jewel é ousado, mas também acaba anulando a queimada do celeiro por parte de Darl, o que, enquanto criminoso, poderia ser visto como o ato mais ousado e nobre de todos. Cada ato de heroismo, se não ridículo em si mesmo, neutraliza um ato igualmente épico, um ciclo vicioso que dá um caráter de absurdo que é tanto cômico quanto trágico ao romance.
   Um segundo motivo seriam os monólogos interiores. Faulkner estava embarcando em técnicas narrativas experimentais da mesma forma que muitos escritores modernistas do início do século XX, explorando mais a consciência individual do que a trama e desencadeamento dos eventos para criar uma estória. Dois outros gigantes da Literatura Universal tiveram sucesso neste tipo de experimentação: James Joyce, em Ulysses, e Marcel Proust, na sua obra Em Busca do Tempo Perdido; mas Faulkner também contribuiu sobremaneira neste movimento. Enquanto Agonizo é escrito como uma série de monólogos de fluxo de consciência, em que os pensamentos dos personagens são apresentados em todo o caos sem censura do pensamento, sem a presença organizadora de um narrador objetivo. Esta técnica transforma a parte psicológica do personagem numa preocupação dominante e isto torna possível apresentar esta psicologia como algo muito mais complexo e com mais autoridade do que um estilo narrativo mais tradicional. Ao mesmo tempo, força o interlocutor a ter também trabalho na leitura do texto no sentido de absorver toda a compreensão do que está escrito; assim, o leitor de Faulkner é alguém que trabalha também na busca do entendimento da leitura, e não alguém que somente espera que a estória seja absorvida facilmente. É, portanto, alguém ativo, e não passivo. Em vez de ser apresentado um quadro objetivo de eventos, em algum lugar na confusão de imagens, memórias e alusões inexplicadas, o interlocutor é forçado a pegar cada pedaço que um personagem dá e criar algo disto por si.


   Um último motivo é a questão das classes sociais. No Sul dos EUA, onde Faulkner viveu e escreveu, as classes sociais eram uma questão mais hierárquica e de maior preocupação do que em qualquer outro lugar do país, e é claramente enraizado na construção do texto de Enquanto Agonizo. O autor provou ser incomum com sua habilidade retratar o povo rural pobre com graça, dignidade e grandeza poética sem esvaecer ou ignorar suas circunstâncias. Os Bundren encontram pessoas dispostas e mesmo graciosas na vizinhança rural, mas sua recepção em cidades maiores é fria na melhor das hipóteses: um xerife diz que o cadáver cheira muito mal para que eles permaneçam na cidade, um cidadão puxa uma faca para Jewel e o balconista toma vantagem inescrupulosa com relação a Dewey Dell. Por outro lado, a despeito de sua pobreza gramatical e vocabulário limitado, os personagens de Faulkner expressam seus pensamentos com uma espécie de rebuscamento poético. Exatamente que intenções teve o autor para a sua família de personagens sulistas não é clara - Enquanto Agonizo pode ser lido tanto como um tributo comovente aos valores rurais como um análise mordaz dos sulistas, mas a atmosfera em que se inserem os Bundren sem dúvida molda a jornada deles e as interações que apresentam ao longo do caminho.
   Com relação aos símbolos, também podemos destacar três. Os animais são claramente um deles. Pouco depois da morte de Addie, os filhos Bundren fazem analogia de animais com sua falecida mãe. Vardaman declara que sua mãe é o peixe que ele capturou. Darl assegura que a mãe de Jewel é o cavalo deste. Dewey Dell chama a vaca da família de mulher enquanto ela pondera sobre sua gravidez alguns minutos após perder sua mãe, sua única parente feminina. Por diferentes razões, os personagens angustiados apreendem em animais emblemas de suas próprias situações. VardamanAddie em seu peixe porque, como este, ela foi transformada em algo diferente do que ela era quando estava viva. A vaca, inchada com bastante leite, significa a Dewey Dell o desprazer de carregar algum fardo não desejado. Jewel e seu cavalo adicionam um novo significado ao uso dos animais como símbolo. Para nós, baseado nas palavras de Darl, o cavalo é um símbolo do amor de Jewel por sua mãe. Para Jewel, entretanto, o cavalo, baseado nas suas andanças nele, aparentemente simboliza uma liberdade conquistada com bastante esforço em relação à família Bundren. Isto que podemos desenhar como tão diferentes conclusões dos personagens do romance faz do cavalo, de muitas maneiras, representativo da natureza imprevisível e subjetiva dos símbolos em Enquanto Agonizo.
   Outro símbolo seria o caixão de Addie. Este representa, literalmente, o enorme fardo de disfunção que a morte de Addie, e as circunstâncias em geral, coloca na família Bundren. Cash, sempre calmo e equilibrado, fabrica o caixão com grande esmero e cuidado, mas os absurdos advêm quase imediatamente - Addie é colocada no caixão de cabeça para baixo, e Vardaman faz buracos na região do caixão em que está seu rosto. Como a vida dos Bundren, o caixão é jogado para fora do equilíbrio pelo cadáver de Addie. O caixão se torna o ponto de encontro para toda a disfunção da família, e colocá-lo para repousar é também crucial para que a família retorne para um pouco de normalidade.
   Um último símbolo são as ferramentas, na forma do material de carpintaria de Cash e dos equipamentos da fazenda de Anse; elas se tornam símbolos de uma vida respeitável e de estabilidade colocadas em perigo pela imprudência da jornada dos Bundren. As ferramentas de Cash parecem ter algum significado para ele somente, mas quando estas ferramentas são espalhadas pelo rio corrente, toda a família, e mesmo Tull, se unem para recuperá-las. Os equipamentos de Anse são dificilmente mencionados, mas acabam desempenhando um papel importante na jornada dos Bundren quando Anse acaba hipotecando as partes mais caras deles para comprar um novo grupo de mulas. Esta transação é significativa, já que o dinheiro guardado para a compra de um gramofone furtado de Cash por Anse e a venda do cavalo de Jewel representam um sacrifício dos maiores sonhos destes personagens. Mas o fato de Anse depositar importância nos seus equipamentos de fazenda não deve ser negligenciado, já que estes garantem o sustento da família. Em um esforço para salvar a viagem do enterro, Anse põe em perigo os equipamentos de que a família se utiliza para trabalhar a terra e sobreviver.


 
   Em 2013, o ator e diretor James Franco fez uma adaptação do livro para o cinema. Homônimo no inglês, As I Lay Daying (em português traduzido como Último Desejo) é magistralmente adaptado. Se for consultado o IMDb, a nota média do filme é 5,5. Não se deixe enganar, pois o filme não é bem uma adaptação do livro, mas o livro em si. Ao se fazer a leitura do livro, o filme é quase que um breve resumo da leitura para a fixação e contemplação dos fluxos de consciência e dos monólogos no livro. O problema é que, a exemplo da leitura, que necessita de um leitor ativo, o filme tem essa mesma exigência... Assistir ao filme pensando em um lazer sem compromisso talvez não funcione, por isto, talvez não agrade ao grande público. Mas é, sem dúvida alguma, um filme consistente para os que admiram o trabalho de Faulkner. Vale muito a audiência.



   Por fim, ao mostrar a importância da morte na vida de todos nós, e as repercussões ainda em vida do término da existência, tem-se plena consciência do poder do livro, como que a fazer a consciência martelar todo o tempo que a vida não acaba com a morte. Parece haver uma consciência que transcende mesmo após o fim de tudo, fazendo uma bela conexão com a vida que continua - e isto, Faulkner executou com maestria ao escrever este romance. Obra prima sem dúvida!!!

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