sábado, 22 de setembro de 2012

A Morte de Ivan Ilitch

   Na correria do dia-a-dia, muitas vezes chego em casa tarde da noite e deixo o Mac na mesa do jantar ligado enquanto como alguma coisa. Tento assistir algo no notebook (um seriado, um filme), ler alguma coisa, escutar alguma música, etc.; mas, certas vezes, estou tão cansado que somente me preocupo em comer e pensar no que aconteceu ao longo do dia... Quando o aparelho está carregando, após alguns minutos de repouso, eis que se apresentam imagens belíssimas de locais paradisíacos na sua tela, imagens de praias perfeitas, céus e mares tão azuis e ao mesmo tempo transparentes que não se sabe se é céu e mar ou uma coisa só, e tudo em alta definição, com cores muito vivas e fortes... Em quase nenhuma das fotos da proteção de tela aparecem imagens humanas, somente a paisagem. Nesses momentos, imagino-me, como qualquer pessoa, acho, faria, como que me teletransportando para aqueles lugares que ficam passando, como seria bom ter um tempo para descansar e ficar o dia todo naquelas praias calmas e belas, ou, indo mais além, como seria bom passar um mês por ali, sem muita gente por perto dizendo para você como se deve fazer, como tem que ser, etc., etc., etc.. Mas, aí começo a me perguntar se isso tudo seria mesmo o melhor para mim para sempre ou o melhor naquele momento particular apenas; rapidamente vem a reflexão e a pergunta sincera: será que eu aguentaria ficar na beira do mar, morando numa casa de praia, longe de tudo e de todos, por algo mais que uns 3 meses, sem as mudanças do cotidiano para diversificar a mente e a alma, sem a família, sem pessoas especiais, sem alguém com quem compartilhar suas ideias, suas manias, sem bons restaurantes, sem belos projetos arquitetônicos, enfim, sem muitas coisas para diversificar... Aí vem uma constatação deveras importante: a mente clama por tensão entre coisas diferentes! Muitas vezes nos dedicamos a fundo em um projeto e, lá na frente, vemos que também precisamos de outras coisas, outros projetos, tentando alcançar um equilíbrio. O trabalho é um grande responsável por esta tensão; se não, vejamos: trabalho x família, trabalho x lazer (sair para passear, praticar algum esporte, aprender um instrumento musical, ler algo diferente, cinema), trabalho x férias (viajar), trabalho x saúde... Tem, ainda, a grande tensão de todos os tempos: dinheiro x felicidade (estamos sempre vendo textos, ideias, opiniões sobre este tema; insistimos que dinheiro não traz felicidade, mas não paramos de nos preparar para nos inserir no mercado de trabalho, não paramos de trabalhar, não paramos de correr para lá e para cá, buscando status em todos os sentidos; não percebemos que, na verdade, ambos são temas bem diferentes, e que uma coisa não depende da outra, e que não devem ser colocadas, assim, em tensão). Enfim, de repente você se vê com necessidade de vários projetos, mas constata, tristemente, que se quiser fazer algo bem feito, deverá se dedicar a, no máximo, uns 3 projetos na vida, não podem ser 15 ou 20... Mas você QUER os 15 ou 20 projetos... Bom, daí surge toda a tensão entre os desejos, entre o querer e o poder, tentando alcançar, como já descrevi, o equilíbrio entre os pontos. E, fatalmente, surgem as questões existenciais, que cedo ou tarde, não importa, chegará para todos nós: - De onde eu vim? - Onde estou? - O que estou fazendo aqui? - Para onde vou? Uma vez que você se faz estas perguntas, muito provavelmente, o resto de sua vida será uma busca incessante pela verdade, pelo que realmente importa, o tão buscado sentido da vida.


   Liev Tolstói (ou Lev Tolstói, ou ainda Leo Tolstoy) foi um dos maiores escritores de todos os tempos. Nasceu em 28 de agosto de 1828 em uma localidade a uns 200 km ao sul de Moscou chamada Yasnaya Polyana. Apesar de ter nascido em uma família aristocrática abastada, a morte visitou sua casa muito cedo: sua mãe morreu quando ele tinha 2 anos de idade (durante o parto do quinto filho) e o seu pai quando ele tinha 9 anos. Metendo-se no mundo e tendo várias experiências amorosas e algumas profissionais, estas vão influenciando o seu trabalho literário. A sua vida segue curso atribulado, mesmo após ter publicado, por exemplo, seu trabalho máximo universal, Guerra e Paz, em 1869, de modo que entre 1875 e 1878 vivencia uma crescente depressão e crise psicológica que influenciaram e alteraram sua filosofia e sua arte. Em um de seus trabalhos autobiográficos, Confissão, Tolstói escreve que a principal causa de sua depressão era a inabilidade de encontrar um sentido aceitável na vida humana. A inevitabilidade da morte o dominou, e todas as formulações sobre o sentido da vida pareceram para ele superficiais e sem valor. Desesperado, ele se voltou para o povo russo; ele percebeu que os camponeses sem educação possuíam uma concepção definida do sentido da vida, um conforto e uma segurança derivados de conhecimento irracional, de fé num Deus criador. Esta fé os resgatava do desespero e do sofrimento, infundindo bastante sentido em suas vidas. Confrontado com a escolha de uma fé irracional ou um desespero sem sentido, Tolstói escolheu a fé. Assim, o autor se engaja numa filosofia religiosa que serve de substrato para se compreender A Morte de Ivan Ilitch, que é uma das novelas mais importantes de toda a humanidade (ps: para o leigos, novela é uma obra literária de tamanho e complexidade intermediários, situando-se entre o que seria um conto, mais simples, e um romance, maior e mais complexo). Amor fraterno, ajuda mútua e caridade cristã são valores que se tornam essenciais para Tolstói na segunda metade de sua vida, emergindo como princípios morais dominantes nesta novela.
   O livro se inicia no final cronológico da estória. Um juiz e amigo de Ivan, Piotr Ivânovich, anuncia para um grupo de juízes que se encontra na casa daquele que o seu amigo morreu; consolados pelos pensamentos de que foi Ivan, e não eles que morreram, os homens do grupo não conseguem não pensar nas promoções e transferências que advirão desta morte. Vem o funeral e Piotr fica incomodado com uma expressão de desaprovação e alerta no rosto de Ivan; a esposa de Ivan tenta conversar com Piotr sobre a possibilidade de haver um aumento na pensão do marido, agora morto. Na saída do velório, Piotr encontra a cuidadora de Ivan, Guerássim, e menciona para ela a tristeza que foi a morte do amigo, mas Guerássim o surpreende com a observação de que todos irão morrer um dia. A partir daí, a estória volta mais de 30 anos no tempo e passa a contar aspectos da vida de Ivan, de sua vida no estudo do Direito, de seu casamento, de como este faz com que ele tenha que trabalhar mais para manter uma vida desejada pela esposa diante da sociedade e como isto o aproxima do trabalho e o afasta cada vez mais de sua família; discorre sobre a expectativa de uma promoção, que não ocorre. Ele fica furioso, sentindo-se injustiçado, e, em um determinado momento, viaja a São Petersburgo e acaba conseguindo um cargo que paga melhor que o anterior; enquanto preparava e mobiliava a nova casa em que iria morar com a família após o novo emprego, ele cai e machuca uma região do seu corpo próxima de um dos rins (o esquerdo); em princípio, o ferimento não parece sério e Ivan fica satisfeito com o aspecto final da casa. A partir deste momento na estória, Ivan passa a sentir um desconforto na região esquerda do corpo (próximo à lesão) e um gosto não usual em sua boca; o desconforto aumenta progressivamente e Ivan vai se tornando irritável e irascível, briguento. Os médicos que passam a atender Ivan tem opiniões as mais diversas sobre o problema e discordam na natureza e gravidade da doença, deixando Ivan deprimido e temeroso. A condição física de Ivan degenera rapidamente. Uma noite, enquanto sozinho no escuro, ele tem os primeiros pensamentos sobre a mortalidade, e isto o assusta. Então, passa a perceber que sua condição não é uma questão de saúde ou doença, mas de vida ou morte. A partir de então, passa a constatar toda a mentira que foi grande parte de sua vida, especialmente aquela parte da vida adulta, e somente lembranças muito antigas de sua existência fazem sentido. Tem um sonho que se repete de que está sendo puxado para um saco escuro. Depois começa a duvidar se viveu uma vida correta. Lembra-se do saco escuro de novo e percebe que sua grande agonia vem parcialmente do fato de querer entrar no saco e parcialmente de não ser capaz de entrar nele. Começa então uma descrição magistral dos momentos finais de sua vida, com direito a visão de uma luz  e a constatação por meio de uma expressão perfeitamente colocada: '- Então, é isto!'... '- Que alegria!' É tudo como se pouco antes do último suspiro de sua vida, ele, de repente, descobrisse o que realmente importa, o sentido supremo de tudo, e a vitória sobre a dor da morte, ou mesmo sobre a própria morte!

Lev Tolstói, 1828-1910

   Diante de tudo isto, A Morte de Ivan Ilitch pode ser vista como uma reflexão e uma elaboração dos conceitos filosóficos de um Tolstói convertido. A novela é uma resposta ficcional às questões que atormentaram Tolstói em meados dos anos 1870. Do momento de sua conversão até sua morte, o autor permaneceu ativamente engajado em expor suas crenças religiosas, tendo morrido em 1910 após aproximadamente uma década de constantes problemas de saúde.
   Na obra, alguns temas são muito evidentes, como o que seria a vida correta (há uma clara alusão ao que seria uma vida artificial, de mentira, de materialismo, interesse próprio, como a do próprio Ivan, sua esposa, Piotr e a maioria da sociedade ao seu redor, e uma vida autêntica, de piedade e compaixão, o que cultua a verdadeira relação interpessoal, representada, no livro, por Guérassim, sua cuidadora; a vida autêntica criaria laços e prepararia as pessoas para o seu encontro com a morte). Outro tema importante é o da inevitabilidade da morte; neste ponto, percebe-se que as atitudes de Ivan ao longo da vida vão mudando, o que permite que se mude a percepção sobre a morte, indo do terror desmedido à alegria suprema; quando se compreende e se aceita a morte e se reconhece a verdadeira natureza imprevisível da vida, atinge-se uma confiança, uma paz e uma alegria, que são possíveis mesmo pouco antes de morrer. Além destes, um tema que compartilha a ideia da vida artificial x autêntica é o da dicotomia vida interior x vida exterior; Tolstói descreve a existência humana como um conflito entre a vida espiritual e a vida física. No fim, a mensagem de Tolstói é bastante clara: a tarefa de cada indivíduo é reconhecer a dualidade do ser e, assim, viver de modo que a vida menos importante, a física, esteja em conformidade com a vida mais importante, a espiritual. Os motivos da obra (ps: motivos seriam estruturas recorrentes, contrastes ou dispositivos literários que ajudariam a desenvolver ou informar sobre os temas da obra) são apresentados de forma muito elaborada, como o da reversão (Tolstói reverte em vários momentos os conceitos de vida e morte, como quando Ivan aparenta estar crescendo com força, liberdade e status, na verdade ele está sendo reduzido a fraqueza, escravidão e isolamento), o da alienação (a vida física tem por característica a alienação; por exemplo, quando Ivan encontra uma situação ou relacionamento que não traz prazer à sua existência, ele se distancia dos mesmos; como, no início, Ivan não tem vida espiritual, ele é incapaz de ver as outras pessoas como indivíduos), o da contração do tempo e do espaço (com relação ao tempo, os primeiros quatro capítulos cobrem mais de quarenta anos da vida de Ivan, os próximos quatro capítulos cobrem vários meses e os últimos quatro capítulos cobrem um pouco mais do que quatro semanas da sua vida; com relação ao espaço, no começo da vida de Ivan, quando falando de sua vida profissional, há ampla mobilidade; quando adoece, ele passa a ficar limitado a um quarto de estudo; e, no fim da vida, ele não consegue sair de um sofá; de grande importância é o paralelo que tem essa contração do tempo e espaço, principalmente com relação ao tempo, e a vida espiritual, como que se tornando evidente para Tolstói que a vida não se limita do período em que se nasce ao período em que se morre, mas há algo após a morte, sugerindo uma eternidade), o da sociedade burguesa, o das referências de outras obras ou citações (por exemplo, quando Ivan é chamado de le phenix de la famille significando, metaforicamene, que ele é o membro da família com maior chance de ser bem sucedido; isto demonstra, na verdade, o renascimento espiritual de Ivan após a morte ardente causada por sua vida artificial), etc..
   Por fim, deve ser destacado o papel fundamental do saco negro profundo como símbolo. Se o saco é visto como um símbolo de morte, a ambivalência de Ivan se torna clara; ele tanto almeja o alívio da morte quanto teme ter que abandonar a vida. Mas, o fato de que ele escapa do saco antecipa que ele irá escapar do poder da morte. Entretanto, parece que o símbolo do saco negro deve ser analisado como operando em dois níveis; tanto quanto funcionando como um símbolo de morte, o saco também simboliza um útero, de origem da vida. A dor e o sofrimento que Ivan vivencia enquanto passa do saco para a luz remete à dor e trauma do nascimento para uma nova vida, como no parto. A dualidade desse simbolismo é essencial na estória. Na vida de Ivan, o que aparenta ser morte física é, na verdade, renascimento espiritual, enquanto sua antiga vida foi a causa da sua morte espiritual. Mas, as coisas não podem ser vistas como aparentam ser, e a ação deve ser entendida à luz do motivo da reversão: a vida de Ivan foi sua morte, e sua morte traz uma nova vida. Perfeito!!!
   Por tudo isto, e por nos ajudar a entender melhor o sentido da vida, a resolver um pouco melhor nossas tensões e também a sermos pessoas melhores (afinal, esse deve ser o papel da Literatura, posto que deve ser compreendido como vivências de outras pessoas para que possamos aprender com estas vivências a praticar coisas melhores em nossas vidas; os autores põem muito de suas personalidades quando escrevem, e a imaginação de suas obras tem sempre origem e fundamento em algo real em suas vidas, em alguma experiência que de fato aconteceu), esta é uma obra-prima de Tolstói que deve ser vista, revista, guardada, compartilhada e aplicada. Boa semana a todos!
   
   

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