sábado, 12 de janeiro de 2013

O Sol é Para Todos

   Alguém escreveu uma estória muito interessante e instigante em 1960 nos Estados Unidos da América, com um brilho na técnica formal e ao mesmo com uma simplicidade convidativa, pouco antes dos movimentos dos direitos civis naquele país. Traduzido no Brasil como 'O Sol é Para Todos', o original To Kill a Mockingbird tem este título mais representativo da essência do livro. Tendo ganhado o Prêmio Pulitzer em 1961, este é um daqueles típicos livros únicos que mantiveram a grandiosidade do autor ao longo dos tempos, tendo sido eternizado no universo da Literatura como algo grande e perfeito, que gera discussões e reflexões ainda muito tempo após a conclusão da leitura.
   Nelle Harper Lee nasceu em 28 de abril de 1926 numa cidade chamada Monroeville, no estado do Alabama. Entre seus amigos de infância no sul conservador do país americano estava um outro grande personagem do mundo literário, Truman Capote, que serviu de inspiração para um dos personagens do livro. Apesar de ter muitos elementos da infância da escritora, embora não seja intensamente autobiográfico, eventos que ocorreram em 1931 próximo a Scottsboro, no Alabama, portanto quando ela tinha 5 anos, serviram de inspiração para que criasse este romance. Nove jovens negros foram acusados de ter cometido estupro contra duas jovens brancas; após desgastante e amargo processo de julgamento, cinco dos acusados foram condenados a longa permanência na prisão. Muitos advogados proeminentes e outros cidadãos americanos enxergaram a condenação como motivada fortemente por preconceito racial. Também, suspeitou-se de que as jovens mulheres que acusaram os negros estavam mentindo e, julgamento após julgamento, as suas declarações se tornavam cada vez mais duvidosas.


Harper Lee (1926-)


Truman Capote (1924-1984)

   Lee começou a escrever o livro em meados da década de 1950, após ter se mudado para Nova Iorque para seguir carreira literária. Na época da publicação da obra, as críticas foram um tanto díspares: alguns críticos acharam a voz narrativa de uma garota de 9 anos de idade pouco convincente e consideraram o romance essencialmente moralístico; entretanto, na atmosfera de intensa discussão racial do início da década de 1960 nos Estados Unidos, o livro se tornou um grande sucesso popular, tendo ganhado o Pulitzer em 1961 e vendido aproximadamente 15 milhões de cópias (hoje, em torno de 30 milhões de cópias). Dois anos após esta premiação, um filme com a adaptação do livro foi lançado e foi propriamente premiado: recebeu 8 indicações ao Oscar, tendo vencido nas categorias de melhor ator (Gregory Peck), melhor direção de arte e melhor roteiro adaptado. Em 1993, Lee escreveu um prefácio breve para o seu livro, pedindo que as futuras edições do mesmo sejam poupadas de introduções críticas, pois ele 'ainda diz o que se propôs a dizer, tendo sobrevivido sem preâmbulos até então'. A obra continua a ser solicitada em listas de leitura no ensino médio, nas faculdades, amado por milhões de leitores em todo o mundo principalmente por sua descrição atraente da inocência infantil, a condenação contundente do preconceito racial e a afirmação de que a bondade humana pode suportar o ataque de qualquer mal.


Capa de uma das edições de To Kill a Mockingbird
(especial para mim porque foi a edição que li)
   
   Descrevendo resumidamente o livro, Scout Finch vive com seu irmão, Jem, e o pai viúvo de ambos, Atticus Finch, na pacata cidadezinha de Maycomb, no Alabama. Sofrendo com a Grande Depressão, a cidadezinha passa por alguma dificuldade, mas Atticus é um advogado proeminente, e a família Finch vive razoavelmente bem em comparação com o restante daquela sociedade. Durante um verão, os irmão fazem amizade com um outro garoto, chamado de Dill (inspirado em Truman Capote), que veio morar pela vizinhança durante esta estação, e os três vão vivendo aventuras e estórias juntos. Nestas aventuras, eles ficam fascinados com uma casa assustadora na rua deles, conhecida por Radley Place. Esta pertence ao senhor Nathan Radley, cujo irmão, Arthur (apelidado por Boo), nela tem vivido sem ter dela saído por anos e anos. Scout inicia os estudos escolares, mas detesta a escola na primeira vez que para ela vai. No caminho de ida e volta, algumas aventuras vão acontecendo e o ponto central, por algum tempo, é a casa dos Radley. O interessante é a presença moral marcante de Atticus, que põe um fim às indagações e conceitos sobre os Radley, incitando os garotos a tentarem se colocar na perspectiva da outra pessoa sempre antes de fazer qualquer julgamento. Apesar de os garotos ficarem se perguntando como é Boo Radley, imaginando-o como alguém horripilante e a ele sempre se remetendo de forma assombrosa, e achando que ele nunca sai de casa, é evidente em algumas passagens a presença dele mesmo perto dos garotos, ou a interação dele com os garotos. Para a consternação da comunidade branca racista de Maycomb, Atticus concorda em defender um homem negro, chamado de Tom Robinson, que foi acusado de ter estuprado uma jovem mulher branca. Por causa desta decisão de Atticus, os dois filhos são vítimas de constante abuso e forte preconceito por parte das outras crianças. E é ensinando os filhos como se portar, como enxergar o ponto de vista dos outros, que Atticus se torna um brilho particular no livro, sendo de uma primorosidade dificilmente vista por aí na vida real, mesmo sabendo que tais personagens existem. Quando o negro acusado é transferido para uma prisão antes de ser julgado, um pequeno grupo de pessoas se reúne para linchá-lo. Atticus enfrenta este grupo na noite anterior ao julgamento; os dois irmãos, Scout e Jem, acabam aparecendo no local e Scout reconhece um dos homens no grupo. Inocentemente, ela começa a perguntar de forma polida sobre o filho daquele que ela reconhece, e isto acaba envergonhando o grupo, que acaba se dispersando. No dia do julgamento, as crianças vão até a corte e ficam em meio ao balcão dos negros; Atticus provê claras evidências de que os acusadores, Mayella Ewell e seu pai, Bob, estão mentindo. Apesar de todas as evidências que demonstram a certeza da inocência de Tom, todo o juri, composto de brancos, o condena. Posteriormente, já na prisão, Tom acaba tentando fugir e é morto a tiros. Na sequência do julgamento, Jem tem sua fé na justiça bastante abalada, caindo em depressão e grande desânimo. A despeito do veredicto, Bob Ewell sente que Atticus e o juiz o fizeram de tolo e jura vingança; ele ameaça a viúva de Tom, tenta entrar na casa do juiz e finalmente acaba atacando Jem e Scout enquanto eles estão se deslocando para casa durante uma noite voltando de uma festa de Halloween. Boo Radley intervém, entretanto, salvando as crianças e esfaqueando Bob, que acaba morrendo. Boo carrega Jem para a casa de Atticus, onde o xerife, considerando proteger Boo, insiste que Bob Ewell caiu sobre sua própria faca e acabou morrendo por ele mesmo como uma fatalidade. Após sentar e conversar um pouco com Scout, esta acaba levando Boo até a casa deste. Mais tarde, Scout sente como se ela pudesse finalmente imaginar como é a vida de Boo. Para ela, ele se tornou, enfim, um ser humano. Com esta percepção, Scout segue o conselho de seu pai de praticar a simpatia e a compreensão, demonstrando assim que suas experiências com o ódio e o preconceito não irão manchar a sua fé na bondade humana.


Adaptação para o cinema de To Kill a Mockingbird (em 1962)

Gregory Peck (1916-2003), ator que interpretou Atticus Finch

   No livro, percebem-se alguns temas que merecem destaque. A coexistência do bem e do mal é o mais importante dos temas; o livro explora a natureza moral dos seres humanos, ou seja, as pessoas são essencialmente boas ou essencialmente más? O romance discute esta questão dramatizando a transição de Scout e Jem de uma perspectiva de inocência infantil, em que eles assumem que as pessoas são boas porque nunca haviam visto o mal, para uma perspectiva mais adulta, em que eles confrontaram o mal e precisam incorporá-lo na sua compreensão do mundo. Como resultado deste retrato da transição da inocência para a experiência, um dos subtemas importantes do livro envolve a ameaça que o ódio, o preconceito e a ignorância tem para os inocentes: pessoas como Tom Robinson e Boo Radley não estão preparadas para o mal que elas encontram, e, como resultado, eles acabam sendo 'destruídos'. A voz moral do livro é incorporada por Atticus Finch, que é virtualmente único no romance na medida em que ele experimentou e compreendeu o mal sem ter perdido sua fé na capacidade dos homens para o bem. Ele entende que, mais do que serem simples criaturas de bem ou criaturas más, a maioria das pessoas tem ambos, o bem e o mal, dentro de si, e o importante é apreciar as boas qualidades e compreender as más qualidades tratando os outros de forma simpática e tentando enxergar a vida da perspectiva dos outros. Outro tema profundo é o da importância da educação moral; devido ao fato de a exploração das questões morais maiores no romance se dar sob a perspectiva de crianças, a educação infantil está necessariamente envolvida no desenvolvimento de todos os temas do livro. Em certo sentido, o tema da educação das crianças é recorrente ao longo do romance, e é explorado de forma mais importante pela relação de Atticus com seus dois filhos, aquele sempre tentando ensiná-los a ter uma consciência moral. Um outro tema é a existência da desigualdade social; as diferenças de status social são exploradas em grande parte através da hierarquia social complicada de Maycomb, com prós e contras que constantemente confundem as crianças. Os Finch são relativamente bem sucedidos e ficam perto do topo da hierarquia social, com a maioria dos outros habitantes da cidade abaixo deles. Mas as rígidas divisões sociais que compõem grande parte do mundo adulto são revelados no livro como irracionais e destrutivos. A autora usa a perplexidade das crianças quanto à desagradável estratificação da sociedade de Maycomb como uma crítica ao papel do status de classe e, finalmente, ao preconceito nas interações humanas.
   Alguns motivos também são evidentes na obra. Os detalhes góticos, por exemplo, são bem explorados na medida em que as forças do bem e do mal no livro parecem ser maiores do que a pequena cidade do sul em que a estória se passa teria capacidade de comportar. Em Literatura, o termo gótico se refere a um estilo de ficção primeiramente popularizado no século XVIII na Inglaterra, apresentando ocorrências sobrenaturais, configurações sombrias, assombrações, luas cheias, etc. Entre os elementos góticos em O Sol é Para Todos podem ser percebidos a neve que surge de forma um tanto não natural, o fogo que destrói a casa da senhora Maudie, as superstições das crianças acerca de Boo Radley, o cachorro louco em quem Atticus atira, e a noite sinistra da festa de Halloween em que Bob Ewell ataca as crianças. Estes elementos, meio fora de lugar na normalmente calma e previsível Maycomb, criam uma tensão no romance e servem para prenunciar eventos perturbadores do julgamento e suas consequências. Um outro motivo presente é o da vida na cidade pequena; contrabalançando os elementos góticos na estória estão os valores antiquados de uma cidade pequena, que vão se manifestando ao longo do romance. Como se para contrastar com todo o suspense e grandeza moral do livro, Lee enfatiza o passo lento e a vida bem humorada de Maycomb. Ela frequentemente justapõe os valores de uma cidade pequena com as imagens góticas na tentativa de permitir um exame mais de perto das forças do bem e do mal. O horror do fogo, por exemplo, é abrandado pela cena reconfortante das pessoas de Maycomb se unindo para salvar os pertences da senhora Maudie.
   Mas, para mim, a força do livro e a mensagem mais bonita está no símbolo que dá título a ele. Apesar de ter pouca conexão literal com a trama do romance, o título carrega uma grande carga de peso simbólico no livro. Nesta estória de inocentes destruídos pelo mal, o 'mockingbird' vem a representar a ideia de inocência. Este pássaro não tem uma tradução feliz literal em português; mas, o pássaro que dá título ao livro é o Northern Mockingbird (ou Mockingbird do Norte), sua espécie é o Mimus polyglottos e ele é famoso por conseguir representar uma grande variedade de sons, sendo um talentoso cantor e imitador (acredita-se que o macho atraia a fêmea com seu variado repertório de sons). Em uma das bonitas passagens do livro em que se apresenta o título, Atticus (reforçado pela senhora Maudie) ensina aos garotos que o 'mockingbird' é um pássaro que não faz nada a não ser cantar belas canções para que nós apreciemos; eles não destroem os jardins das pessoas, não fazem ninhos em milharais - somente cantam seus corações para nós. Por isto, conclui, é um pecado matar um 'mockingbird'. Ou seja, este pássaro representa a mais pura inocência da existência, por isto matá-lo é como matar um inocente, que não pode se defender e que não tem culpa de nada. Ao longo do livro, neste sentido, vários personagens podem ser identificados com o 'mockingbird', como Tom Robinson, Dill e Boo Radley. Outra interessante conexão de expressão de bondade com a referência aos pássaros é que o sobrenome de Atticus, Scout e Jem é 'Finch', que é um outro tipo de pequeno pássaro, e assim parece haver uma indicação de que eles são, de certa forma, particularmente vulneráveis ao mundo racista de Maycomb. O mais importante dos 'mockingbirds' no livro é o personagem de Boo Radley; à medida que o romance progride, as atitudes das crianças com relação a ele vão mudando, e isto é uma importante medida do desenvolvimento da inocência para uma perspectiva moral mais madura. Boo, uma criança inteligente arruinada por um pai cruel, é um importante símbolo do bem que existe dentro das pessoas. A despeito da própria dor que sofreu com a vida, a pureza de seu coração interage com as crianças. Ao salvar Jem e Scout de Bob Ewell, Boo prova ser um símbolo supremo da bondade.


Mimus polyglottos (o 'mockingbird' do norte)

   É, por fim, uma obra-prima da Literatura Universal, sendo altamente engrandecedor e enaltece as virtudes humanas. Ensina que, agir algumas vezes com desonestidade, ainda que num mundo em que muitos não são honestos, não deve ser o fim buscando por nenhum ser humano; antes de agir de forma descortês, indigna e indecorosa, deve-se tentar compreender colocando-se de forma altruística no lugar daquele que assim age. Agir de forma desonrosa num mundo de desonestos é querer justificar o próprio erro com o erro das outras pessoas. E o personagem de Atticus Finch moldou culturalmente a sociedade americana da época do que deveria ser um exemplo de pai, de integridade, de poço de virtude humana. É aquele ser que age de forma decorosa num mundo de indecorosos, mas que nem por isto julga estes, mas, antes, enxerga o bem e o mal em cada um, e sempre procura compreensão 'calçando os sapatos' daqueles que assim agem, ou seja, coloca-se no lugar da outra pessoa, tentando obter a perspectiva deste. A truly masterpiece!!!

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